Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 10
Olhares & Hesitações


Notas iniciais do capítulo

Opa! Deu uma atrasadinha, mas saiu!



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Quando Beatrice recebeu o convite para um evento ao ar livre de pintura, ela não pensou muito sobre o que — ou quem — iria encontrar lá. E, embora sua mãe fosse a favor da ideia da filha socializar mais, ela própria também não estava achando má ideia. Os parques eram sempre bem apreciados e se envolver com outras pessoas que partilhavam suas paixões artísticas seria bem-vindo. Afinal, mesmo que gostasse da companhia de Margot, ela parecia muito ocupada com suas obrigações, e Aurora não apreciava tanto pintura.

Então sim, ainda que sua mãe estivesse mais inclinada a permitir aquela breve aventura por saber que a filha seria vista e possivelmente cortejada, desta vez Beatrice não resmungou. Pegou seu material de pintura novo, escolheu uma roupa confortável e arrastou uma criada — Violet — até o local, pois quando a criada ia junto, seu irmão mais velho pouco lhe enchia a paciência com surtos de ciúmes. Mal ele sabia que não era difícil subornar Violet a lhe dar mais liberdade, já que a pobre ainda era jovem e queria fofocar com outras acompanhantes. Enquanto não fizesse nada muito escandaloso que prejudicasse o emprego dela, Violet não acharia ruim ceder aos caprichos de sua senhorita.

No início da tarde, Beatrice fez alguns avanços. Escolheu um lugar à sombra, em uma distância média de outras jovens perto do lago — um espaçamento seguro que permitia tanto uma conversa amigável quanto o silêncio, caso não conseguisse conversar muito. Falou um pouco do clima como quem não quer nada, recebeu respostas educadas e devaneios sobre a qualidade das tintas. Sua estratégia, porém, foi falha: não demorou para que as outras jovens se agrupassem como velhas conhecidas.

E Beatrice não sabia bem como adentrar a conversa.

Talvez fosse só a natureza da atividade de pintura que favorecesse o seu silêncio, talvez fosse o receio de dizer algo errado em um idioma que não era seu. O fato é que ela ainda estava sentada sozinha e os minutos escorreram. Ela viu o grupo de damas mais próximo se afastar ainda mais, sentando-se juntas para um piquenique com outras pessoas, provavelmente a família de uma delas. Enquanto pincelava seu caderno de aquarela, sentiu falta de Margot, de Aurora e até de Violet. 

Antes que sentisse mais pena de si mesma sem, de fato, arrancar forças para tomar iniciativa e mudar sua própria situação, uma voz grave surgiu de um ponto próximo.

— Ah, aí está você.

— Frederik! — Beatrice quase derrubou o pincel da mão. — Digo, senhor Strawell. Eu não sabia que estava aqui.

Ele riu e chegou mais perto, naquele dia vestindo um tom vivo de vermelho em seu colete, sem a casaca por cima. Seu aspecto ficava ainda mais casual desta forma, culpa do calor morno da tarde. 

— Ora, acho de péssimo gosto os anfitriões não comparecerem em seus próprios eventos sociais.

— Espere, isso quer dizer que…

— Por favor, senhorita D’Angelo. — Ele levantou uma única sobrancelha. — Isso estava no convite.

Beatrice franziu os cenhos para se lembrar: recordava-se do local, da data e horário no convite e a esperança de fazer mais amigas no lugar. Ah, e sim: o patrono do evento estava avaliando as pinturas, mas Beatrice pouco se importou com isso. Não queria nenhum prêmio — nada material poderia satisfazer seus anseios — e, na realidade, pensava que era algum homem de certa idade com tempo de sobra para observar aquarelas. 

Oh, céus. Frederik Strawell havia planejado a tarde de pintura.

— Ora, senhor Strawell… Mil perdões, eu não me atentei a isso.

— Se continuar a me chamar de senhor Strawell, vou achar que não me quer chamando-a só de Beatrice. O que, lógico, é perfeitamente aceitável, mas já lhe disse que é um nome adorável demais para…

— Não ser dito.

Ele sorriu satisfeito por ela se recordar de algo que havia dito antes.

Exatamente

— Hm, Frederik. Por que fez esse evento?

Ele puxou uma das cadeiras próximas que haviam sido dispostas para o pequeno evento — uma das cadeiras que Violet pouco usou antes de se levantar atrás de fofocas — e se pôs a falar. 

— Eu tenho dois sólidos motivos para isso: Primeiro, realmente tenho uma ideia para um novo negócio e as aquarelas estão envolvidas. Perdão se não posso falar mais sobre o negócio. Segundo, eu precisava de um evento que você comparecesse, pois precisamos de mais estratégias para aproximar meu primo e sua amiga, a senhorita Wintergarden. 

Beatrice mal podia acreditar. O segundo motivo era deveras mais indecoroso que o primeiro, mas deste ele não fizera segredo algum. 

— Um evento inteiro como uma isca?

— Sim. E pelo visto, você é um peixinho bem faminto para ter mordido a isca assim, tão fácil. Pensei que viria por ter visto meu nome no convite.

Ela fingiu se focar na pintura, limpando o pincel na água. Inacreditável. Será que sua expressão intrigada e, infelizmente, um tanto atraída por Frederik era tão aparente naquela tarde em que comeram juntos no parque? Ou ele tinha um pensamento muito fantasioso para achá-la tão fácil ou seu interesse por Frederik ficara deveras evidente. Ainda assim, a insinuação a deixava perplexa. Ela não queria parecer tola e estúpida por aceitar qualquer coisa só porque Frederik tinha um maldito carisma.

— Você é tão honesto ao dizer isso que nem consigo condenar sua própria adoração.

— Como é bom estar com alguém que aprecia minhas qualidades mais evidentes.

Infelizmente, ela riu.

— Por favor, Frederik! 

— Eu pediria para a senhorita fingir uma explicação de sua pintura enquanto faço uma expressão concentrada, para assim conversarmos sobre nossos planos sem que surja algum comentário indecoroso. Mas devo dizer que sua pintura captou minha atenção, de fato.

Que planos, Frederik?

— Você é uma das únicas que captou bem o movimento humano. As cores estão ótimas também. Lá na frente são amigas suas?

Beatrice bufou. Primeiro, Frederik abusava de sua boa vontade com algum plano mirabolante que ele ainda não lhe dera a mínima explicação. Segundo, a pintura que se formava na tela era um tópico delicado: Beatrice havia pintado as jovens damas logo à frente, rindo de alguma coisa que ela só conseguia imaginar. Riam de algo tolo, de homens ou delas mesmas? Ela não sabia e queria estar lá, com elas.

— Não, eu… Eu não as conheço.

Hm. — Disse, pensativo. Ao contrário do que Beatrice supôs, ele não pressionou por mais detalhes da pintura e sua expressão era pensativa. No entanto, logo perguntou de uma amiga de ambos. — E Margot?

— Trabalhando.

— Ah, o evento de astronomia. Entediante. Você vai?

— Minha família foi convidada, mas… Não sei, não queria me sentir sozinha. Meus irmãos certamente arrumarão outras pessoas para conversar, minha mãe também e… A sensação de isolamento é mais palatável quando estou verdadeiramente sozinha.

Frederik soltou outro “hm”, concentrou-se na pintura e depois dispersou seu olhar no restante do parque. Isso fez com que ela se lembrasse mais uma vez daquela tarde no parque, quando Frederik revelou-se uma pessoa muito mais profunda do que os olhos inicialmente poderiam ver. Que outros segredos doces aquele homem carregava por detrás de seu sorriso fácil e jeito presunçoso? Não houve tempo para essas reflexões quando ele de súbito perguntou:

— E se eu for?

— Achei que não quisesse comentários indecorosos. — Ela riu de nervoso. — Quer parar no jornaleco de fofocas local?

— Você está subestimando minha capacidade de tornar esses ambientes um verdadeiro território neutro para conversas com o sexo oposto. Ademais, — Cruzou os braços. — Margot estará lá e tenho a impressão que ela vai se preocupar com coisas a mais do que trabalho durante a noite. E… podemos fazer com que Aurora e Henry estejam no mesmo ambiente.

Sua boca quis dizer sim apenas pela imprudência, mas Beatrice se dignava a ser mais inteligente do que isso. Considerava que Aurora e Henry Dashwood se davam adoravelmente bem, no entanto não acreditava em estranhas coincidências forjadas para juntar um casal e muito menos achava provável influenciar alguém. Seria mais fácil ajudar se ao menos Aurora tivesse comentado algo sobre o futuro conde de Stormhold, mas a outra moça era acometida por timidez.

Não que ela pudesse condená-la por essa característica.

— Um momento, quando concordei em adentrar seus planos? Eu só me lembro de concordar em ser discreta e não espalhar esse seu plano por aí.

— Eu até poderia argumentar, com base na sua falta de atenção ao convite, que sua memória é discutível, mas seria um argumento muito raso. Mas se você não quiser participar disso, como poderei te obrigar?

Ela pincelou com a cor verde para fazer a grama, querendo ter mais tempo para pensar. Decidiu dar uma resposta vaga para ele.

— Você ainda nem me recompensou por antes.

— Isso está sendo arranjado.

Ela agradeceu por não estar virada para ele, pois seu rosto certamente deveria estar salpicado de rubor. Em uma fração de segundo sua imaginação tinha viajado longe, mas Beatrice foi capaz de trazer a consciência para a conversa atual, questionando outro ponto importante para aquele plano.

— Por que acha que vou conseguir coisa alguma? Gosto de Aurora, mas somos diferentes.

— Você é perspicaz para pensar em alguma conversa e ficaria mais fácil se Aurora fosse mais receptiva a Henry. Os Wintergarden são bem tradicionais e, por mais que não pareça má ideia casá-la com um futuro conde, temo que eles prendam demais a menina. Pobre criatura irlandesa.

Isso era verdade. Beatrice suspirou, incomodada por ter a oportunidade de fazer algo diferente na vida e enxergar que poderia se arriscar muito justamente por esse pequeno capricho seu. 

— Minha vida pode não ser muito interessante, mas não quero problemas.

E no fim, Frederik apenas riu.

— Céus, você se preocupa demais. Vejamos de maneira mais pragmática: até o momento, tudo o que peço é que você compareça a eventos com sua amiga. — Ele gesticulou, deixando as palmas abertas e a expressão facial transparente. — O que há de mal nisso? Vamos, também não desejo ser inoportuno: se não quiser mais que eu embaralhe sua vida, pode me dizer agora.

Mas era duro admitir que sim, ela queria embaralhos na própria vida. Nada que fosse irremediavelmente manchar a sua reputação ou a da família, mas havia em si uma vontade crescente de ser um pouco mais do que uma jovem um tanto solitária em Londres após ter se mudado da Itália.

 — Ah, Frederik. — Desistiu de ir contra seus desejos estúpidos. Frederik tinha, de fato, um sorriso muito bonito para isso e, caso Beatrice notasse que as coisas estavam piorando, bastava que não saísse por um tempo para evitar encontrar com ele. Ou com Aurora e Henry. — Veremos. E, caso de fato eu apareça neste evento, espero que me recompense por isso.

Frederik piscou em silêncio por alguns segundos, depois sorriu, de modo que Beatrice ficou satisfeita com sua resposta ambígua. Não queria imediatamente aceitar o que ele dizia, mas desapontá-lo lhe parecia egoísta, ou pior, entendiante.

Por favor, você está falando com o melhor mercador de Londres. Só não diga isso a Salazar, ele pode ser sensível. — Ele se levantou, encarou mais uma vez a pintura de aquarela e depois fitou os olhos da jovem dama com intensidade. Pegou sua mão, mesmo com algumas manchinhas de tinta, e beijou seus dedos em um elegante gesto de despedida. — Obrigado, Beatrice. Henry e Aurora podem ser lentos, mas vamos ajudá-los, sim?

 

 

Não estava entre os pensamentos de Aurora Wintergarden ver algum conhecido na loja de tecidos e materiais de costura quando ela saiu novamente de casa. Tinha aproveitado o caminho da igreja, onde havia deixado algumas doações em uma cesta com o padre Ward, e depois passou pela loja para conferir algum tecido apropriado para sua encomenda, a qual fazia em segredo. A família que a acolhera preferia que suas atividades artísticas abrangessem tópicos verdadeiramente nobres, como música ou pintura, conforme os costumes de qualquer donzela educada. Portanto, esse seu impulso pela costura não era encorajado e sequer bem visto, muito menos se soubessem que havia aceitado costurar um colete masculino. 

Os Wintergarden não diziam explicitamente tal coisa, mas era nítido o quanto tentavam desvincular certas naturezas de Aurora, tais quais como seu sotaque e o impulso de ser solícita nos afazeres mais práticos do dia a dia — mais domésticos. Afinal, ela não deveria ser confundida com uma criada. E ainda que hoje a jovem não fizesse metade do que fazia na Irlanda, junto a sua família real e de poucos recursos materiais, havia ainda esse resquício da costura. Interessante é que os Wintergarden apreciavam seu temperamento cordato, que suscitava elogios honrosos sobre a integridade da família. Oh, como a jovem tinha coração bondoso e ia a igreja ajudar os necessitados! Essa parte não era fraude alguma, embora outras coisas perigosas crescessem em seu coração: a sede por algo novo.

E mesmo que Aurora não gostasse de mentir, já estava virando um costume estranho agir em silêncio. Primeiro, com as doações extras à igreja. Depois, sobre o estranho pianista. Agora…

Aurora já estava dentro da pequena loja de artigos para costura quando se deparou com Henry Dashwood avaliando algumas amostras de fitas de cetim no balcão. Ela ficou parada observando-o por alguns instantes; o balconista disse algo dos fundos da loja que ela não prestou atenção, mas que Henry respondeu com um sorriso. Não fazia ideia da razão que o trouxera ali — bom, na verdade podia imaginar, mas não tinha certeza — e de repente se sentiu uma intrusa, olhando-o enquanto o homem estava tomado por pensamentos e passando os dedos levemente nas dúzias e dúzias de fitas coloridas penduradas. O gesto era delicado, com um quê de íntimo. Seriam as fitas de cetim suaves? A mão dele macia?

Aurora lembrou-se das próprias luvas que vestia sempre. Lembrou-se de como Henry segurou seus pulsos e ajudou-a limpar o chá que derrubara em si mesma, no parque.

Todas as suas indagações mentais foram quebradas quando ele a encarou. Aurora engoliu seco e logo apressou-se em oferecer um sorriso educado:

— Oh, senhor Dashwood. Não esperava encontrá-lo aqui. Veio pegar um tecido especial para seu colete?

Se ele estava incomodado ou intrigado por flagra-lá encarando-o, Henry absolutamente não transpareceu. Pelo contrário, endireitou a postura com a sua bengala elegante e continuou a conversa com aquela sua costumeira expressão calma e amável.

— Na realidade, não era minha intenção, embora possa usar a oportunidade para isso. Preciso até conversar de novo com a senhorita sobre a encomenda. — Ele logo emendou, de repente sério. — Refleti sobre meu pedido e agora vejo o quanto foi insensato. Seus pais não iriam querer que ocupasse seu tempo com um trabalho assim.

Aurora ponderou por alguns instantes. Era bom que a loja estivesse vazia e que o balconista estivesse no estoque, pois assim havia menos chances de mal entendidos e fofocas para o jornaleco popular. Afinal, que negócios Aurora, uma senhorita solteira, estaria tratando com Henry Dashwood, o talvez futuro conde de Stormhold? No fundo, ela sabia que ele estava certo. Era um pedido insensato e ela não poderia ser considerada — por seu atual status mais nobre — uma costureira, muito menos alfaiate. E se tinha um pouco de experiência com roupas masculinas, era por costurar e fazer remendos ainda na Irlanda, nas roupas de seu pai e irmãos. Não deveria concordar, mas…

— Eu… — A recusa perdeu força em seus lábios. — Eu gostaria muito de tentar, senhor Dashwood.

— Não quero causar problemas.

— Acho que consigo lidar com eles, caso algo surja de fato. Não é nada absurdo.

Um sorriso incontido escapou de Henry Dashwood, de um jeito tímido e simultaneamente ladino: Uma sombra de seu parentesco com o charmoso Frederik Strawell. Era quase como se ele soubesse que não se tratava apenas de um colete, e sim da aventura de uma inócua transgressão que Aurora poderia cometer em um lar tão tradicional.

E então ele pegou pequeno envelope verde de um bolso interno de seu casaco e mostrou-o a Aurora.

— Bom, então acho que devo lhe entregar isso. Minhas medidas.

Depois de agradecer com rubor na face, sobrou uma dúvida na moça: 

— Mas se não estava aqui para escolher tecidos para você, por que veio?

— Estou ajudando um amigo. Eu não diria que ele tem um gosto ruim para roupas, mas talvez seja necessário maior requinte. Ou melhor, um pouco mais de cor. O pobre homem só gosta de preto! Só que ainda assim, não entendo muito sobre moda. Quer dar uma opinião?

Ele mostrou os tecidos que estava avaliando no balcão e todas as amostras denotavam não somente bom gosto, como também o luxo de optar por tecidos de alta qualidade como lã de caxemira, linho e seda. Os tons variavam entre o discreto azul marinho e a notável cor turquesa.

Aurora se viu acometida pela lembrança de olhos muito azuis do sujeito que viu na igreja, Michael Caine, mas não poderia associar a riqueza daqueles tecidos ao estado financeiro do pianista — que, na ocasião, até admitira receber doações do Padre Ward. Pobre homem. Soltou um suspiro rápido e tentou não pensar muito nele, voltando-se à beleza dos tecidos e do bom gosto de Henry.

— Tem certeza de que não entende muito?

— Assim você me envaidece.

O balconista voltou com outras amostras para Henry e logo adiantou-se em um pedido de desculpas pela demora, tanto para ele quanto para Aurora. Mas o tecido que a jovem dama desejava também não estava ali pelas estantes ou gavetas, então logo o rapazote se perdeu no estoque de novo. A compra de Henry, pelo menos, acertou-se em alguns metros de tecido que seriam entregues ao final da tarde para a alfaiataria em Old Bond Street, onde os mais nobres cavalheiros encomendavam suas roupas. 

Mas Henry não partiu após finalizar a compra, não imediatamente. Com o silêncio que restara aos dois, Aurora ousou fazer uma nova pergunta:

— E se me permite a curiosidade, onde vai usar o seu colete?

— Bom, — Ele tamborilou os dedos sobre a bengala e, se os olhos de Aurora não a traíam naquele momento, poderia jurar certo rubor na face dele. — Há um evento bem interessante na cidade, da sociedade de astronomia. O que acha?

A cor cinza e prata das estrelas cairiam muito bem em Henry Dashwood. Não, é claro, que ela fosse dizer isso com todas as palavras.

— Acho que está me dando ideias. Quer me ajudar a escolher o tecido?

Hm, não. Confio no seu bom gosto. Me surpreenda. Mas, acho que lhe pedirei outro favor. Não quer ir neste evento? Digo, todos estarão convidados porque a sociedade de astronomia…

E antes mesmo que Henry terminasse a frase ou ela própria pudesse se conter, a resposta empolgada fugiu da garganta.

— Oh, eu… Eu adoraria! 

— Sério? — Primeiro, a incredulidade por parte dele. Depois, euforia. — Ah, ótimo! A família Wintergarden receberá o convite.

E se foi, não sem antes oferecer um aceno educado.

Quando aceitou o convite, Aurora estava pensando um pouco mais em ver a reação das pessoas ao vê-lo com um colete confeccionado por ela do que algo mais neste evento noturno ao ar livre. Mas não teria Henry Dashwood captado sua especial atenção? Sem dúvidas, entretanto o enigmático azul dos olhos de outro alguém ainda nublava os sentimentos da irlandesa.

 

 

Festas grandes costumavam, ironicamente, ser muito íntimas para Hanabi. Sob o véu da noite e o burburinho da multidão, era comum testemunhar maior vulnerabilidade nas pessoas: uma dança que o casal jura que é apenas uma dança entre tantos outros dançarinos, declarações encorajadas por álcool, flertes sem intenção alguma de se concretizarem… Ah, e finais de festa. Sempre tão docemente melancólicos. Mas ao contrário de muitos, Hanabi apreciava começos de festas também.

Não que seus irmãos ou seus pais fossem apreciar a festa na qual estava, mas Hanabi considerava-se segura em mais um evento privado de Lorde Harrington. Afinal, nenhum comentário sobre convidados de suas festas escapava afora, já que todos — convidados e criados — tinham certo apreço pela vida e Elliott Harrington não era nada leniente com fofoqueiros. Apesar da jovem dama duvidar que a maioria dos boatos envolvendo o jovem Harrington fossem verdadeiros, não podia deixar de notar que a postura do homem exalava uma aura de perigo, característica que sua bengala elegante só reforçava. Parecia crível que ele revelasse uma lâmina afiada da bengala só para cortar a língua de algum tolo. Hanabi também não descartava o uso de veneno.

Ainda que ao lado de Brett — um rapaz presente ocasionalmente nas festas — Elliott adquirisse uma postura mais amena, não era sábio fazer algo que pudesse irritá-lo. Muito menos apontar justamente essa proximidade dos dois com más intenções.

O fato é que, embora ela não fosse às festas de Lorde Harrington em busca da depravação que certamente existia ali, tratavam-se de oportunidades para deixar certas inibições de lado e… para jogar cartas descaradamente. Mais para jogar cartas, pois mesmo que a curiosidade lhe atiçasse a observar toques mais ousados entre casais ou pessoas entrando e saindo de quartos, a prudência a mantinha firme em sua castidade. Ainda era interessante, porém, abrir bem os olhos para a sociedade londrina que se revelava nas festas. 

Como todos podiam fingir tão bem? E quais eram as máscaras e rostos verdadeiros: aquilo que mostravam neste ambiente lascivo ou durante o dia, com a luz dos bons costumes? Hanabi não fazia ideia e, na sinceridade de seu coração, também buscava entender melhor a face que usava. Seria uma farsa?

Não havia uma resposta. Entretanto, Hanabi considerava melhor vir a uma festa depravada na qual ninguém esperava algo dela do que mais um maldito evento formal cheio de expectativas. Ali, não tinha que se apresentar ou atender os desmandos de Hikaru, seu irmão mais velho. Era irônico como aprendera a fumar e jogar cartas com Hikaru e Hideo, mas agora era recriminada por tais hábitos. Francamente!

Ela ainda estava sozinha na área da mansão dedicada aos jogos, embaralhando cartas em um gesto despreocupado. Um crupiê conferia as cartas de uma outra mesa e as pessoas chegavam aos poucos, gradualmente perdendo o acanhamento. Houve um dia que Hanabi foi mais tímida, mais doce e, surpreendentemente, mais alegre. Isso foi se desgastando conforme os anos foram passado e os conflitos na família persistiam. E se nos anos em que viveu nas terras de sua mãe do outro lado do mundo sentiu-se uma estranha, estar de volta a Londres tornava-a quase estrangeira de novo. Sim, era inglesa e tinha como provar isso com orgulho, mas seu nome provocava as perguntas de sempre e ela própria estava sentia-se diferente de quando partiu. Não era mais uma menina. Não mais acordava de bom humor.

Quem sabe fosse isso, enfim. Hanabi estava não somente nos limiares de dois países, mas também de dois estados de si mesma. Ela afugentou os pensamentos ao largar as cartas na mesa para procurar um cigarro na pequena bolsa que trouxera, ciente que ainda estava cedo para fumar, quando levantou os olhos para o homem que havia parado do outro lado da mesa. Jovem, alto e com roupas que deixavam claro que, embora ele pudesse ser um pouco mais casual ali, até suas vestes mais descontraídas tinham um sólido apelo de riqueza.

Era provável que ele fosse um problema. E, quando o homem abriu a boca, sua voz macia lhe deu a certeza.

— Ainda sozinha, querida? 

Ela fez força para não revirar os olhos.

— Não estou interessada em me aventurar num quarto, senhor.

— Ah, uma proposta curiosa. — Sorriu, indicando a mesa com uma das mãos. — Mas se não notou, estou falando das cartas. 

Hanabi estreitou os olhos, entre a desconfiança e a vergonha. No fim, o orgulho venceu e ela não quis admitir que julgara mal o rapaz que, pelo o que ele próprio disse, queria somente jogar um pouco. 

— Um parceiro, então é muito bem-vindo.

Com um aceno, o homem chamou o crupiê. Por mais que as cartas já estivessem depositadas ali, o funcionário era responsável por conferir se não tinha algo suspeito. As apostas feitas nos eventos de Lorde Harrington não eram tão altas quanto no clube de cavalheiros de Anthony Hartridge, mas eram conhecidas por serem justas. Enquanto o baralho era conferido pelo crupiê, o rapaz que abordara Hanabi inclinou o queixo e puxou conversa mais uma vez.

— Lorde Harrington me avisou de uma certa raposa que surrupia as apostas gordas dos outros convidados.

A jovem dama sorriu. Não tinha feito nada de interessante com o dinheiro que ganhara nas apostas anteriores que fez. A satisfação de ganhar era mais valiosa.

— Decepcionado com a minha figura?

Ele estalou a língua e depois riu brevemente, fazendo com que seu nariz franzisse um pouco. Era uma expressão interessante de ser em um rosto com ângulos tão bem marcados. Se não fosse a suavidade de seu olhar, seus traços seriam naturalmente cortantes.  Naquele instante, poderia-se dizer que sua face era equilibrada.

— Um pouco com a cor. Esperava tons mais fortes.

— Ora, essa! — Hanabi admirou-se como seu gênero não foi o motivo da decepção do estranho, mas não iria admitir que suas vestes sofressem aquela desonra. 

Só porque preferia cores pastéis e delicadas? Por favor! Hoje estava trajada em um belo tom de flor de cerejeira: — As cores do meu vestido em nada afetam minha clara habilidade com as cartas.

— Pois eu digo o contrário. Está claro para mim que seus outros oponentes a subestimaram e este é um risco que não vou correr.

Ela ficou em silêncio por um momento. Tinha gostado de ouvir aquilo, mas a satisfação ia além dos jogos de cartas. É, era isso o que aflorava em seu peito afinal; sentia-se subestimada por sua família. 

— Parece-me competitivo.

Ele deu de ombros.

— Gosto quando estão a minha altura.

— E o que vamos jogar hoje, querido?

— Por favor, eu tenho modos. Primeiro as damas.

Baccarat e basset eram melhores com mais jogadores e mais dinheiro para ganhar — ou perder. Whist, por sua vez, demandava quatro jogadores e, embora houvesse dados com o crupiê para partidas rápidas de hazard, Hanabi desejava contar com algo mais do que pura sorte. Escolheu o piquet.

— Oh, sábia escolha, senhorita Westminster. — O rapaz comentou, esperando o crupiê cortar e distribuir as cartas. — Ouvi dizer que um pianista ficou deveras rico recentemente com esse jogo no Prince Parlour.

O meio da mesa ficou com as cartas restantes. Piquet não era um jogo com um baralho grande, bastavam trinta e duas cartas e um sistema de pontuações. Um tanto chato de se aprender no início, mas Hanabi havia aprendido bem — quem sabe Hikaru merecesse o devido crédito neste tópico — e ela propôs um desafio justo melhor de três. 

Mas não era isso que a fazia pensar com as suas cartas em mãos.

Hm. Estou mais curiosa com o fato de você saber meu nome.

— Ora, todos acabam se conhecendo nas festas de Lorde Harrington.

Ela o encarou firme por detrás dos desenhos das cartas.

Curioso. Não conheço você.

O rapaz fingiu que pensava sobre as cartas, quase como se estivesse desinteressado com o assunto, ou como se não fosse de fato importante. E mesmo que isso fosse verdade, Hanabi gostava de saber com quem estava falando e não conseguia se deixar levar pela atuação dele, que tanto mexia e remexia nas cartas com seus dedos longos e pálidos.

— Pode me chamar de Romeu.

— Por favor. 

A risada genuína ele preencheu o ambiente e, em seguida, o tom de sua voz foi provocativo. Seus olhos claros refletiam as chamas das velas na festa, muito brilhantes.

— Algo contra nomes diferentes?

— Não, senhor. — Ela riu baixo, compreendendo bem a ironia. Gostava do próprio nome, por mais que fosse necessário admitir que era incomum na Inglaterra.  Tão rápido quanto ela decidia a primeira jogada, ela alfinetou-o com uma alusão ao famoso Romeu das peças: — Só temo que esse jogo será uma tragédia para você.

— Veremos, veremos.

A sorte e o azar sempre misturavam se nos jogos, essa era sempre a parte divertida: esforçar o intelecto para ganhar, por mais que as cartas não fossem muito vantajosas. E, se era realmente o esforço que deixava tudo mais interessante, Romeu estava oferecendo-lhe um excelente passatempo. Ele conversava com o crupiê, pediu bebidas e aperitivos para um garçom e fez piada quando perdeu a primeira partida. Depois, Hanabi provou do seu próprio veneno e notou que as jogadas dele tornaram-se mais sofisticadas.

Ficou claro que, no início, ele estava testando-a. E antes que Hanabi pudesse reverter a situação, ele ganhou a segunda partida. Estavam empatados.

— O que me diz, senhorita Westminster? — Ele ergueu uma das grossas sobrancelhas. — Sou um oponente adequado?

— Por enquanto, — Hanabi afinal resgatou um cigarro da bolsa e o acendeu em uma vela — estou entretida.

Começaram a terceira. Algumas pessoas pararam para assistir e o local já estava cheio, com outras pessoas jogando e muitas outras apenas conversando ou partindo para os quartos. Aquela era Lady de Loughrey? Talvez o Marquês de Blandford também estivesse ali para conversarem. Duvidava, porém, que Beatrice e aquela moça muito pequena e muito loira estivessem ali.

Ao mesmo tempo que Hanabi queria rir dos gracejos tolos de Romeu, dava o seu melhor para pensar em jogadas decentes e antecipar os movimentos dele. Era claro que aquelas piadas também eram parte de uma estratégia para desconcentrá-la, até que veio uma pergunta:

— Como a filha dos respeitáveis Westminster veio parar em uma festa do Lorde Harrington? Não lembro de ter visto algum de seus irmãos aqui e, é claro, suas irmãs são muito novas.

— Aparentemente, quando uma mulher fuma, supõe-se que ela faz outras coisas ilícitas ou questionáveis. — Ela deu uma baforada de fumaça para o lado. Ao menos ninguém poderia dizer que era má influência para as irmãs, pois sempre se continha na presença delas. — Fui convidada após um baile.

— Recebeu o envelope elegante do Harrington, não é? Dramático. Especialmente quando ele pede que o próprio mensageiro queime o envelope na sua frente depois.

— Certamente é uma prevenção aos fofoqueiros.

— Uma medida ao mesmo tempo chamativa.

Hanabi riu e fez sua próxima jogada.

— Nem me fale. Tive que dizer que um artista de rua me abordou na entrada de casa e fez questão de exibir seu número com chamas. Um criado poderia ter visto o fogo ou sentido o cheiro de fumaça.

— Se bem que os criados estão acostumados com cheiro de fumaça, não? Mas sinta-se honrada, ele só manda isso para pessoas especiais.

Em seus cálculos mentais, ela e Romeu provavelmente estavam com pontuações semelhantes. Diabo inteligente! E ainda a conversa era agradável. Hanabi bateu o cigarro de leve acima de um cinzeiro. 

— Recebeu um envelope assim, Romeu?

— Não. — Ele fez outra jogada rápida. — Minha vida já tinha aventuras demais para uma peça com fogo. 

— Que tipos de aventuras?

Antes que ele pudesse responder, um criado aproximou-se rápido e inclinou-se até dizer algo no ouvido de Romeu, que escutou com muita atenção. A mensagem foi curta, Romeu concordou com o que foi dito. Tão súbito quando veio, o criado se foi e um instante de silêncio se fez.

Romeu, por sua vez, levantou-se. Antes de falar, passou os dedos pelos cabelos de aspecto macio.

— Queira me perdoar, senhorita Westminster, mas devo me ausentar. Podemos pedir que o crupiê faça a contagem de pontos, se assim quiser.

— Mas a partida ainda não acabou…

A expressão dele tornou-se mais suave e generosa.

— Bom, podemos considerar isso um empate.

— Haverá uma revanche?

A última questão permaneceu suspensa no ar enquanto Hanabi entregava suas cartas ao crupiê, que já havia pegado as cartas que Romeu havia deixado na mesa. Eles se encararam uma última vez.

— Por que não? Foi um prazer ter o desafio de entretê-la.

— É bom quando estão a minha altura.

Romeu deu uma gargalhada e partiu, sumindo logo entre a multidão. De súbito, Hanabi se viu sozinha e pensativa de novo, intrigada pelo tal homem que muito conversava sem revelar muito de si. Ah, mais um final de festa melancólico. Poderia ao menos dizer para si mesma que fizera algo diferente naquela noite, já que não poderia dizer para mais ninguém.

Mas será que o destino estava lhe sorteando cartas boas ou nefastas?

 


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Notas finais do capítulo

Personagem novo, ihaaa! Amamos. Estamos curiosas para saberem o que estão achando. Nos vemos nos comentários!



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