Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 9
Cicatrizes & Desilusões


Notas iniciais do capítulo

Chegamos! Estávamos com muita saudade de vir aqui e postar algo legal. A interação era sempre tão gostosa! O importante é que não desistimos.
Para relembrar, é a temporada social em Londres! E mesmo que muitas personagens saiam dos costumes tradicionais, é esperado que sigam certas normas sociais. Isso não impede que imprevistos aconteçam! Neste capítulo, temos Killian Gallagher, um bastardo do rei que se começa a se envolver com Lady Madelyn. Mas o que mais se passa nos pensamentos deste soldado? Vamos ver!
E quem sentiu falta da Claire e da Carlota não vai ficar decepcionado! As duas sãos amigas e tem jeitos muito diferentes. Pena que o coração sonhador de uma delas sofrerá provações ♥
Boa leitura!



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— Dois xelins — Killian Gallagher entregou nas mãos da jovem de cabelos castanhos, com um meio sorriso quase simpático. 

Ela apenas assentiu, cobriu-se novamente e foi embora. Ele gostava que fossem silenciosas, pois o barulho o perturbava. Na gaveta do criado-mudo ao lado da cama, pegou um maço de cigarros e, antes mesmo de acendê-lo, já tinha se esquecido do nome da garota. Ela não fora mais memorável que a última, e provavelmente não seria melhor que a próxima. O prazer que ofereciam era tênue e fugaz, e nunca tão gratificante quanto uma paixão. Uma necessidade insignificante que ele ainda satisfazia, na esperança de sentir algo, qualquer coisa que fosse. 

Mas ele não sentia nada — e já não conseguia se lembrar de uma época em que não fosse assim. Apenas existindo, sem pertencer a lugar nenhum ou a ninguém, incapaz de lidar com a abominável verdade de que sua vida não valia mais que a de um animal. Por algum tempo, dedicou-se a aproveitar os mais degradantes prazeres da vida, a agradável inconsciência apaziguava a solidão de ser quem era — mas cobrava um preço alto demais: o pouco que ainda restara de si. Mais que tudo, ele tinha medo de se esquecer do rosto redondo e rosado da mãe, dos cabelos escuros que estavam sempre presos em um coque apertado, e do gosto do seu chá favorito, que só ela sabia fazer. Mesmo que, para se lembrar dela, precisasse não se esquecer dos flashes vermelhos, do sangue quente e úmido espalhando-se por seu uniforme ou do silêncio ensurdecedor que o embalou até a inconsciência. 

Ele não sabia quem o encontrara ou como conseguiram tirá-lo de lá, mas lembrava-se bem de ter escutado um dos cirurgiões dizer que ele não sobreviveria aos ferimentos. Às vezes, ele gostaria que os outros o tivessem escutado e deixado a natureza seguir o seu curso — Killian já tinha feito as pazes com a morte quando se descobriu vivo e — mais uma vez, foi confrontado com uma verdade abominável: viver doía. A morte teria sido rápida e pacífica. Ao contrário do que sucedeu ao seu resgate, a dor lancinante de ter tido projéteis de chumbo arrancados de seu corpo e a constatação de que, naquele mundo, ele estava completa e irrevogavelmente sozinho.

Dois anos haviam se passado desde a emboscada, e quilômetros o separavam da terra que roubara seus homens e sua honra, ainda manchada pelo sangue de seus companheiros. Ele voltara para a Inglaterra e, mesmo após tanto tempo, a guerra ainda se arrastava — e ele sabia que deveria ter deixado a segurança de Londres e retornado para o solo que o abatera. Afinal, lutar e morrer pela honra do país era o seu dever. Ao invés disso, ocupava-se com prostitutas e entorpecentes. Um estilo de vida decadente, do qual ele certamente não se orgulhava, mas tampouco era capaz de fugir. 

Fisicamente, ele se recuperara surpreendente bem de suas feridas — um benfeitor não muito anônimo se encarregara de contratar os melhores médicos para ele, e de garantir que o seu tratamento fosse seguido à risca — mas haviam partes de si, pequenos fragmentos que se estilhaçaram e se perderam entre os tiros de mosquete e o chão manchado de sangue, que jamais seriam recuperados. Killian preferia que fosse assim: se encontrados, seriam apenas lembranças dolorosas do que um dia foram. Ao menos tivera mais fortúnio que o comandante, ouviu falar. A Inglaterra fora vitoriosa, mas o pobre homem não tivera a mesma sorte — ou, quem sabe, talvez fosse ele o sortudo — não tivera que lidar com a dor e a perda que viera em seguida, e nunca mais acordaria gritando em agonia ou temeria o simples trovejar em noites chuvosas.

O rapaz apertou os olhos com força e franziu a testa, enquanto sua própria voz ecoava em sua mente, com promessas que nunca pudera cumprir. 

Os antigos colonos não passavam de fazendeiros armados com ancinhos, um exército mal treinado que não seria páreo para os soldados britânicos e que dera um passo mais largo que a própria perna ao declarar guerra. Cego pelo seu histórico reluzente de vitórias e condecorações, Killian se esquecera da lição mais importante: nunca subestimar o inimigo. 

Quando o primeiro projétil atravessou o seu corpo, ele não sentiu nada. Quando os seus joelhos se dobraram sobre o chão, incapazes de sustentar o próprio corpo, ele não sentiu nada. Mesmo quando o tronco pendeu para o lado, e a sua nuca encontrou o solo com um baque surdo — inaudível sob o som dos mosquetes e dos gritos — que lhe roubou a consciência por alguns segundos, seus sentidos pareciam incapazes de processar a devastação ao seu redor.

Os seus pensamentos voltaram-se para lembranças pequenas e singelas. Como a forma que a mãe acariciava o seu cabelo toda noite, quando era menino, penteando-os com a ponta dos dedos. Ele ansiava todas as noites pelas cartas do pai, um covarde que nunca tivera coragem de oferecer a ele mais que um afeto distante e uma presença invisível. Como se sentia grato quando a pequena carruagem parava em frente a sua casa e o levava para cavalgar nos campos infinitos que pertenciam ao palácio. Era tanta a felicidade de estar com ele que sequer questionava os olhares acusatórios em suas costas ou os sussurros sobre como ele não pertencia àquele lugar. Por muito tempo, pensara bem da relação discreta que cultivavam: era mais que um filho ilegítimo poderia esperar e, embora fosse um pai ausente, Killian não podia acusá-lo de avareza. No entanto — à medida que o torpor momentâneo se dissipava e o seu cérebro se tornava cada vez mais consciente dos pedaços de metal alojados em seu corpo — os seus pensamentos, outrora contentes, azedavam-se e o envenenavam contra a discreta família que sempre conhecera. Pela primeira vez, começara a questionar porquê sempre tivera de ser grato pelas migalhas que lhe eram oferecidas. 

Ele fechou os olhos e prendeu a respiração, enquanto escutava passos buscarem por sobreviventes. Killian os ouvia rir, enquanto desferiam chutes violentos contra os corpos inertes dentre os quais se escondia, jurando vingança. Dos ferimentos abertos, irradiava-se um ardor insuportável, como se as chamas do inferno o queimassem, punindo-o por tê-los guiado mal — por tê-los matado. Ele teve vontade de chorar, gritar e maldizer todos os deuses e santos nos quais já ouvira falar, culpando-os pelos seus planos fracassados e pela sensação de queimação que se espalhava pela sua barriga, implacável como fogo e pólvora. 

Se era isso que o destino lhe reservava, viver por um irmão que nunca conheceria a dor da guerra ou morrer por um pai que nunca o reconheceu — um homem que nunca o assumiria e que o deixaria ser enterrado com o sobrenome de sua mãe… se a sua vida realmente valia tão pouco, ele não se importaria de partir. Não havia nada para ele em Londres, ou em lugar algum, que o importasse.

Mas ele admitia que houvera um quê de excitação ao entrar em uma das residências mais abastadas de Londres com um uniforme impecável e fugir pela sacada, com botões perdidos e tecidos amassados.

Ela chamou a sua atenção no momento em que pôs os pés no salão, com a sua postura impecável e o seu nariz empinado. Killian não esperava mais dela, ou das outras damas que a cercavam naquele baile extravagante, que o de costume: jovens mimadas, egoístas e esnobes, tão acostumadas a ter o mundo ao seus pés, que já não se julgavam dignas de menos. Elas se casariam com homens igualmente arrogantes, e teriam filhos, aos quais ensinariam os mesmos valores distorcidos. E, nesse meio tempo, ele seria o que sempre foi — nada além do mal necessário que os separava da guerra. 

Da mesma forma que a ideia de tantas libras reunidas sob os lustres do salão, a completa indiferença da classe mais alta o enojava. A joia que pesava sobre o colo de uma das garotas seria mais que suficiente para custear a alimentação de dezenas de famílias por uma vida inteira e, ainda assim, ela a ostentava com orgulho. Seus pensamentos espiralavam, voltando-se ora para os relógios de bolso cravejados com pedras preciosas, ora para a quantidade de comida que excedia, e muito, a de convidados. 

Ele não negava que houvessem alguns tons de inveja e ressentimento por trás da máscara de defensor dos pobres e oprimidos — era doloroso ter nascido tão próximo de tanta riqueza e, ainda assim, tão distante. Killian não podia evitar o gosto amargo em seus lábios, o sentimento mesquinho de que merecia mais do que lhe fora oferecido — mas, ao mesmo tempo, sentia-se sujo por não ser capaz de conter essa mágoa. Ele ostentava uma carreira militar impressionante, mais dinheiro que conseguia administrar e mulheres ao seu dispor, ele deveria estar satisfeito. Ainda assim, só conseguia pensar no que ainda lhe faltava. Foi interrompido apenas pelo par de olhos fincado sobre ele, como um grande e incomodativo alfinete.

— Julguei que nobres não fizessem o seu tipo, Killian. — Um general de meia idade se aproximou, visivelmente alterado pela quantidade de álcool em seu sangue.

Foi uma surpresa para o rapaz que ele tivesse conseguido chegar até ali sem tropeçar uma vez sequer nos próprios pés ou derramar a bebida sobre si. O jovem suspirou pesadamente, antes de erguer os olhos da própria taça para encarar os olhos escuros do homem. Sentia-se num show de horrores e, pior, estava certo de que fazia o papel de bobo da corte.

— Não fazem, Desmond. — Ele inspirou e expirou profundamente, forçando um sorriso. Não gostava de fingir que era uma companhia agradável e gostava ainda menos de fazê-lo quando se tratava de homens como ele. Bêbado, prepotente e imoral. 

Talvez fosse arrogância por parte do rapaz, mas, se estava sendo sincero, sentia-se embaraçado por ele. A forma que agarrava a taça em sua mão com brutalidade, como se ela pudesse criar asas e cruzar o céu ou como ele olhava para as mulheres no salão, com piadas grosseiras na ponta de sua língua, ou mesmo a forma como ele continuava o encarando, de sobrancelhas erguidas, esperando uma resposta em relação à atenção inesperada que recebia da jovem de cabelos escuros: — É a garota quem está me encarando.

E, pela forma que ela o observava, como um botânico que acabara de descobrir um novo espécime, os boatos que chegaram em seus ouvidos foram interessantes o suficiente para atiçar a sua curiosidade. Ele ouvira algumas das histórias que circulavam ao seu respeito quando visitara alguns dos estabelecimentos mais bem frequentados de Londres. Algumas eram verdadeiras, mas a grande maioria não passava de ficção. Ele até poderia citar uma ou duas que surpreenderam mesmo a ele, o suposto autor de tamanhas façanhas.

A dama ao lado da garota tocou o ombro dela gentilmente, a fim de chamar sua atenção, enquanto seus olhos saltavam de Killian para a jovem de cabelos negros com uma velocidade desconcertante. Ele via seus lábios mexerem, enquanto ela franzia as sobrancelhas, sem dúvidas de que cada sílaba que ela proferia o insultava de alguma forma. Não fosse a insignificância daquele evento, talvez ele tentasse decifrá-las. No entanto, preferiu oferecer-lhes o benefício da dúvida — quem sabe não comentavam sobre o seu charme incontestável?

Desmond se curvou, apoiando parcialmente o seu peso sobre o ombro do rapaz. O jovem general virou o rosto na direção contrária, enquanto o velho inclinava-se na direção de seu ouvido, perto o suficiente para que ele fosse capaz de sentir seu bafo repulsivo de puro álcool. Killian não era um grande fã das danças elaboradas de bailes, embora fosse um dançarino razoável, mas se viu instintivamente procurando uma dama a quem pudesse pedir uma dança.

— Ela é muito bonita, garoto. — “sussurrou”, como se lhe confidenciasse um segredo. Por sorte, misturada às vozes dos outros convidados e da música alta, suas palavras não alcançaram outros convidados. Killian conhecia o suficiente de Thomas de Loughrey — e, especialmente, de até onde ele iria para ter o que queria — para saber que deveria manter distância daquela família. O duque de Marlborough era um excelente negociador, mas não era um homem que se pudesse cruzar. Ele já tivera sua cota de embates e negócios com Thomas e, com a graça divina, nunca mais o veria novamente.

— Você sabe quem ela é? — Ele ergueu as sobrancelhas, curioso.

— E isso importa? O que uma mulher poderia fazer contra você? — Desmond sorriu, esvaziando a taça de vinho num só gole. — No seu lugar, eu aproveitaria a atenção. Há muitos quartos nesse casarão.

Killian fingiu não entender as implicações da última frase, balançando a cabeça sutilmente. Mesmo que ela estivesse interessada, ele não tinha intenção de se aproximar de garota alguma, especialmente dela.

Mesmo que os cabelos negros, que emolduravam perfeitamente o rosto oval, e as maçãs do rosto salientadas tenham chamado a sua atenção no momento em que ela entrou no salão, ele não poderia. Mesmo com a intensidade excepcional de seu olhar, uma frieza flamejante e intensa. Tão capaz de congelá-lo, quanto de queimá-lo.

Ele arrumou a postura, virou-se para Desmond e falou algo sobre dança e anfitriões. Não estava interessado em continuar aquela conversa e vira em Lady Brereton uma desculpa perfeita, não só para fugir das inconveniências do parceiro, mas do olhar que o convidada a problemas. Em meio aos nobres dançantes, Killian cruzou o salão para cumprimentar sua salvadora.

— Você veio! — Ela sorriu, envolvendo os braços ao seu redor. Catherine fora uma figura materna para ele, seria indelicado recusar um convite que lhe fora feito pessoalmente. — Não julguei que nos daria o prazer da sua presença. Faz tanto tempo desde a última vez que nos vimos.

— Eu jamais negaria um pedido seu. — Ele sorriu gentilmente, erguendo a mão da senhora até os seus lábios. — Parece-me muito mais bem-disposta, sinto que lhe devo felicitações, ao invés de condolências.

Ela riu, discretamente: — Faz bem estar sozinha, depois de tantos anos.

Catherine não tinha mais que quarenta anos e a viuvez decerto lhe caíra bem: agora, os seus bailes eram os mais esperados pela corte durante a temporada social, embora alguns os considerassem ligeiramente obscenos. O falecido lorde certamente revirava-se no túmulo enquanto a música preenchia os corredores de sua antiga residência: embora não fosse de todo ruim, era extremamente conservador e nunca aprovara a relação entre a esposa e Killian. No final das contas, o bastardo de um rei ainda era um bastardo.

— Que tal uma dança? — Ele ofereceu, inclinando a cabeça em direção ao centro do salão.

— Ah, sim. Grande ideia! — Catherine enroscou o seu braço no dele e o puxou para o meio, com um sorriso de orelha a orelha. Um sinal de que as engrenagens em sua cabeça engendravam um plano infalível. — Mas deve ocupar-se com alguém da sua idade, não com uma senhora ultrapassada como eu. Não saia daqui, trarei alguém por quem há de se interessar.

Ele franziu a testa. Pelo andar da carruagem, o seu plano de manter a distância de qualquer mocinha nobre que pudesse trazê-lo problemas já era. Não lhe faltavam motivos para temer uma aproximação: se a sua má-reputação não fosse o suficiente, ele não tinha intenção alguma de participar de outro duelo por conta da honra de uma dama: apaixonara-se uma vez, por uma lady. Fora tão tolo e ingênuo que a simples lembrança era quase dolorosa. Killian tivera sorte de escapar fisicamente ileso, embora não pudesse dizer o mesmo sobre o seu ego, o seu orgulho ou — mesmo que lhe custasse admitir — o seu coração.

Em respeito à Catherine, ele não se movera um centímetro sequer de onde ela o deixara. Ocupou-se de observar os afrescos grandiosos que decoravam as paredes, esperançoso que a senhora não encontraria uma jovem sequer interessada na companhia de um militar sem berço. No entanto, é óbvio que o destino acharia uma forma de o escarnecer, oferecendo-lhe aquela que ele mais parecia decidido a evitar. 

— Querido, gostaria de apresentar-lhe Lady Madelyn de Loughrey. — disse, triunfante e aproximou-se para sussurrar a segunda parte: — A senhorita perguntou sobre você, e me pareceu deveras interessada.

— General. — ela saudou, roçando suavemente a ponta dos dedos em seu braço, um movimento inofensivo, mas que ele duvidou ter sido ao acaso. — Lady Brereton me confessou que gostaria de dançar.

— Ele é um rapaz muito educado, senhorita, não se deixe enganar pela carranca. — Catherine sorriu, empurrando a jovem suavemente na direção do militar. — Além disso, é um ótimo dançarino.

— É uma honra dançar a minha primeira valsa da noite com o general. — Madelyn sorriu, tocando o ombro da senhora gentilmente. 

— Nada como uma boa dança para unir um par. — Ela soltou um longo suspiro, como se soubesse de algo que os dois jovens não sabiam. — Vou deixá-los a sós! Não se esqueça de falar com os seus irmãos antes de fugir, Killian. 

— O senhor tem irmãos? — Ela se aproximou sutilmente, apoiando a mão delicadamente sobre o braço dele. 

— Não. São filhos de Lady Brereton. 

— O senhor foi criado por ela? — Madelyn se aproximou ainda mais, na expectativa de que ele finalmente pegasse a sua mão e a levasse para o centro do salão, perder a aposta que fizera com o irmão simplesmente não era uma opção.

— Não, senhorita. — respondeu, sem sequer olhar para ela.

Ela gostaria de perguntar o motivo pelo qual ela se referira aos próprios filhos como irmãos do general rabugento, mas era claro que ele não parecia interessado em tocar no assunto e ela certamente não cutucaria uma onça com uma vara curta. Madelyn preferiu ignorar a própria curiosidade e esboçar um sorriso gentil: — O salão está tão vazio, senhor, o que acha de…

— Eu sinto muito pelo inconveniente, senhorita. Mas eu não danço. 

— É realmente uma pena, Lady Brereton não lhe poupou elogios… — Ela inclinou o queixo para baixo e o encarou através dos cílios negros e grossos. — Não faria essa desfeita, faria?

— Eu realmente sinto muito. — Ele se virou para ir embora, aquela noite estava indo de mal a pior, tanto para ele, quanto para Madelyn.

O seu plano não estava funcionando, e rejeição não era um sentimento que ela aceitava facilmente. O general estava claramente aborrecido com a sua insistência e, embora não refletisse em sua expressão, Madelyn estava furiosa. Que raios de pessoa a rejeitaria tão descaradamente? 

— É só uma dança, general. Do que está com medo? Eu não mordo. — disse, sem a típica timidez fingida e a boa educação que fora instruída a demonstrar. — A não ser que você peça.

Killian piscou duas, três vezes. Enfim, ela parecia ter conseguido capturar a sua atenção.

Se alguém perguntasse, Madelyn não titubearia em assumir o crédito daquela conquista: era mais que óbvio que alguém como o general preferia garotas um pouco mais complexas! — em sua defesa, caro leitor, Madelyn gostaria de pontuar que moças rasas e frágeis são certamente mais populares entre os homens, e que não é sua culpa que eles sejam criaturas tão simples! — mas a verdade é que, por algum motivo do qual era ignorante, a petulância daquele desconhecido a irritou de uma forma tão sem precedentes e tão inesperada que… ela simplesmente se deixara levar por um instante. Madelyn não costumava mostrar vislumbres de sua personalidade tão facilmente assim e, quanto o fazia, era raro que não se sentisse julgada ou repreendida. 

Às vezes, em dias quentes, ela passaria horas encarando o teto, perguntando-se quando de si ainda restara na teia complexa de mentiras na qual se escondia e — em noites silenciosas, quando os sons da cidade eram substituídos pelo farfalhar das folhas do campo, quando se sentia inspirada — sonharia em mudar o mundo, como costumava fazer quando ainda não sabia que um casamento poderia fazer ou destruir a sua vida. Mas, diferente dos contos de fadas, mudança exigia muito mais que simples boa vontade e, verdade seja dita, ela nunca fez o tipo corajosa. Ela sabia que, se renunciasse ao sobrenome de seu pai, o mundo nunca lhe tornaria a ser gentil — o que certamente não lhe parecia um preço justo a se pagar apenas pelo luxo de fazer algumas escolhas não muito relevantes, que só decidiriam a porra do seu destino inteiro

— Você… pode repetir, por favor? — pediu, a perturbação evidente em seu belo rosto. Ele estava certo que não bebera o suficiente para ouvir coisas, especialmente insinuações tão… descaradas. 

— Você ouviu bem, general. — Ela sorriu, sustentando os lábios esticados por alguns segundos, depois bufou. — Vamos lá, uma dança não vai te matar. 

Ele a encarou, com um certo fascínio abatendo-se sobre ele. Killian podia sentir o formigar da curiosidade na ponta dos seus dedos, alastrando-se para as mãos, braços e pernas, implacavelmente tentadora. Como se enfeitiçado por seus olhos gelados, aproximou-se, os dedos pairavam no ar, na direção de sua cintura fina. Ele aprendera cedo a não confiar em pessoas como ela — nascidas com sobrenomes dourados, capazes de qualquer coisa para mantê-los — mas algo sobre o toque suave de Madelyn o convenceu de que, não importava quão estúpida fosse aquela escolha, valeria a pena. 

— Além disso, tenho uma proposta irrecusável para você. — ela completou, deslizando a mão suavemente do seu ombro até a sua mão, entrelaçando-as.

Desta vez, ele não a afastou, embora encarasse o centro do salão com certa objeção: — Eu não gostaria que manchasse a sua reputação impecável dançando comigo, Lady de Loughrey.

— Eu sou capaz de cuidar da minha própria reputação, general. Só preciso que me ajude a cumprir uma promessa.

Ela possuía a beleza delicada e fugaz de um floco de neve, enquanto o olhar era de uma inteligência aguçada, atenta. Ele não pensara muito nos motivos do convite da senhorita — embora reconhecesse que não havia muitas razões para que uma dama de alta classe o convidasse para um chá da tarde — ele viera repentinamente, como se a ideia houvesse deixado seus lábios na mesma velocidade com que surgira. 

Inconstante como o tempo, Madelyn compreendia tanto do que ele abominava e, ainda assim, ele não conseguia desviar o seu olhar. Especialmente agora, deitada sobre os lençóis de linho, parecia particularmente magnética. Os braços estavam cruzados sob o seu queixo, e apoiavam a bochecha rosada, os pés cruzados balançavam para frente e para trás, enquanto ela o fitava com um olhar curioso.

— O que foi? — disse, desviando o olhar do dela apenas para fechar os botões da camisa amassada.

— Você fica mais bonito sem camisa, general.

— E você está tentando me arranjar problemas, senhorita. — Ele sorriu, mais certo que podia imaginar.

— O melhor tipo de problemas, eu garanto.

— O que você acha de cavalgar? — Matteo sugeriu, parado ao final da escada. Seus olhos grandes verdes fixados no rosto fino de Claire. — Tomei a liberdade de pedir aos criados que preparassem os cavalos.

Ela abriu um largo sorriso, certa de que não haveria forma melhor de terminar o dia que explorar os mares verdejantes dos extensos parques de Londres, mas havia um diminuto empecilho. Os lugares preferidos de Claire eram os distantes e isolados, nos quais poderia desprezar a canalha sela de amazona. Entretanto, em lugares distantes e isolados era inconcebível que um jovem e uma moça ficassem sozinhos. Afinal, querido leitor, jovens e seus hormônios… imagine tudo o que poderiam fazer na ausência de um chaperone!

— Oh, eu adoraria. Mas não podemos ir sozinhos, infelizmente. A não ser que…

Ela voltou o olhar esperançoso para cima, na direção de Carlota.

Simultaneamente, Matteo virou o rosto no mesmo sentido que o de Claire e encarou a irmã, com um olhar de eu-faço-o-que-você-quiser-depois

A garota de olhos verdes olhou por trás do ombro do irmão, ponderando se poderia delegar a tarefa às irmãs mais novas. Carlota não aguentava mais aquele chove-não-molha e a pior parte é que Matteo a proibira expressamente de dar um pio sequer para a melhor amiga — ela morreria antes de trair a confiança do irmão, mas a estupidez dos dois a angustiava de uma forma quase obscena — eles eram tão óbvios e, ainda assim, tão imbecis.

Ela virou o pescoço para à direita e encarou o quadro da família pendurado na parede da sala com pesar, incapaz de compreender como um parvo como Matteo poderia ter sido gerado no mesmo ventre que ela. Quanto ao restante da família, certamente eram tão espertos que desapareceram assim que ouviram dizer que o rapaz pedira aos criados que preparassem os cavalos.

— Claro, seria um prazer acompanhá-los. — Ela revirou os olhos, bufando, como se o irmão sozinho não fosse impedimento o suficiente para si mesmo. — Vocês querem que eu leve algumas velas, também?

— Oh, não! Está cedo e há sol o suficiente. — Claire abriu um sorriso largo, exibindo suas duas fileiras de dentes, satisfeita demais para processar a acidez da amiga.

— Sim, Carlota. É muita consideração da sua parte. — Matteo a fuzilou com os olhos, ao que ela respondeu com um sorrisinho zombeteiro. — Mas não será necessário.

Ela deu de ombros, com o sorriso ainda emplastrado em seu rosto: — Sorte sua que não tenho planos melhores para a tarde.

O irmão dissera algo sobre planos mirabolantes, pedidos misteriosos e a beleza natural da clareira mais cedo e, agora que se aproximavam do seu destino, ela começou a se questionar se era sobre aquela tarde que ele se referia. Assim que desceram dos cavalos, ela reparou que Matteo parecia mais acanhado que o normal, com uma risada fácil que evidenciava seu nervosismo e — além disso, ele deixara Claire cavalgar o corcel mais rápido que já ocupara os estábulos da família — o mesmo que costumava escolher para si. Mas ela pensou ser mais prudente deixar a ansiedade para o irmão, e aproveitar a calmaria para dar continuidade aos dramas das irmãs Dashwood, em cujo primeiro volume dera fim numa única tarde. 

Carlota estava confortavelmente sentada sob a sombra de uma árvore, a brisa era fresca e o calor do sol era suave e, na medida certa, deliciosamente quente. Estranhamente, ela estava feliz por ter vindo. Enquanto Matteo e Claire conversam em sussurros inaudíveis aos ouvidos indiferentes de Carlota, ela inclinava-se para trás, apoiando o próprio peso com o braço esquerdo, enquanto, com o braço direito, segurava seu exemplar recém-comprado do segundo volume de Razão e Sensibilidade. Até então, identificava-se com a personalidade atrevida e enérgica de Marianne Dashwood, embora certamente não aprovasse todos os seus atos — por exemplo, quando mandou cartas ávidas a John Willoughby e se sujeitando ao ridículo. Ao contrário de Marianne, Carlota não se interessava em viver uma paixão arrebatadora. Talvez esse impulso por uma paixão tivesse sido, na realidade, piorado o destino de Marianne no livro. Não havia nada demais se ela não se casasse até o fim — ou era isso que Carlota achava — mas como todos amavam uma história de matrimônio e aquele livro cairia bem aos gostos da sociedade para vender, Marianne casou-se justamente com o homem que considerava, no mínimo, desinteressante e velho. Os olhos verdes treinados da garota saltavam de uma linha a outra em meros segundos, profundamente inserida no dilema das irmãs Dashwood sobre usar mais o senso ou o sentimento — tão absorta que estava alheia a qualquer coisa que acontecesse ao seu redor — inclusive ao fato de que a clareira tornara-se excepcionalmente quieta e não mais se ouvia o trotar dos cavalos.

Não muito longe dali, Matteo prendeu as rédeas de ambos os animais. Movidas pelo vento, o farfalhar das folhas embalava a risada suave de Claire: 

— Portia realmente tentou jogar badminton? Eu gostaria tanto, — Ela inclinou a cabeça para trás suavemente, desviando, por um segundo, seu olhar para cima —, tanto de ter visto isso.

— Pareceu-me que ela estava tentando conquistar Enrico.

— Você acha que funcionou? — Ela arqueou as sobrancelhas, ponderando.

Portia era uma típica dama da sociedade, delimitada por todas as suas regras e costumes. Bem-nascida em uma família nobre, ela não via com bons olhos sua inaptidão para a música e a dança e, embora não tivesse a arrogância de repreendê-la, tampouco se interessava pela sua amizade. Claire pensava o mesmo, até agora. Ela não julgava Portia por ter arriscado se expor ao ridículo pela atenção de Enrico, na verdade, ela achava de uma coragem admirável — mesmo que tenha tido o mesmo efeito que uma simples conversa teria.

— Ela certamente chamou a atenção dele. — Ele riu. — Com a bola.

— Oh, não! — Correção, talvez tenha tido menos efeito que uma simples conversa.

— Ah, sim. No meio da testa.

Oh céus. Talvez tenha tido o efeito contrário.

— E… ele? — Claire franziu a testa, ligeiramente envergonhada e com medo pelos jovens e ingênuos sentimentos de Portia. O rapaz era muito bonito e extrovertido, de fato, mas nem sempre capaz de medir a acrimônia em suas próprias palavras. 

Digamos que, em uma escala de zero a dez — onde o zero fosse Matteo e o dez, Carlota — Enrico seria um sólido sete. Usualmente agradável, mas terrivelmente temperamental e um péssimo perdedor. Em um dia ruim, uma bolinha seria o suficiente para uma resposta atravessada.

— Ele me pareceu estranhamente convencido. — É, Portia. Talvez não tenha sido uma ideia tão estúpida, afinal.

— Não posso dizer que não a entendo. — Claire sorriu, enlaçando o braço de Matteo com o seu. — Enrico seria um marido perfeitamente aceitável.

— Você acha? — Ele virou o rosto para ela de súbito, uma ruga formada entre as duas sobrancelhas.

— É claro! Ele é muito gentil, inteligente e gosta de esportes como eu, embora seja um pouco genioso. Mas, convivendo com Carlota, posso afirmar que não seria um problema para mim.

O rapaz suspirou, olhando para baixo. Então o interesse óbvio que a irmã pensava ver nunca fora por ele, mas pelo irmão. Pela primeira vez, perguntou-se se havia alguma chance de Enrico sentir o mesmo e nunca ter dito nada por sua causa. Poderia ser dele a culpa de Claire nunca ter se casado ou se permitido ser cortejada por outro rapaz? 

— Talvez seja um problema para Portia. Ou não. — continuou, girando o anel dourado ao redor do dedo indicador. — Mas tenho certeza que suas outras qualidades se sobressaem! 

Ela não percebeu o semblante de decepção óbvio no rosto dele, mas o silêncio desconfortável que se instalou entre os dois a impeliu a falar, na esperança de preencher o vazio que ameaçava engoli-la.

— Você não acha? — A jovem puxou o braço dele suavemente, a fim de chamar sua atenção.

— O quê? — Ele virou o rosto para ela, atordoado. Antes de responder, piscou várias vezes. Estava imerso demais em seus pensamentos para ouvir a pequena “contenção de danos” de Claire. — Que Enrico tem muitas qualidades, sim, eu concordo.

Eles caminharam por algum tempo em silêncio. A única coisa que se escutava, além do farfalhar das copas das árvores, era o cantar dos pássaros e, o caminho que faziam agora era de volta aos cavalos, finalmente. O passeio, que começara em um tom tão bonito, terminava com uma nota dó. Mas, de repente, lembrou-se que Matteo a devia respostas.

— Ah, agora estamos longe o suficiente! — Ela parou de repente, puxando-o para trás. — Você pode me falar agora!

— Falar… o quê? 

— Antes de sairmos. — Abriu um sorriso largo e esperançoso. — Você disse que tinha algo para me falar.

— Eu devo ter me enganado. — falou, baixinho.

Ele acariciou a mão dela suavemente, antes de afastá-la de seu braço: — Sinto muito por tê-la perturbado.

— Mas… Você não… — começou, atordoada. 

Sua mão ainda pairava no mesmo lugar na qual Matteo a deixara, ansiosa por sentir o calor gentil de seus braços entrelaçados novamente, mas insegura sobre como fazê-lo. Ele balançou a cabeça, seguindo adiante em passos rápidos. Aparentemente absorto em seus pensamentos novamente, sequer parecia notar a dificuldade da jovem em acompanhá-lo. 

— Que ultraje é este? — ressoou uma voz conhecida, em um tom grave de mais profunda indignação. — Sozinhos, no meio do nada!

Claire parou e se virou para o dono da voz que, ultimamente, já não suportava mais escutar: — Jude? Como nos achou aqui?

Ela apertou os olhos, com a expectativa de que o irmão pudesse simplesmente desaparecer. A imagem do jovem de menos de trinta anos, embora as olheiras profundas e os ombros caídos o fizessem parecer ter bem mais, com o cabelo mais desgrenhado que um ninho de passarinho só poderia ser um pesadelo. Matteo andava em círculos, percorrendo uma gama tão grande de emoções sob a expressão grave que carregava, que ela sequer conseguia compreender o que poderia ter dito para que ele agisse de tal forma. Decepção, raiva, preocupação e alívio pareciam brigar pelo controle das suas feições, enquanto Jude parecia prestes a ter uma síncope. 

— É essa a sua preocupação? — Sua voz subiu um tom, e se tornou mais aguda. — Se precisa saber, eu estava atrás de paz, contemplar a natureza, e toda essa baboseira.

O lorde apertou os olhos com força, massageando a ponte do nariz com um movimento rítmico de vai-e-vem: — Eu gostaria muito de não tê-los visto, Claire. Você não faz ideia do quanto. 

Os dois rapazes eram conhecidos de longa data e, apesar da relação distante, o jovem Benedetti sempre notara a proximidade dos Evans. Portanto, era difícil para ele compreender em quem Jude se tornara; ou em que momento os laços entre os irmãos se estreitaram a ponto de, ao invés de fortalecê-los, sufocá-los. 

— Não aconteceu nada entre nós — Matteo finalmente se pronunciou, posicionando-se protetoramente entre Claire e o irmão mais velho. 

— É verdade. Só estamos conversando. — Ela deu um passo para o lado, fora da sombra do jovem de olhos verdes, mas Jude não escutara sequer uma das palavras que deixaram os seus lábios, virando-se para Matteo, ao invés disso. 

— Você pode provar? — Tomou um gole do cantil e, em seguida, o entregou para a garota. 

Quando Claire deixou escapar o longo suspiro que prendia desde que o irmão aparecera na clareira — convicta de que os ânimos exaltados começavam a normalizar — ele puxou Matteo pelo colete, com um solavanco brusco, erguendo-o de tal forma que teve de se apoiar na ponta dos pés. Jude exalava o cheiro de álcool barato e tons quase imperceptíveis de perfume feminino. Matteo podia sentir o odor repulsivo de sua respiração quente sobre o seu rosto, e exigiu muito de si para não desviar a face de seu bafo embriagado. 

— Ninguém nos viu. — Desprendeu-se dos punhos do outro, arrumando as vestes amassadas. — Isso é o bastante.

— Não para mim — rosnou.

— Já chega, Jude, vamos embora. — Claire tentou puxar o irmão pelo braço, chamando atenção para si em um momento não muito fortuito. As bochechas estavam ruborizadas pela vergonha e a aparência, desgrenhada pelo passeio. 

— Olhe para ela! Os cabelos bagunçados, o vestido amassado… Você quer ser a próxima notícia daquele jornaleco que tanto gosta de ler? — Apontou o dedo comprido para os fios encaracolados esvoaçantes da irmã, com um tom acusativo.

— Você estava bebendo. — Ela agarrou com firmeza o cantil, gravado com o brasão dos Evans em ambas as faces, de forma protetora. Sua voz estava trêmula e lágrimas ameaçavam desabar como um forte temporal.

Isso não podia estar acontecendo. 

— Ah, não me diga. Como adivinhou?

— Por favor, vamos embora! — suplicou, segurando o irmão pelo pulso, mas incapaz de fazê-lo mover.

Jude já conseguia ler a manchete em sua cabeça, “furtivamente encontrando-se com um cobiçado solteiro, a senhorita Evans demonstrou pouco respeito por normas e bons costumes — um péssimo sinal para os rapazes que buscam por uma esposa nesta temporada social”. Uma única publicação bastaria para condená-los ao ostracismo e, com a sua fortuna encolhendo tão rápido como uma pedra de gelo sob o sol de verão, sua família jamais voltaria a possuir o mesmo prestígio. Com diversos maus investimentos, ele conseguira pôr em risco uma fortuna acumulada há gerações e, com sua conduta irresponsável, Claire terminaria de enterrá-los.

— Sabe o burburinho que isso pode gerar? — Ele puxou o braço, irritado. Apenas pensar na ruína dos Evans era suficiente para tirá-lo do sério.

— Estávamos cavalgando, seu imbecil — Matteo interviu, apoiando as mãos gentilmente em ambos os ombros da garota e puxando-a suavemente para trás, na sua direção. — Era de se esperar que…

— Oh, eu realmente espero que o cavalo seja a única coisa que ela cavalgou hoje, ou você pode se considerar um homem morto — Jude resmungou, arrancou o cantil de peltre das mãos da irmã, e deu um longo gole. 

O pobre lorde se encontrava sobrecarregado pelas finanças da família, que iam de mal a pior — em pouco tempo, não seriam suficientes sequer para pagar pelo dote de Claire — pelas cobranças da mãe para que conseguisse uma esposa, e o estresse constante de ter como irmã uma romântica incurável que simplesmente recusava-se a conhecer ao menos um homem, como se o destino pudesse fazer um marido magicamente cair do céu. Apenas no álcool encontrava algum tipo de consolo, e apenas os clubes acendiam suas esperanças de fechar um negócio que pudesse salvar os cofres da sua família. Ele massageou as têmporas, depois de tanta dor de cabeça, um pouco de paz era o mínimo que ele merecia. 

— Ou melhor, você pode se considerar um homem casado. — O barão abriu um sorriso vilanesco, como se um plano infalível houvesse se materializado em sua mente malignamente genial. 

Empurrar um casamento para Matteo Benedetti lhe pareceu uma ideia simplesmente brilhante, a solução perfeita para todos os seus problemas. Claire se virou para o rapaz de olhos verdes com um brilho esperançoso no olhar — ela parecia suficientemente afeiçoada a ele e, além de poder se gabar de uma boa aparência, Matteo era de uma família tradicional, apesar da ascendência estrangeira e — mais importante, era o detentor de uma grande herança. 

Da união dos dois, nasceriam herdeiros garbosos e bem-educados. Eles viveriam em uma grande propriedade, com criados que atenderiam todos os seus caprichos, e acertariam suas bolinhas de badminton, críquete, croquet, e sabe se lá mais o quê, onde diabos quisessem, Jude pensou, não poderia ser mais perfeito. Na medida do possível, também esperava que fossem felizes — embora não acreditasse em contos de fadas, ainda torcia para que a irmã encontrasse o seu. 

— Não vamos nos precipitar, Jude — Matteo respondeu. — Ninguém nos viu, não há razão para todo esse estardalhaço. 

O olhar de Claire saltou de Jude para o rapaz alto e gentil e, pela primeira vez, agradecida pelo irmão não ter se preocupado em incluí-la na conversa. Ela deu as costas para os dois, afastando-se da discussão, que tornava-se cada vez mais acalorada. Nenhum dos dois notou a expressão dolorida que cruzou a sua face, as lágrimas que escorriam pelas suas bochechas ou o seu soluço baixo. Como fora tola! Era óbvio que ele não gostaria de se casar com ela — uma dama sem competência alguma para arte, música ou sequer dança, incapaz de dizer como os talheres devem ser posicionados em uma mesa de jantar ou como se portar em um baile. Ela seria nada mais que um motivo de embaraço para Matteo.

Sentiu-se estúpida por todo o esforço que fizera para contrariar Jude, fugindo de todos os pretendentes que ele incessantemente lhe empurrava — e para quê? Pela chance de ser cortejada por um homem que sequer a desejava? O seu rosto queimava com a vergonha — mas ela limpou as lágrimas com as costas das mãos, e se virou novamente para os rapazes em pé de guerra.

— É verdade, Jude. Não vamos nos casar por um deslize — confirmou. — Ninguém nos viu, eu garanto.

— Está vendo? — Matteo começou, mas Jude apenas sorriu afetadamente, o semblante de puro ódio sob a fileira exposta de dentes, alimentado tanto pela audácia do jovem rapaz, quanto pela frustração de sua recusa. — Ela também não qu-

Antes que ele pudesse concluir, o grito agudo de Claire ecoou pela clareira, assustando os pequenos passarinhos empoleirados nos galhos das árvores nos arredores, antes do punho de Jude se conectar com o maxilar de Matteo. Ele arregalou os olhos, surpreso, e deslizou a palma da mão pelo rosto avermelhado.

Matteo nunca havia se envolvido em uma briga, exceto pelos treinos que nunca foram realmente postos em prática — mas se havia uma coisa que um irmão mais jovem e um taco de críquete o haviam ensinado, era como dar um bom gancho de direita. Passado o choque inicial, ele devolveu na mesma medida. 

O impacto no queixo do barão, além de forte, foi súbito. Jude cambaleou um pouco, prejudicado pelo álcool em suas veias, mas logo um brilho afiado surgiu em seus olhos. Ele cuspiu na grama saliva e sangue, depois limpou o resto de sangue dos lábios com a lateral da mão direita, tingindo a luva branca de vermelho. De repente, era quase como se estivesse calmo, no entanto Matteo entendia que não era o caso. E, se antes revidou bem pelo reflexo, pelos treinos e pelo vigor de seus vinte e dois anos, agora se questionava se aquilo tudo seria o suficiente.

Jude partiu para cima de Matteo. Diferente do que o jovem Benedetti via em partidas de boxe ou em treinos com os irmãos, a briga era mais rápida, menos graciosa. Ele defendia-se como podia, atacava quando via abertura. Se acertava um golpe, nem via bem onde exatamente seu punho havia se encaixado no barão. E a experiência de Jude, mesmo sob o efeito do álcool, garantiu que ele desferisse um golpe certeiro na lateral de suas costelas, do lado esquerdo.

Ele não se orgulharia do longo arquejo que escapou de sua garganta no futuro. O punho de Jude parecia ser feito de ferro de tão duro, tanto que Matteo precisou de um instante a mais para retomar o ar em seus pulmões. Diabos! Encarou-o com ódio e, mesmo dolorido, deu um passo para frente. Agora, queria arrancar um dente do tão importante, bêbado e honrado barão.

Apenas quando notaram Claire sentada no chão, com olhos inchados e abraçando o próprio corpo trêmulo, os homens se separam, ainda que hesitantes. Jude bufou, dando as costas para Matteo e encarando a irmã com uma ferocidade que a assustava. O jovem de olhos verdes quis intervir, egoisticamente arrependido de seu altruísmo — quis, também, voltar atrás e aceitar o casamento. O apoio do cunhado era certo e, sem dúvidas, teria influência na escolha da irmã. No entanto, Matteo julgava já ter causado problemas demais para a garota e odiaria acrescentar um casamento indesejado ao topo da pilha. Enrico seria um marido tão apropriado quanto ele, se não mais, e era certo que sua união com Claire seria igualmente celebrada pelo barão. 

Além disso, Matteo sequer sabia o que dizer. Nada parecia suficiente para amenizar a situação e, por experiência própria, sabia que o silêncio era o seu melhor aliado em situações como essa — afinal, foram palavras que os colocaram naquela situação infeliz em primeiro lugar. Se eles nunca tivessem conversado sobre Portia, uma fofoca aparentemente inócua, ele ainda sentiria que tinha uma chance. Ele nunca teria explodido e negado qualquer aliança com a família Evans, ou pior, ofendido o barão.

Ele preferia pensar assim, que admitir que era um covarde. Em todos os anos que conviveu com Claire, se declarar para a moça ou sequer tentar cortejá-la nunca lhe cruzou o pensamento. Mesmo agora, enquanto via um Jude apoplético caminhar na direção dela — Matteo abaixou a cabeça, convicto de que seria melhor assim e que intervir pioraria ainda mais as coisas. 

— Agora, você. Você não é confiável — o barão rosnou, puxando Claire pelo braço. — Nós vamos para casa, agora.

— Jude…

— Você disse que se encontraria com Carlota! Onde ela está? — gritou — Começou a mentir agora, Claire?

— Como pode me dar um sermão enquanto está caindo de tão bêbado? — Ela puxou o braço para si, com raiva. — Eu ainda consigo andar sozinha, pelo menos. 

A jovem apertou os passos, batendo os pés como se quisesse abrir uma rachadura no chão e abrindo distância entre si e o irmão. Ela não suportava vê-lo e pensar no que tinha feito — quaisquer fossem os seus motivos, não eram bons o suficiente. Ela quis gritar, espernear e fazer um escândalo, envergonhar Jude como ela a tinha envergonhado — mas também quis, na mesma intensidade (ou talvez ainda mais), cavar um buraco no chão e permanecer ali pelo resto dos seus dias, intocada pela barbárie primitiva do irmão.

Ele acelerou, alcançando-a e acompanhando o seu passo, apenas para forçá-la a escutar sua próxima justificativa. Mais uma vez e de novo: — Você não faz a menor ideia de com quantos problemas eu estou, agora, Claire.

Nunca são pedidos de desculpa com você, não é? — sussurrou, esboçando um sorriso triste, ainda olhando para os próprios pés. 

Incapaz de discernir se o irmão não a escutou, ou se apenas decidiu que ela não merecia uma resposta, ela falou novamente. Dessa vez, mais alto e mais claro, levantando o olhar para encará-lo: — Eu saberia se você me contasse. 

Jude apenas desviou o olhar. Pela primeira vez, notou que o rosto queimava, as costelas latejavam e as articulações das mãos estavam feridas. Ele massageou as bochechas e o maxilar, permitindo que a distância entre ele e Claire aumentasse. Ele não queria que a irmã ou a mãe se preocupassem com assuntos masculinos como as finanças da família. Antes de morrer, o pai nunca permitiu que esses assuntos perturbassem as mulheres da casa. Para o jovem barão, revelar a elas a verdade sobre seus investimentos imprudentes seria admitir seu fracasso como sucessor, filho e irmão — isso, ele não poderia conceber. 

Carlota olhou para o céu, com os olhos tão cansados de tanto ler, que já não suportaria ver mais uma linha sequer em sua frente. Ela ponderou qual seria a probabilidade do irmão odiá-la se ela esperasse pelo retorno dos pombinhos apaixonados no conforto de sua casa. A jovem se deitou sobre as costas, buscando por formas nas nuvens. Ela listou as formas que viu mentalmente: um cachorro, um coelho e duas maçãs e uma cenoura. Depois, deitou-se de barriga para baixo e saboreou o doce que trouxe de casa para o caso de uma emergência romântica — Matteo e Claire estavam demorando uma eternidade para voltar! Por fim, cansou-se e abriu o livro novamente, exatamente onde havia parado, torcendo apenas para que eles voltassem antes de escurecer — ela estava começando a ficar nervosa e, quando os primeiros raios de sol desaparecessem, ela certamente se levantaria e buscaria o caminho de casa.

— Ah, você voltou! — Carlota fechou o livro tão ansiosamente, que esquecera mesmo de marcar sua última página. — Ela aceitou?

A pergunta foi um golpe certeiro na ferida recém-aberta. Ele encolheu os ombros e enfiou as mãos no bolso da calça, olhando para baixo. Matteo carregava um semblante triste demais para um suposto noivo e, além disso, suas roupas estavam amassadas e sujas de terra. Se não conhecesse bem Claire, a garota certamente a teria acusado de atacar o pobre rapaz.

— Não é comigo que ela quer se casar — respondeu, sucinto, torcendo para que a irmã tivesse o bom senso de não fazer mais perguntas.

Diante do silêncio pesado que se instalou, Matteo inspirou e expirou profundamente, antes de mudar de assunto: — Onde você estava? 

— Oras, eu sempre estive aqui. — Ela balançou o livro na frente do próprio rosto. — Você não esperava que eu corresse atrás dos cavalos de vocês, esperava?

— Sim! — Carlota arrumou a postura, sentando-se ereta e sem o apoio dos braços, apenas para que o irmão pudesse ver perfeitamente o seu olhar de indignação incrédula. — Ok, não, mas…

Ele soltou outro longo suspiro e se deitou ao seu lado, com um semblante derrotado. O sol já não brilhava com a mesma intensidade, mas — ainda assim, ele cobriu os olhos para protegê-los da claridade — e do olhar inescrupuloso de Carlota, principalmente. 

— Você rolou na terra ou o quê? — Ela bateu suavemente em uma mancha marrom no colete do irmão. 

Foi um erro seu, achar que Carlota não faria outras perguntas, curiosa da forma que era. Era óbvio que seus lábios estavam selados no que dizia respeito a Claire ou ao noivado que não vingou, mas ela não via razão para não questionar a aparência desarranjada do rapaz.

— O quê — disse, abrindo um sorriso maroto.

— Oras, se não é o piadista da família — Ela o cutucou, revirando os olhos.

Sutilmente, Matteo franziu a testa e, quase imperceptivelmente, recuou — embora  tivesse resistido ao impulso de friccionar a lesão. Carlota ergueu as sobrancelhas, certa de que havia algo que ele estava escondendo. Mesmo que por menos de uma polegada, ele havia se afastado dela. E, caso isso não fosse evidência o suficiente, ela viu sua mão tencionar se mover em direção ao exato local no qual seus dedos pressionaram, em seu flanco esquerdo.

— Aconteceu alguma coisa.

— Não — respondeu, suspeitosamente rápido. — Está escurecendo, deveríamos v-

— Não era uma pergunta.

Carlota se debruçou sobre o irmão, erguendo o braço dele para que ela pudesse ver o seu rosto — ao que, surpreendentemente, ele não ofereceu resistência. Só agora a garota se dava conta do círculo que variava entre tons de vermelho e roxo ao redor do seu olho. 

— Nossa, você está péssimo — comentou, com um ar de trivialidade. 

No entanto, apesar do tom brincalhão, ela estava genuinamente preocupada. Havia respingos de sangue em sua mão, cuja pele acima das articulações estava avermelhada e um tanto inchada. Carlota não era médica e nem adivinha, mas não precisava de mais indícios para suspeitar que ele estivera envolvido numa briga.

Perguntava-se se Claire estava bem ou se havia alguém rondando o parque com quem ela deveria se preocupar.

Carlota apontou para o rosto do irmão, depois, do topo da cabeça até a sola dos sapatos: — Quem fez isso com você? 

Ele deu de ombros, com um meio sorriso, sem a menor intenção de respondê-la. 

— Você deveria ver o outro cara.

A viagem para casa dos irmãos Benedetti foi barulhenta. Durante o caminho inteiro, a jovem de olhos verdes o encheu de perguntas e criou teorias que eram prontamente ignoradas pelo rapaz que, sem sucesso, tentava desesperadamente mudar de assunto. A viagem dos irmãos Evans, por outro lado, foi silenciosa e repleta de remorsos. Desde o ultimato do barão, sua relação com a irmã mais nova andava extremamente desgastada, como uma corda prestes a romper.

À medida que o álcool evaporava de seu corpo, seus pensamentos pareciam mais claros e racionais — e ele se lembrava agora, com um misto de vergonha e amargura, de estar engalfinhado a Matteo Benedetti ao som dos gritos desesperados da jovem de cabelos encaracolados — que não se dignificou a olhá-lo nos olhos uma vez sequer, desde que puseram os pés na carruagem. 

Jude suspirou pesadamente: — Minha reação foi exagerada, eu sei, e peço perdão por isso — o barão suplicou, mas não obteve resposta. — Claire, por favor. Olhe para mim. 

— Eu sinto muito, profundamente — continuou, os únicos sons na carruagem, além da sua própria voz, eram o soprar do vento e o galope incessante dos cavalos.

— Tudo bem. Não é como se você tivesse quebrado algo que já não estava quebrado — ela sussurrou, deixando os ombros caírem. — Só me deixe em paz. 

Ela girou o corpo ainda mais na direção da janela, apoiando a cabeça inclinada sobre os braços cruzados. O vento em seu rosto era o único alívio para o coração partido ao meio, angustiado demais para guardar rancor do irmão.

— Se tivesse aceitado de uma vez ser cortejada, isso não ter-

— Está bem — falou, baixinho, como se um esforço extenuante tivesse sido necessário para que tais palavras deixassem seus lábios. — Eu aceito. 

— Você… aceita? — Jude refez a pergunta, atento para quaisquer pegadinhas.

— Sim. 

— Eu ouvi corretamente?

— Se perguntar outra vez, mudarei de ideia.

Os cavalos pararam e, da mesma forma, o vento não mais soprava seus cabelos. Antes de descer da carruagem, Claire limpou as lágrimas que deixaram trilhas brilhantes em suas bochechas e pingos escuros em seu vestido. Ela não aceitou a ajuda do irmão, preferindo o apoio do cocheiro para descer sem o risco de tropeçar na barra do vestido.

— O que há em ser cortejada por alguns rapazes que a deixa tão infeliz? — questionou, parado na soleira da porta.

Embora fosse severo com a irmã, Jude não sentia prazer algum em vê-la sofrer. Era exatamente o contrário: matava-o por dentro ser o culpado de toda sua dor. Ele queria que as coisas fossem mais fáceis para os dois, mas não sabia como mudá-las ou sequer por onde começar. Embora nunca tenha sido sincero com a irmã sobre as dificuldades financeiras da família, tampouco fora Claire sobre seus desejos, expectativas e paixões. Se existisse alguém em seu coração, ele não hesitaria em fazer o que estivesse ao seu alcance para arranjar um casamento entre os dois ou, ao menos, tentar.

— Por favor, eu não quero falar sobre isso — pediu. — Precisará se contentar com a minha resignação.

Ela deu as costas para o irmão, subindo silenciosamente para o quarto. Sozinha, sentia-se livre para deixar a torrencial de lágrimas escorrer. Claire se sentou no chão, apoiando as costas na parede e abraçou os próprios joelhos. Ela sonhou com o romance perfeito, o casamento perfeito e o par perfeito por tanto tempo que agora não sabia mais com o que sonhar — sentia-se presa em um limbo estranho, perdida e sem saber para onde ir a partir dali — ou pior, ela sabia, mas nem por um segundo ansiava por isso.

Em momentos como esse, era impossível não sentir raiva do gênero que o universo lhe designou, certa de que o seu amor por esportes não poderia ser outra coisa que não uma piada de mau gosto. Ela era tão filha do falecido lorde Evans quanto Jude, o mesmo sangue corria em ambas as suas veias. No entanto, enquanto ao irmão coube herdar toda a propriedade do pai, a ela, restava se casar com alguém não muito detestável, para não manchar a reputação da família. 

Pela primeira vez em muito tempo, ela quis ser como as outras garotas novamente — bem versada, sem interesses em jogos bobos e, acima de tudo, prática — ver o casamento como um acordo econômico teria lhe poupado tanto sofrimento que, sem pensar, Claire se viu amaldiçoando o coração fantasioso que carregava no peito.

Destacando-a de seus pensamentos, ela escutou uma gaveta bater, os passos apressados de Jude e, por fim, o toc-toc em sua porta.

— O que você quer? — A garota fungou, e não se levantou. Ela não aceitaria ver Jude nem que ele estivesse pintado de ouro!

— Uma trégua, pedir desculpas. O que você preferir. — suplicou, infeliz por toda a tensão que a temporada social trouxera para a relação dos irmãos.

— Prefiro que vá embora.

— Trouxe algo para você do mercado. — Ele deslizou o folhetim por baixo da porta, esperançoso.

— Por que você acha que eu iria me convencer com um jornal?

— Porque tem uma coluna nova de fofocas… — disse, com a voz macia e um sorriso matreiro, confiante de que, não importava o quão zangada estivesse, Claire não resistiria. 

— Será o começo de um pedido de desculpas, então — resmungou, erguendo a nova edição do jornaleco na altura dos seus olhos.

Antes mesmo que pudesse expulsá-lo, Claire escutou o irmão se levantar e os seus passos se tornarem mais distantes. Uma surpresa agradável: aquela edição parecia ainda mais ácida que o normal.

Não temam, leitores, pois este jornal ainda tem histórias para contar. Diga-se de passagem, que muitas delas são indecorosas! Mas antes que me acusem, vejam que estas mãos apenas escrevem: as mãos de certos cavalheiros e damas desta cidade fazem muito mais.

Ela coçou o nariz com a costa da mão, e enxugou as lágrimas, para ler melhor. Olhos embaçados eram péssimos para se entreter com o sofrimento alheio e, ela tinha que admitir, o irmão fora muito esperto em lhe comprar com fofocas. Nada como um pouco de relatividade para aliviar os nervos: ela estava péssima, de fato — mas, ao menos, escapara de aparecer no jornal por suas pequenas transgressões. Se isso não lhe trouxesse muito conforto no momento, ao menos serviria como distração para sua cabeça zonza e coração partido. 

Iremos logo ao que interessa, sim? Pois bem, a principal notícia da semana, embora não seja de todo agradável, é o retorno de uma certa jovem após o fracasso retumbante de sua última temporada social. Apesar do queixo erguido e do nariz empinado dignos de uma Lady, a pobrezinha só pode se orgulhar de ter um irmão proprietário de um clube — o que, aparentemente, não será por muito tempo. Talvez um chá de humildade pudesse torná-la mais palatável, se é que seria o suficiente para um ego tão colossal — a única razão para que nenhum homem pareça ser bom o suficiente para nossa jovem debutante. No entanto, um passarinho azul me confiou que talvez este não seja mais um problema para nossa Caroline Bingley local, afinal… sem dote, sem casamento.

As publicações mais ácidas eram as suas favoritas, embora não tivesse muito orgulho de admitir — por medo de que a entendessem mal. Claire tinha pena dos coitados que eram alvos das publicações mordazes, sem dúvidas, mas o prazer de saber segredos que não deveriam ser públicos era estranhamente satisfatório — além disso, gerava pautas para discutir com as outras moças em eventos que, de outra forma, seriam entediantes. 

E enquanto os negócios de rapazes respeitáveis não vão nada bem — o que certamente traz aflições à família — há novos rostos nos bairros mais nobres de Londres. Um homem distinto foi visto procurando residência fixa, acompanhado de Henry Dashwood. As más línguas dizem que é uma figura de origens pobres, mas não se sabe a verdade. O fato é que tem arrancado suspiros das donzelas mais recatadas, e ele ainda foi observado na Bloomfield & Clove, admirável perfumaria. Teremos outro motivo para visitar o estabelecimento?

Vamos aguardar. Novas aventuras virão e, quem sabe, novos escândalos.

Poucos remédios eram tão eficazes quanto o entretenimento fútil para resgatá-la de uma realidade amarga e, tão certo como o cantar dos passarinhos, o germinar das plantas e o nascer do sol, era um novo escândalo na alta sociedade — e Claire, assim como esta autora que vos fala, não poderia estar mais ansiosa por ele.

 


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Notas finais do capítulo

Nem tudo o que está escrito aqui é 100% realista. Tentamos recuperar informações da época sempre que possível, mas o objetivo da fic é a diversão!
E este capítulo delicioso foi escrito pela Lily Masen, minha queridíssima que é a melhor pessoa no telegram (desculpa não responder de vez em quando, o telegram não manda notificações direito KKKKK)



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