Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 8
Negócios & Encomendas


Notas iniciais do capítulo

Olá, Shalashaska falando!
Eu e a Lily lamentamos a demora em postar conteúdo novo. A faculdade tem exigido muito de nós, mas não esquecemos de vocês!
E antes que comecem a ler esse capítulo, aqui vai uma explicação: eu e a Lily dividimos as personagens entre nós para facilitar a escrita, porém nestas últimas semanas não deu tempo para a Lily escrever. Para não ficarmos sem postar por um longo período, vai só a minha parte desta vez. Não fiquem triste se não virem o seu personagem neste cap, logo outros mais aparecem, ok? Muito obrigada pelo apoio incrível que vocês nos dão ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/798581/chapter/8

Salazar Roffman só não odiava Frederik mais do que a si mesmo naquele instante. 

Estavam na velha casa da família Strawell, uma construção de tamanho moderado e utilizado mais como um lugar de repouso, uma vez que a maior parte das posses e propriedades ficavam ao norte, no condado de Stormhold. Ali, próximo ao porto de Londres, Frederik Dashwood mantinha um escritório pessoal e a criadagem, que na realidade preocupava-se mais com os cuidados da casa do que com os caprichos de seu patrão — as suas viagens constantes e vida social agitada impediam que ele aproveitasse muito a residência.

O fato é que os primos Henry e Frederik, ao menos durante aquela temporada, estavam morando naquela casa de aspecto elegante e contido por fora — com muitas janelas e muitas cortinas — o completo oposto da personalidade nada discreta do seu atual proprietário. O escritório, um ambiente que Salazar considerava que deveria ser sóbrio e oferecer a menor quantidade de distrações possíveis, era desorganizado e repleto de itens das viagens de Frederik: um armário de madeira escura e decorada vindo direto da Índia, tecidos coloridos cobrindo um divã, um conjunto de porcelana chinesa — com xícaras usadas do último chá, e uma infinidade de livros, alguns cujo idioma Salazar não dominava. E, atrás de sua mesa, estava Frederik e sua maldita expressão presunçosa.

Certamente seu próprio sorriso enviesado era o artigo de sua maior estima.

— Sabe, senhor Roffman… — Frederik começou, sua voz um pouco arrastada. Chamava-o por seu sobrenome não por devido respeito, mas sim por deboche. — Você não me pareceu muito entusiasmado por festas quando nos encontramos no porto há algumas semanas. Sua mudança de espírito é… comovente.

O rapaz anuiu, forçando-se a manter o rosto impassível, embora fosse difícil esconder seu descontentamento com Henry na poltrona ao lado. Seu leal amigo era deveras observador com outras pessoas, mas não fazia um bom trabalho em ser mais discreto com suas próprias reações naquele instante. Mexia demais na bengala, acompanhava o rosto de Salazar com evidente cautela e… um pouco de divertimento também. Não culpava-o, na verdade, pois a situação não deixava de ser irônica: pela segunda vez consecutiva, Salazar precisava da ajuda de Frederik. 

E Henry já estava demasiado ocupado para que Salazar exigisse, além de sua companhia ao lidar com Frederik, mais solidariedade. A noite de apostas no clube de cavalheiros tinha sido movimentada, cheia de álcool e cigarro. Aparentemente, o pianista que tinha ganhado uma fortuna era um conhecido de Henry de modo que ele preferiu ampará-lo depois do choque da vitória. Salazar não sabia mais detalhes — apesar de suspeitar que em breve seu amigo contaria — portanto tinha que seguir com seus planos por conta própria.

— É apenas um evento da comunidade de astronomia, senhor Strawell. — respondeu, devolvendo a ácida cortesia ao chamá-lo pelo sobrenome de volta. — Desejam aumentar o interesse do público local pelo assunto para angariar mais fundos, então será um pequeno encontro aberto e noturno. 

O outro encarou-o fundo. Salazar considerava-se apto a lidar com o humor e os exageros de Frederik, por mais que não fosse sua atividade favorita. A sua educação falava mais alto do que a vontade de mandá-lo calar aqueles seus trejeitos de pavão, uma habilidade cortês que muito lhe era conveniente em negociações. No entanto, Frederik não era tão tolo quanto todos — incluindo Salazar — achavam que fosse. No brilho afiado de seu olhar, Salazar viu que seu adorável rival havia notado algo mais naquele pedido.

E era verdade. 

Na tarde do chá, episódio em que ele simplesmente se ausentou do parque com uma desculpa esdrúxula, Salazar tinha outros planos… Planos que envolviam uma luneta e certa dama um tanto desastrada. 

 

Em seu íntimo, Salazar não entendia a razão pela qual era levado por tamanho impulso. Não a viu mais do que uma única vez na vida, no baile, e ele não era inclinado a perseguir mulheres. Sim, já tivera relacionamentos no passado que encerraram-se por motivos não muito dramáticos, apenas visões de mundo e objetivos diferentes. Então por que ele estava descendo a rua e andando decididamente até a comunidade de astronomia no Observatório, se sua cabeça ainda jazia tão hesitante? Talvez fosse porque seus braços tivessem gostado de segurar o peso dela quando a impediu de cair do banco, ou então porque ela parecia inteligente sem ser esnobe. Seu lado mais poético falava que era porque ela guardava segredo do pedido que fez a estrela cadente e Salazar ardia por descobrir qual fora o desejo dela.

Então talvez fosse somente isso, curiosidade. Com essa conclusão em mente, ele adentrou a construção e pediu informações sobre os irmãos Berkshire e a emergência qualquer que eles foram atender, segundo o que Frederik Strawell havia dito no chá. Adentrou uma sala no último andar, vazia, exceto por uma pessoa:

Uma mulher ajoelhada em frente à base de um enorme telescópio, seus braços esticados por dentro do aparato e com visível dificuldade de apertar qualquer parafuso que estivesse lá. 

— Ah, você está aí. — Ela não se virou para ver o visitante e Salazar supôs que Margot pensava falar ao próprio irmão, James. — Já pegou aquela ferramenta que te falei? Meu dedo pode ser mais fino, mas não dou conta de… Oh

Afinal ela tivera o ímpeto de inclinar o pescoço e conferir quem tinha chegado, de modo que Salazar pode desfrutar da visão de seu rosto sujo por graxa, os cabelos loiros bagunçados. Tão diferente — e simultaneamente tão adorável — quanto na festa noites atrás. A expressão de surpresa dela, porém, trouxe uma satisfação estranha a Salazar, como se ele simplesmente soubesse que ela de fato desejasse vê-lo também… Embora, é claro, não tivesse realmente certeza.

A hesitação sumiu, um sorriso assumiu seu rosto quando a cumprimentou:

— Senhorita Berkshire…

Pirata Roffman!

Ele tentou evitar a risada ao ouvir o apelido, enquanto Margot punha-se de pé e apressava-se para fazer uma educada reverência. Não passou despercebido a ele que o equilíbrio da dama era questionável — pois quase caiu com o movimento demasiado rápido — e ela logo se dirigiu a uma bancada para colocar a ferramenta que tinha em mãos no seu devido lugar. O rapaz queria perguntar-lhe centenas de coisas: Como passara o dia? Frederik Strawell lhe fazia visitas frequentes demais? Como funcionavam todas aquelas ferramentas nas quais estava mexendo? E por que sua face era tão, tão adorável?

Apenas tirou o objeto que trazia em seu bolso interno e ofereceu-lhe:

— Trouxe sua luneta.

— Ah, sim, sim. Me dê só um minuto. — Ela alisou o avental um tanto sujo sobre o vestido de tecido firme e de tons terrosos, de linho, depois limpou os dedos num pedaço de pano para em seguida ajeitar os cabelos. — Perdão, estou um desastre.

— Ora, não há pressa. 

Ele engoliu seco ao ser encarado por Margot em silêncio, mas não demorou muito para que ela pegasse a luneta de suas mãos. Testou-a, mirando para pontos relativamente distantes no teto alto e de abóbada, depois apontou para baixo através da janela. Já não parecia tão desastrada assim, movendo-se com precisão e quietude. 

— Ah, a lente está como nova! Perfeita. 

— Apenas essa parte aqui não foi possível consertar o amassado direito. — Salazar aproximou-se dela, por detrás de seu ombro delicado, e indicou um ponto no dorso da luneta. Não pensou muito na proximidade entre si e a dama — quantas vezes tivera que ensinar um marujo sobre a localização das estrelas com quase o mesmo movimento? —  mas talvez estivesse perto demais de seu pescoço… Embora não quisesse sair dali. —  Teriam que trocar a peça inteira e não encontrei quem o fizesse com este mesmo metal, então mandei um ourives gravar algo mais interessante.

O símbolo astrológico de Leão estava marcado sobre o bronze, junto a data daquela noite. O ponto amassado já não era mais uma cicatriz de um acidente, mas sim parecia perfeitamente ter sido construído e decorado daquela forma.

Ela se virou e Salazar teve a certeza que a expressão dela poderia competir com a luz de qualquer farol.

— Que delicadeza! Muito gentil da sua parte, ainda mais vindo entregar aqui. Pensei que iria apenas receber o pacote em casa. — Então ela ergueu uma sobrancelha, sugestiva. — Veio apenas para isso?

— Oh, não, não. — Foi a vez dele quase desequilibrar-se ao buscar apoio na bancada. Não estava preparado para a mudança nos olhos dela. Se antes eram somente doces e gratos, agora tinham um brilho afiado, astuto. Ele passou as mãos nos cabelos em um gesto nervoso e sentiu a garganta seca ao responder: — Digo... Eu também sou interessado em astronomia.

Outra voz, mais grave e mais séria, invadiu a sala.

— É mesmo? — O homem loiro aproximou-se mais alguns passos,  carregando uma ferramenta longa na mão direita. Sua atenção alternou-se entre Margot e Salazar com evidente suspeita. Um cavalheiro qualquer não se incomodaria muito com a situação — a não ser que tudo fosse muito impróprio, a dama estivesse incomodada ou o próprio cavalheiro estivesse interessado nela — entretanto, algo dizia a Salazar que essas não eram as motivações daquele homem. Por sua aparência, não foi difícil descobrir quem ele era.  —  Não lembro do seu rosto entre os integrantes da comunidade, senhor...?

— Roffman. Já negociamos alguns itens, senhor Berkshire. — Fez uma mesura cortês. O outro não era ninguém mais do que o irmão de Margot, James Berkshire; um homem alto, na faixa de trinta anos e centímetros mais alto do que Salazar, mais do que ele gostaria de admitir. — É um prazer finalmente encontrá-lo.

— Ah, sim, sim. Apenas não nos encontramos cara a cara. — O rosto dele relaxou um pouco e ele logo largou aquela ferramenta que trazia em mãos acima da bancada. No entanto, era possível ainda enxergar desconfiança em seu tom. — Conhece minha irmã, Margot?

Ele abriu a boca, mas quem respondeu primeiro foi ela: 

— É o cavalheiro que ficou responsável de consertar minha luneta.

A desconfiança dele foi substituída completamente por descrença e choque:

— Você quebrou a sua luneta?

— Não disse nada porque sabia que iria ficar bravo. — Deu de ombros, graciosa. Salazar apreciou como ela habilmente conduziu a conversa, desviando a atenção do irmão para outro ponto sem que revelar que os dois encontraram-se a sós no jardim  durante a festa. — E agora que está tudo solucionado, não há problema algum.

— Conversamos sobre isso depois. — James suspirou. —  Senhor Roffman, quanto lhe devo?

— Ora, não é nada...

— E nós já nos acertamos, certo, Salazar?

Ele não sabia exatamente o que ela queria dizer com aquilo, então restou-lhe apenas concordar:

Sim, de fato.

— É bom saber que faz bom uso de seu salário, mas tenha mais atenção para que não seja necessário gastá-lo com mais acidentes. 

Ah, então era isso. Margot tinha um salário por seus trabalhos dentro da comunidade de astronomia ou então providenciado pelo irmão. Poderiam, quem sabe, ser iguais aos irmãos Herschel, dois astrônomos muito bem quistos por Vossa Majestade. E, sendo assim, fazia sentido que Margot tivesse maior autonomia para contratar serviços ou fazer compras sem a aprovação de James.

Embora nada demais tivesse acontecido entre os dois, James não parecia totalmente convencido, o que fez Salazar culpar o maldito jornaleco de fofocas por manchar a sua reputação. Se tivesse uma irmã, ficaria no mínimo preocupado também.

— Façamos uma pausa, sim, Margot? — Indicou cadeiras estofadas do outro lado do cômodo, convidando todos para uma breve conversa. Não demoraram para se acomodarem. — Sente-se, senhor Roffman. Adoro discutir sobre o tema com pessoas novas. Quando descobriu seu interesse pelas estrelas?

— Acredito que todos gostem de olhar para o alto, mas no mar é especialmente cativante. Então, naturalmente, minha resposta é quando comecei a viajar. — Ele se esforçou para soar polido e muito diferente do Salazar-dono-de-boxe-para-damas das fofocas. Causar uma boa impressão nas pessoas não costumava ser tarefa difícil, mas James tinha aquele semblante analítico de quem não se surpreendia fácil. —  As estrelas são importantes para nossa orientação também.

— De fato, de fato... Ouviu falar no evento que a comunidade está planejando para o final do mês? Não é certo que ainda vá acontecer, mas é algo notório.

Um teste. Se Salazar fosse realmente interessado em astronomia — e não puramente na irmã bonita de James Berkshire — estaria a par das notícias. Ele não estava, no entanto poderia contornar a questão.

— Cheguei há pouco tempo em Londres, senhor Berkshire, não tive tempo para me ater a tudo o que ocorrerá aqui. Esclareça-me, por favor.

James cerrou as pálpebras, mas prosseguiu com uma explicação.

— A comunidade científica deseja angariar investidores para o Observatório. Mesmo com os incentivos dos irmãos Herschel e de Vossa Majestade, o custo deste último telescópio foi substancial. Envolver a comunidade no assunto pode resolver a questão, e…

Margot interrompeu-o:

— Haverá um eclipse em breve! E seria uma oportunidade incrível de todos observarem o fenômeno.

— Mas é difícil convencer as pessoas que ficar à noite a céu aberto sem outras atividades é um passatempo interessante. Acredito que… — O tom dúbio dele retornou, os olhos azuis gélidos. — Dada a sua atração por astronomia e seu conhecimento em outras áreas, poderia nos ajudar a planejar o evento. O que acha?

De novo, se Salazar negasse, seria admitir que não era nem muito inteirado dos assuntos sociais em Londres e nem tão interessado em astronomia. Não era uma completa mentira e não era algo ruim por si, mas James certamente interpretaria tal coisa negativamente. 

E por que isso era importante? Tal como Salazar tinha fascínio pelos mistérios do mar, ele estava curioso em relação a Margot e não perderia uma oportunidade de conhecê-la um pouco mais, a despeito dos riscos. Se lidar com o irmão dela ou preparar eventos que não tinha nenhuma intenção anterior de participar fosse necessário, ele daria um jeito.

É claro. Posso manter contato com ambos para acertarmos maior detalhes.

— Na verdade, você pode falar com...

Comigo. — Margot abriu um sorriso meigo. Ter interrompido seu irmão de novo não soou irritante para James, não com aquela expressão adorável no rosto dela. Depois, o vislumbre daquele brilho afiado e astuto em suas íris, enquanto ela fazia alusão aos pensamentos inoportunos que os colegas da astronomia atribuíam à ela e seu gênero. — Foi quase unânime entre a comunidade que eu deveria ser a responsável por tornar o evento agradável às senhoritas londrinas, não é mesmo? Já que eu também sou uma e devo me preocupar com eventos.

James ancorou sua atenção no rosto dela com uma expressão séria. Não queria entrar num terreno perigoso para uma conversa que supostamente deveria ser neutra. Salazar pigarreou de leve e questionou:

— Nós já possuímos um orçamento?

— O menor possível. — Margot suspirou. — Os patronos da comunidade de astronomia não acham que devem gastar mais do que já foi gasto nesse último telescópio.

Não era sábio deixar-se atrair pelos olhos dela, a cor azul profunda que ondulava nos mares abertos e mais perigosos. Ainda assim, ele se deixou levar e encarava-a firme quando respondeu:

— Eu posso investir mais do que meu tempo na questão. 

 

E era por isso que Salazar se encontrava no escritório de Frederik. Henry Dashwood era deveras competente ao organizar eventos em Stormhold — por mais que não fosse o próprio Conde — no entanto, não tinha contatos de prestadores de serviços nas redondezas de Londres. Quem tinha era… Frederik Strawell.

E para montar o evento de astronomia, Salazar estava disposto a aguentar um pouco mais do sabor ácido de dialogar com ele, embora também se odiasse por tomar tal decisão.

Vestido de vermelho, Frederik traçou o caminho de sua cicatriz na maçã do rosto com as pontas dos dedos antes de apoiar o queixo com a mão. Parecia pensar em muitas coisas, mas nada disse, ou melhor, não disse nada do que realmente queria dizer. 

— Ah, isso será fácil de resolver. Um evento entediante para um público pacato. — Ele arqueou a sobrancelha. — O que me intriga é o seu súbito interesse pelo assunto. Primeiro, uma luneta antiga, depois, esse evento… 

A risada falsa que escapou de Salazar foi capaz de convencer até ele próprio.

— Ora, Frederik! Sabe tanto quanto eu que viajantes do mar gostam de estrelas.

— Ah, sim. Estrelas, o mar e… sereias. Não é mesmo?

— Está tão criativo quanto a autora do jornaleco semanal.

O outro só estendeu a mão entre as pilhas de coisas em sua mesa e arrancou uma folha em branco para em seguida buscar sua caneta de pena vermelha. Salazar não tinha descoberto muita coisa sobre a natureza da relação entre Frederik e Margot, mas não iria comentar algo envolvendo a moça por precaução. Só não pôde deixar de sentir a alfinetada ao ouvir a menção a sereias.

— Vou passar os meus contatos para que organizem um evento decente. — Ele começou a anotar alguns nomes e endereços em sua caligrafia simultaneamente elegante e enganchada. — Não é o tipo favorito que eu gostaria de frequentar, mas… Pode ser divertido, sim?

— O importante é trazer mais investimento para a comunidade científica. 

— Oh, sim, sim… Tudo pela ciência! — debochou do primo, que estava muito quieto até então, e então deu-lhe o papel com as recomendações — Deixem-me orgulhoso.

— Sem bebidas ou jogos, acho difícil.

Mas Frederik não ligou para a provocação de Salazar

— Ei, Henry. — Apontou a pena para ele. — Ajude-o, mas não muito. Quero ver como sairá um evento “Roffman” autêntico.

— Sua curiosidade pelo assunto é quase assustadora.

— Ah, é sim. — Agora Frederik encarava-o. — Você conseguiu chamar minha atenção, Salazar. Mas não sei se considera tal fato uma coisa boa, dada a sua expressão agora.

— Se deseja saber coisas mais empolgantes ao meu respeito, sugiro que continue lendo o jornaleco semanal. Não há nada muito interessante a ver na realidade.

Veremos. E se me dão licença, tenho que partir. Outro compromisso me aguarda.

— Ora, Frederik. — Henry tamborilou os dedos na própria bengala. Não comentou nada sobre o fato do primo estar sempre em movimento, daqui para lá em Londres; nem o lembrou de pedir que os empregados limpassem o escritório, coisa que muito alarmava Salazar. — O que mais pode acontecer num maldito evento de astronomia? 

Frederik deixou a questão em aberto, somente lançando-lhes um olhar enigmático antes de sair do cômodo. Salazar sentiu um arrepio agourento imediatamente, coisa parecida com que sentia quando previa uma tempestade em alto mar. Esperava que nenhuma surpresa fosse... Surpreendente demais.

— Então… Como começamos?

— Eu sugiro que faça uma lista com tudo que seus novos… sócios esperam desse evento. — Ele respondeu, sua expressão sugestiva. É claro que, diferente de Frederik, Henry sabia dos pormenores, como o fato de que Margot Berkshire era a principal envolvida na história. — Que tal uma carta, sim? Uma excelente forma de evitar a atenção do irmão dela.

O rapaz suspirou.

— Será?

— Bom, não vá com muita sede, é claro. — Ele apertou o ombro de Salazar. — Não sabemos se ele lê a correspondência dela ou algo assim, o que pode ser meio invasivo ou só curiosidade de saber como vai o planejamento. Comece devagar… E não seja muito formal. Uma vez recebi uma carta sua que mais parecia um relatório.

Ele queria dizer que era insensibilidade fazer troça de uma carta que tinha escrito muito provavelmente entre uma viagem e outra, atarefado demais para pôr seu coração em linhas, mas sabia que o amigo provavelmente estava certo. Ele levava jeito para esses assuntos e era particularmente dedicado aos livros de romance. Salazar só respondeu:

— São orientações demais para uma maldita carta, Henry.

— Tenha tato. — Argumentou, depois parou um momento e se sentiu na necessidade de completar: — E sensibilidade. Assim que ela te responder, vai ser mais fácil notar se Margot tem mais liberdade por cartas ou não, o que por sua vez vai te garantir mais liberdade para escrever de volta. 

— Receio em ir muito rápido demais. Aliás, parece que tudo está acontecendo muito depressa e eu tomei essa decisão impensada de investir em um… evento! — Suspirou e fechou as pálpebras, massageando as têmporas. Seria mais fácil subir num navio e fugir de todas essas confusões da cidade. — Mas se eu demorar, temo perder minha chance para algum concorrente.

— Você sabe se de fato existe um concorrente?

Salazar deu de ombros.

— Tenho minhas… suspeitas. — Não sabia se era má educação revelar que suspeitava um pouco de Frederik e sua estranha intimidade com os Berkshire, então nada disse. — E Margot, pelo visto, convive bastante com os colegas astrônomos, a maioria homem. Não me surpreenderia se ela tivesse algum pretendente secreto.

Henry riu.

— Tem que ser muito secreto para escapar da atenção de James Berkshire!

— Isso não está ajudando, Henry.

— Acalme-se, homem. Só escreva, sim? Com aquela sua letra elegante que nem as ondas conseguem obrigar sua mão a tremer.

Salazar inspirou fundo e se levantou.

— Vou para casa pensar em algo. Não consigo imaginar algo muito sensível em meio a este caos que Frederik chama de escritório. — Afirmou, encarando com desdém o modo que os mapas estavam dispostos, todos desorganizados ao lado da mesa. — E você, o que pretende fazer no restante da tarde?

— Ajudar outro amigo.

— O pianista?

Henry apoiou as duas mãos na bengala e se pôs de pé.

— Precisamente.  Deixe-me contar o que houve...

 ❦

Quando Henry Dashwood compareceu ao clube de cavalheiros de Anthony Hartridge semanas atrás, não imaginava que o tal pianista atrasado — alcoólatra e constantemente endividado — fosse Michael, um conhecido. Só sabia da existência do homem por Frederik, que tinha lá uma amizade estranha com ele, regada a honestidade, confiança e um quê de agressividade. Conversaram pouco no passado — e em todas as ocasiões Frederik estava envolvido — mas se Caine era um amigo verdadeiro de seu primo, Henry confiava nele.

Ao fim, encontraram-se por acaso no Prince Parlour na noite de apostas e puderam conversar um pouco antes que o status social Michael Caine simplesmente se transformasse por completo: de músico vivendo na penúria a proprietário de um dos negócios mais rentáveis de St. James's Street. 

E Michael Caine não reagiu muito bem à mudança.

Bebeu conhaque e depois provou da variedade de licores servidas no Prince Parlour. Anthony não apreciava escândalos ou problemas em seu clube — principalmente vindo de funcionários — mas naquela noite seu espírito estava mais leniente. Também, pudera! Por sua responsabilidade o pobre pianista tinha jogado na mesa de aposta e se tornado algo muito distante de pobre. Caine estava em um frenesi de descrença e mania, bebendo tudo o que via pela frente e tragando charutos importados. Não podia voltar para a pensão naquela madrugada, era perigoso; estava muito ébrio e carregaria muito dinheiro. Portanto, depois que os convidados partiram — incluindo Salazar e aquele seu amigo ruivo, o general Gallagher — Anthony e Henry cuidaram do pianista.

Michael pôs todo o álcool para fora durante a madrugada e só dormiu pouco antes do sol nascer, estendido com a postura torta num divã. Foi durante esse breve período que Henry pôde descansar um pouco. Ajudou a levar o pianista de volta à pensão onde morava ainda cedo na carruagem de Anthony, após um curto debate sobre onde ficaria o dinheiro dele até que ficasse sóbrio. E, assim como combinaram, Henry foi conferir como o seu conhecido estava e planejava orientá-lo a respeito de sua recente fortuna.

A pensão parecia vazia e aberta quando chegou, coisa que o fez questionar um pouco a segurança do local. Sim, ouvira dizer que o lugar servia café da tarde e por isso mantinha as portas do andar térreo todas abertas, todavia não existia nenhum cliente ou funcionário a vista. Só silêncio e um piano velho na saleta. Não demorou para ouvir passos de alguém aproximando-se dos fundos, onde ele supôs que ficava a cozinha: tratava-se da estrangeira chamada Irina Praskovia, a mesma mulher que os recebeu mais cedo com a voz preocupada e um sotaque charmoso. Trazia uma bandeja pequena em mãos, com nada mais do que uma xícara de chá e um diminuto biscoito ao lado. 

— Oh, senhor Dashwood. — Ela parou no lugar e, segurando a bandeja com um pouco mais de força com uma mão, fez um gesto com a outra, chamando-o. — Entre, por favor.

A bengala de Henry ecoou contra o piso de madeira ao chegar mais perto e ele não se esqueceu de fazer um breve cumprimento com o chapéu.

— Caine está acordado?

— Sim, e com uma terrível dor de cabeça. Eu até estava levando um chá, mas posso pegar mais uma xícara para o senhor se me der um momento…

Ele estendeu o braço esquerdo e pegou delicadamente a bandeja da mão dela.

— Permita que eu leve essa primeira xícara. — Henry notou que ela parecia um tanto hesitante, então optou por tranquilizá-la. — Prometo que a bengala não me atrapalhará ao subir as escadas.

— Bom, se bengala não te atrapalhou nem a trazer Michael mais cedo… — Ela riu e deu de ombros. — Logo subo para levar-lhe chá também. É o último quarto à direita no corredor. 

— Obrigado, senhorita Praskovia.

Seguiu as orientações dela — porque mesmo ajudando a trazê-lo pela manhã, não memorizou o caminho — e bateu à porta antes de adentrar o quarto. Henry Dashwood não era um tolo, pois sabia que muitas pessoas moravam em condições ainda mais modestas do que aquela pensão, e também não era esnobe apesar de viver constantemente cercado de luxos. Não estava em posição de julgar aquele quarto, mas preocupou-se ao notar que a isolação térmica ali não era boa e a tosse do pianista talvez não fosse só causada pelo cigarro. Michael estava sentado na cama, passando as pontas dos dedos nas têmporas como se pudesse dissolver a ressaca, quando afinal notou o homem à porta. Por sua vez, Henry colocou a bandeja sobre o móvel ao lado da cama e o cumprimentou com educação, tirando seu chapéu.

— Senhor Caine…

— Henry. — A voz rouca dele estava um tom mais grave, ainda que tentasse manter a firmeza. — Não precisava vir até aqui de novo.

Deu-lhe um tapa amigável no ombro e em seguida sentou-se à escrivaninha.

— Tome um gole, vai se sentir melhor. — Henry ficou satisfeito quando seu novo amigo em apuros obedeceu e esperou-o bebericar o chá quente, bem como mordiscar o dito biscoito. Enquanto isso, analisou um pouco mais o quarto, o cigarro no móvel ao lado da cama, as penas e tinta sobre a escrivaninha… E um curioso desenho de criança. Pensou em Michael, em Irina e no desenho. Uma família? — Não sabia que tinha esposa. 

Mas Michael Caine encarou-o como se fosse Henry quem estivesse bebendo demais.

— Estou falando de Irina.

— Não somos casados.

— Bom, queira perdoar minha confusão. — Henry tamborilou os dedos no chapéu em seu colo. Às vezes não sabia se suas observações eram romantizadas demais pelos livros que costumava ler, entretanto aquela suposição parecia-lhe plausível. E era evidente que Michael não refutou prontamente a ideia de maneira verbal, apenas esclareceu a situação. — Ela parecia bem preocupada com você quando o trouxemos mais cedo… Mas você não deve se lembrar disso. Imagino que também não tenha memória que combinamos de tratar de negócios hoje e abrir uma conta no banco, correto?

O pianista só piscou.

Desgraça, eu concordei com isso? — Ele xingou mais um pouco, torcendo a expressão e massageando de novo as têmporas. Tinha esquecido do chá em mãos. — Henry, nada parece real. O dinheiro, o contrato…

— Ainda estão no Prince Parlour. Iremos buscá-los antes, não se preocupe. 

— Eu não posso… Eu não consigo ser dono de tanto dinheiro. — Ele largou a xícara na bandeja e preferiu acender um cigarro. — De um negócio em St. James's Street!

— Por que não?

Ele parou um momento para apreciar o fumo, inspirando fundo para depois soltar uma longa baforada de lado. Se antes o álcool e a ressaca pareciam inundar seus olhos, agora as íris azuis dele cintilavam afiada clareza. Ele estava um caco e Henry não o culpava. Michael havia experimentado dissabores amargos na vida, era ao menos quinze anos mais velho do que Henry e jamais tivera metade das condições que o outro aproveitara. Se Henry estivesse em seu lugar, talvez esboçasse exata reação cética frente a um acontecimento tão raro. Um milagre, quem sabe; mas para Michael soava como uma piada de mal gosto.

— Porque a madrugada que passamos hoje se repetirá de novo e de novo até o dinheiro secar ou eu morrer. — Deu de ombros. — O que vier primeiro.

— Não precisa cuidar de tudo sozinho.

— E você vai me ajudar lá de Stormhold quando não estiver mais aqui? — Sorriu, ácido. — Sei que nos conhecemos pouco, mas você é um homem inteligente: dinheiro na minha mão é um desastre esperando para acontecer.

Henry sabia que ele estava sendo sincero e que sua afirmação não era mero drama: havia verdade no que dizia, por mais que as coisas pudessem mudar. A despeito da realidade desmotivante, não queria que o outro desistisse. O quarto era frio, Michael estava doente e o vício não era fácil, mas agora ele tinha condições de ao menos tentar deixar tudo para trás.

— E você por acaso é um tolo? Sabe que essa chance não acontece duas vezes na vida, Michael, e que tem capacidade de aprender a lidar com maiores responsabilidades.— Com uma mão segurando a borda do chapéu e a outra apoiando-se na bengala, ele inclinou-se para frente e questionou: — Ou vai me dizer que prefere jogar essa oportunidade fora?

Michael Caine deu outra tragada antes de responder com um tanto de desdém.

— Talvez eu seja um tolo.

Felizmente outras três batidas na porta cortaram a frase mais incisiva que Henry tinha na ponta da língua. Não demorou para que o rosto de Irina surgisse na fresta da porta, para então adentrar o cômodo com aquela sua presença notável. Henry já tinha visto pessoas mais nobres e afortunadas com menos classe que a senhorita Praskovia, mas ainda assim era a mulher ruiva que trazia-lhes coisas em outra bandeja.

— Perdoem a intromissão, rapazes. Um chá para você, senhor Dashwood, — Ela entregou uma xícara com seu respectivo prato à ele, logo depois de Henry apoiar o chapéu na escrivaninha. Em seguida, colocou a bandeja no ponto ao lado de Michael na cama. — E um pouco de pão para os dois. Agora, se me dão licença…

Mas Michael segurou a mão dela para impedi-la de partir.

— Irina. Feche a porta, por favor.

A postura da mulher mudou. Se antes parecia despreocupada e amigável, agora sua face estava tensa e simultaneamente firme. Após dar dois passos para trás e fechar a porta, voltou-se aos dois e despejou seu olhar sobre Henry.

— Michael está com problemas? Se ocorreu algo no Prince Parlour, eu posso cobrir um pouco do prejuízo e…

Henry fez um gesto negativo com a mão que não segurava o chá. Não queria e nem precisava do dinheiro dela.

— É o oposto de um problema.

O pianista rebateu:

— É como ter pólvora na mão.

— É achar um tesouro no fim do arco-íris!

— E em seguida ser morto por piratas.

Então a voz de Irina, trôpega em seu nervosismo e sotaque, calou os dois:

— Alguém pode me explicar direito o que diabos aconteceu?

Silêncio. Depois, Michael soltou mais fumaça do cigarro antes de responder:

— Eu estou rico.

Consideravelmente rico e proprietário de um negócio rentável. — Henry completou. — E vim levá-lo para abrir uma conta no banco, depois planejo levá-lo a St. James's Street nos dias seguintes.

Irina não reagiu. Só ficou parada com os braços cruzados, encarando-os como se esperasse risadas e a explicação de uma piada de mal gosto. Nada. E, conforme os segundos escorriam, a estrangeira passou a alternar seu olhar entre um e outro com ansiedade e pressa até que enfim absorveu a informação como… verdadeira. Cobriu a boca com uma das mãos e ficou trêmula.

— Como…?

O pianista riu com o cigarro entre os dedos.

— Vamos só dizer que não apostei apenas um xelim por você, Irina. 

— Você vai se mudar. — Ela disse de repente, e Henry podia jurar que havia notado um toque de melancolia na constatação. No entanto, foi tudo muito rápido e ela prosseguiu falando coisas que provavelmente aconteceriam a partir de agora. — Comer melhor, comprar um piano de cauda. Isso é maravilhoso!

— Até meu sangue todo virar álcool e eu explodir ao acender um cigarro.

Após anos lidando com a autoestima inabalável de seu primo e a discreta confiança de seu amigo Salazar, era desafiador para Henry deparar-se com alguém com pensamentos frequentes de fracasso. Para o azar de Michael Caine, nisto Henry Dashwood era parecido com Frederik: não desistia fácil quando estava convicto e, naquele momento, considerava a tarefa de fazê-lo enxergar um destino melhor algo pessoal. Henry estreitou os olhos enquanto bebericava o chá e se dirigiu a Irina, que parecia-lhe uma aliada de peso:

— Estou tentando convencê-lo de que essa é uma boa oportunidade na vida.

— E meu argumento sobre isso não ser uma boa ideia ainda está de pé. Vocês viram o que fiz com o último dinheiro no bolso. — Michael se esticou para pegar o cinzeiro e apagou o cigarro. —  Aproveitem o resto da minha amarga companhia enquanto podem.

E assim como Henry previu, Irina ignorou o comentário lúgubre de Caine.

— Senhor Dashwood, — A voz dela adquiriu mais uma camada de suavidade. Não encarava Michael, ainda que ele estivesse deveras desconfiado pelo tom dela. — Eu proponho que nós sejamos sócios deste pianista. Ele precisará de apoio nesta nova etapa da vida e talvez não saiba de fato lidar com tamanha quantidade de dinheiro e a administração de um comércio. É evidente que também não poderá morar mais aqui, pois um respeitável homem de negócios precisa de uma casa a altura, bem como criados e um guarda roupa. — Apontou primeiro para si, depois para ele e por fim apontou para o pianista: — Eu cuido desta parte, você das finanças e nós dois cuidaremos para que a bebida mais forte a passar pelos lábios deste homem seja café.

— Ei!

Mas Irina cortou qualquer protesto de Michael:

— Você gosta de café.

O que Henry Dashwood poderia fazer senão concordar com ela? Com ajuda de sua bengala — e ainda equilibrando sua xícara de chá pela metade, para em seguida apoiá-la na escrivaninha — levantou-se e apertou a mão da estrangeira.

— Negócio fechado.

Michael se levantou também, um tanto trôpego pela ressaca e desnorteado pela súbita aliança dos dois que, afinal, tinham se conhecido pela manhã do mesmo dia.

— O que acabou de acontecer aqui?

— Parece… — A ruiva piscou seus olhos verdes, um sorriso vitorioso tomando conta de seus lábios.  — Que você acabou de contratar seus dois primeiros assistentes, senhor Caine.

Se o pianista já estava completamente desarmado e derrotado pelo olhar de absoluta certeza de Irina Praskovia, Henry então não poderia dar brecha para que ele recuasse. Não, tinham que prosseguir com uma tarefa atrás da outra antes que ele se arrependesse de tudo e talvez tentasse colocar a ideia de se explodir com álcool em prática.

— E o passo seguinte é abrir a conta no banco.

Michael inspirou fundo, depois sentou na cama de novo.

— Eu vou precisar de mais cigarros.

 ❦

Tudo correu bem no banco e Henry não esperava nada diferente. Sabia que aquele tipo de coisa não era incomum, uma vez que perdia-se e ganhava-se muito em jogos de azar em clubes noturnos; e ter um cavalheiro com boa reputação como ele próprio assessorando o pianista garantia mais segurança ao banco. Talvez a aparência um tanto enjoada de Caine não causasse boa impressão, mas Irina conseguiu endireitar um bom casaco e deixá-lo elegante, de modo que seu olhar exausto mais parecia um ar blasé e intelectual. Geralmente as pessoas da alta sociedade apreciavam aquele semblante e Michael, enfim, retornou para a pensão com uma conta em seu nome e os lucros da Bloomfield & Clove direcionados à ele. Talvez mudasse o nome para Caine & Clove, mas esse era um assunto para outro dia.

O único porém em seu registro foi o endereço. Uma pensão não era vista com bons olhos, portanto provisoriamente Henry receberia quaisquer correspondências e comunicados direcionados ao pianista, que logo iria procurar um lar permanente em Mayfair. Ou era essa a história que contaram ao bancário, coisa que Caine achava bobagem.

Se bem que Henry desconfiava que a senhorita Praskovia procuraria algo a altura da Mayfair.

Não houve tempo para uma visita a St. James's Street, então o pianista retornou a pensão e Henry Dashwood rumou até a residência Strawell, perto do porto. Já era final da tarde quando aproximou-se da entrada da casa, sua bengala fazendo aquele barulho ritmado na calçada de pedra. No entanto, antes que pudesse entrar e descansar das longas caminhadas do dia, notou uma figura diminuta e hesitante à porta, como quem não sabia se batia ou não na aldrava: uma certa moça de cabelos loiros escuros que tinha anteriormente captado um pouco mais de sua atenção.

— Que surpresa vê-la, senhorita!

— Oh, senhor Dashwood. — Ela respondeu, um tanto surpresa por vê-lo ali e não dentro da casa. Vestia suas usuais luvas brancas — que cobriam até a altura de seus cotovelos — e ele pôde perceber que ela apertou com mais força a alça da bolsa que trazia consigo. — Digo, Henry. Não sabia que estava fora.

Um esboço de um sorriso abriu-se em Henry, pois Aurora Wintergarden lembrou-se de que ele havia autorizado, e até mesmo pedido, que ela o chamasse pelo primeiro nome.

— Saí para resolver certas questões com alguns amigos, mas cá estou de volta. — Explicou-se de maneira sucinta, depois franziu a expressão. O rosto tão meigo da moça trazia um ar de preocupação que não soava-lhe próprio, apesar de muito verdadeiro. Ele tirou o chapéu e aproximou-se um passo. — Parece aflita, o que houve? Precisa de ajuda?

— Ocorreu algo terrível! Lembra-se do lenço que me emprestou no chá?

— Sim, mas o que…?

— Bem, ele está manchado. — A despeito da voz baixa e triste de Aurora, Henry quis rir frente a ingênua doçura. O assunto era tão pequeno quanto o pedaço de tecido que havia emprestado naquela tarde, mas a jovem estava quase a ponto de verter lágrimas. — Um criado misturou com outro tecido em um balde e… Ah, eu tentei consertá-lo de outra forma, mas acho melhor ver por si mesmo. — Tirou o lenço verde da bolsa e estendeu-o para Henry com delicadeza. — Podemos cobrir o prejuízo, é claro, e…

Ele apoiou-se bem com a bengala e, mesmo com o chapéu na mão, pôs a observar bem o lenço. Se antes se divertia com a situação, agora estava fascinado: olhar para o tecido era como encarar um pedaço de um jardim, pois existiam diversas flores ali, com cores e tamanhos variados. Apesar de, no geral, serem flores pequenas, o grau de detalhe era tal que Henry tinha a impressão de aspirar o perfume delas.

— Foi você quem fez esses bordados? — Questionou, ciente que a pergunta era tola. Ela, por sua vez, confirmou com um aceno tímido. — Certamente é habilidosa. São as flores que haviam no parque, não? Reconheço os cravos. 

— Sim, são.

O nervosismo Aurora Wintergarden cedeu lugar a uma espécie interessante de hesitação. Henry não era nenhum artista, pelo contrário, era mais um apreciador das belas artes; mas ainda assim reconhecia o silêncio que um artista fazia ao esperar a crítica de sua obra. 

— Posso afirmar que fez mais por esse lenço do que ele merecia. Não precisava se dar ao trabalho, ainda mais um tão minucioso. — disse com sinceridade. — Está esplêndido, veja como as manchas parecem aquarelas no tecido! Mas é claro que você viu, pois você quem bordou, que cabeça a minha.

Algo dizia a ele que poderia ficar falando mais e mais sobre as qualidades do bordado; e algo dizia a ele que Aurora também poderia ficar ouvindo. Foi neste instante que Henry notou que ela estava sozinha e com ele na frente da casa e, embora tudo isso pudesse ser interpretado apenas como um casual encontro na rua, temia que línguas mais pérfidas ousassem manchar a reputação da moça. Salazar, por exemplo, mal fazia coisa alguma e já tinha se tornado um nome recorrente no jornaleco semanal.

— Perdoe a intromissão, mas veio acompanhada? 

Aurora piscou para ele, lívida e culpada. 

— Digamos que…

— Que você se perdeu, sim? — Ele colocou de volta o chapéu na cabeça e ajeitou o lenço para que ficasse no bolso de seu colete, na altura do peito e com as flores bordadas à mostra. Aurora tinha aquela mesma expressão de quem guardava um segredo até de si mesma. Quem sabe estar ali sem criadas consigo fosse só um mero acaso, quem sabe tivesse sido planejado. Uma ovelha longe do rebanho. O fato é que não iria pressioná-la a se explicar. — Vamos, irei acompanhá-la até sua casa e você poderá me contar mais sobre esses bordados durante o caminho.

Ele ofereceu-lhe o braço para que ela pudesse apoiar-se em seu cotovelo, gesto que ela atendeu prontamente. Quem encarasse os dois poderia muito bem pensar que a moça que na realidade ajudava-o a equilibrar-se na calçada de paralelepípedos. 

E se antes Aurora estava muito tímida e nervosa, falar um pouco mais sobre seus próprios interesses parecia deixá-la mais calma. Um certo rastro de seu sotaque irlandês voltou a sua voz enquanto ela explicava com quantos anos aprendeu a bordar e como praticava em casa. Henry também esforçava-se para ser uma companhia decente e perguntava-lhe como fazia aqueles pontos tão pequenos — por mais que ela própria fosse pequena — e que tipo de outros desenhos conseguia fazer com agulha e linha. 

A tarde transformara-se em uma pintura dourada quando afinal chegaram ao lar dos Wintergarden. Ambos pararam para admirar a silhueta da casa por um instante e, mesmo com as pernas cansadas de tanto caminhar durante o dia, Henry flagrou-se desejando conversar um pouco mais com ela.

— Não me entenda mal, não quero implicar que precisa dispor de seu tempo apenas para trabalhar e ganhar dinheiro, — introduziu a constatação com delicadeza. As damas da alta sociedade não tinham que trabalhar como as criadas e cozinheiras, então sugerir o contrário era um tópico sensível. Implicar a necessidade de um certo tipo de ofício para as damas poderia ser interpretado como uma ofensa. — Mas eu conheço gente que pagaria uma fortuna por um bordado desses.

Felizmente, Aurora não fez nada senão sorrir.

— Você acha?

— Sem dúvida. Poderia até apostar nisso, mas não sou meu primo. — Riu acompanhado por ela. — No entanto, devo perguntar: você aceitaria uma encomenda?

— Oh. Para… Para o senhor?

— Sim. Eu preciso de um novo colete e estava pensando em como investir melhor em uma peça memorável. A menos que não deseje fazer uma peça masculina, coisa que compreendo perfeitamente.

Ela inclinou o rosto, pensando.

— Seria um desafio interessante, mas não é este o problema. — Aurora comprimiu seus lábios rosados, olhou para baixo e então encarou-o bem. — A verdade é que os Wintergarden preferem que eu cultive outros talentos, como o canto ou a dança… Embora eu não saiba muito bem dançar, eu confesso.

Havia um quê de satisfação ao notar sinceridade escorrer dela e a comparação que Michael Caine havia feito dela parecia muito apropriada: um anjo, faltavam-lhe as asas e auréola. Ele tamborilou no apoio de sua bengala, chamando atenção para aquele ponto.

— Temo admitir que eu também não seria um excelente parceiro de dança, senhorita.

Aurora riu sem querer rir, achando um ultraje ouvir um gracejo sobre o fato de Henry ser manco.

— Que terrível! 

— Não irei incomodá-la com esse pedido, então. — Voltou o assunto ao colete bordado. — Não merece passar por um constrangimento apenas por um capricho meu.

De súbito, um lampejo travesso e esperançoso se fez presente na expressão dela.

— Talvez… não seja considerado algo absurdo para meus pais se for somente uma retribuição pelo acidente com o lenço, não é?

— Se a senhorita afirma que sim, quem sou eu para discordar?

Aurora assentiu, suas bochechas coradas. Caminhou terreno adentro, subiu um trio de degraus, depois virou-se:

— Alguma cor favorita?

— Verde. E cinza. 

— E que tipo de bordado vai querer para colete? 

— Não tenho uma ideia fixa. Gostei das flores… Gosto também de ler, mas não acho que seja possível colocar um livro em um tecido. 

— E o que mais você gosta de ler?

— Vai me tomar por um homem superficial e tolo, mas não resisto a um romance. Sinto que já lhe disse isso, mas acho que buscamos sempre uma dose de aventura nas nossas vidas pacatas. — Deu de ombros, honesto. — E contos de fadas.

Aurora segurou o próprio queixo com sua mão enluvada, imaginando dúzias de coletes diferentes.

— Vou pensar em algo. 

— Eu mal posso esperar. Leve o tempo que for e qualquer gasto extra não hesite em entrar em contato comigo!

— Bom, — Ela riu. — Peço então que me mande suas medidas primeiro.

Henry não pode evitar uma gargalhada. 

— De fato. — Fez um cumprimento educado com o chapéu. — Agora devo ir, senhorita Wintergarden. Tenha uma excelente noite.

Aurora retribuiu com uma mesura graciosa.

— Adeus, Henry.

Uma sensação morna invadiu seu peito quando ouviu seu primeiro nome, ecoando em sua caixa torácica mesmo após ter visto Aurora fechar a porta da casa Wintergarden e mesmo após já tomado rumo oposto, retornando para a casa Strawell. Talvez fosse um erro se aproximar da irlandesa, uma vez que ele já tinha comparado-a com fadas e tais criaturas eram um tanto imprevisíveis e complicadas.

O problema é que Henry Dashwood não era avesso a uma aventura e pensava que talvez fosse bom fazer algo por si, não porque iria — supostamente — herdar um título ou porque seu primo tinha arranjado um encontro, e sim pela simples e crua razão porque queria. A primeira coisa a se fazer era tirar suas medidas para o dito colete.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Amizades que eu não havia previsto: Henry e Irina hahah
Hoje foi um capítulo quase só dos rapazes, não? Enfim, esperamos escrever mais e postar o quanto antes.