Sinais escrita por Sirena


Capítulo 28
Dias Estranhos e Noites de Segredos


Notas iniciais do capítulo

Obrigada Minnie, fran_silva e Isah Doll pelos comentários ♥



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Ícaro

Meu tio disse que fonoaudiólogos realmente não eram médicos e meu mundo caiu. Mas... Tio Flávio explicou que fez medicina pensando em ser cirurgião, mas já no último semestre começou a se interessar por fonoaudiologia. Como ele já tava acabando a faculdade mesmo, resolveu acabar e depois começou a fazer fono. Então, acho que ele ainda é tipo um médico, né? Ou não?

Foi difícil entrar em consenso com a Alexia de qual devia ser o nome da gatinha. Mas, no fim acabamos concordando que o nome dela devia ser Baunilha. Por quê? Não sei. Mas, eu gostei do nome. O sinal que fizemos para gatinha era uma mão na configuração de B em frente ao nariz, com um movimento de cima para baixo. Bem simples... Mas, ia ser difícil fazer Baunilha entender que aquele sinal era dela.

Animais são seres adaptativos. Tem um vídeo maravilhoso no Youtube de uma cachorrinha que aprendeu Libras com a dona surda. Só que precisa de paciência para ensinar eles, para eles entenderem que os donos são surdos e que miar ou latir não funciona. Então, eu separava duas ou três horas do dia para sentar com a Baunilha na sala e tentar ensinar alguns sinais para ela, pelo menos o básico: brincar, sim e não, além do sinal dela mesma. Me pareceram os sinais essenciais.

Mas, não era fácil ensinar.

Também não sei quanto tempo mais ou menos demoraria para Baunilha entender que eu e meus pais éramos surdos. Não tinha na internet quanto tempo demorava para que os animais entendessem certas coisas. Acho que deve variar de um para o outro.

Suspirei afastando esses pensamentos e respirando fundo,

Meu pai tinha me convencido de que seria uma boa ir à escola hoje. Era o último dia de aula, seria apenas uma festinha, uma confraternização. Podia ser uma boa oportunidade para ver meus amigos, ele disse. Você precisa se reaproximar dos seus amigos, ele disse. Mas, quem disse que meus amigos queriam se reaproximar de mim?

Engoli em seco entrando na quadra da escola onde a festinha seria e ajeitando as mangas do meu moletom roxo. Olhei ao redor tentando avistar o ruivo dos cabelos do Rodrigo ou o colorido do hijab da Amirah, mas não avistei nada. Por que eu tinha presumido que eles viriam? Talvez tivessem planejado ficar em casa, ou fazer uma festa na quadra da casa da Sabrina, ou... Ou...

Senti um toque no meu ombro e me virei.

“Você tá aqui!” – Ian deu um sorriso enorme antes de me abraçar com força. – “Eu senti saudades!”

“Oi.” — dei risada me afastando um pouco, mais tímido do que queria.

Ian estava usando uma camisa de manga longa azul-claro e uma calça jeans preta com correntes prateadas cheias de pingentes de animais. Uni as sobrancelhas, confuso o olhando com mais atenção. Ele deu risada percebendo.

“Tô bonito?”

“Tá.” - tentei não morder os lábios enquanto olhava para ele, porque, ele realmente estava bonito.

“Meu B-I-N-D-E-R chegou ontem.” – ele explicou. – “Nem dá pra ver, né? Meu pai me fez colocar uma contagem regressiva no celular pra não usar por mais tempo do que o recomendado.”

“Seu pai é fofo.” – dei risada. – “Mas, sério, você tá muito bonito. Quase me faz lamentar não ser solteiro. Quase.”

“Obrigado, meu bem.” – ele piscou antes de rir, jogando a cabeça para trás, quando voltou a olhar para mim sua expressão estava mais séria. – “Mas, como você tá? Vem cá, vamos sentar.”

Concordei o seguindo até uma das mesas que haviam colocado no canto da quadra. Antes que você imagine uma festa idêntica às festas de ouvintes, eu vou corrigir. Poucos surdos realmente sentem as vibrações da música, então raramente tem alguém em pé e dançando. Mas, tem música, claro. Tem quem gosta... Só que a maioria fica sentado, bem mais concentrado em conversar. Festas eram sempre cheias de conversas. Rodas e rodas de conversa e todo mundo ria e se dependesse da gente, poderíamos ficar ali pra sempre. Ninguém precisa dançar ou cantar, só conversar e tirar fotos e comer. Comer é essencial, óbvio.

“Como você tá?” – Ian perguntou, apoiando os cotovelos na mesa branca.

“Eu... To bem.”

“Eu e os outros estávamos preocupados.”

“Não parece.” – encolhi os ombros.

Ian franziu a testa e me olhou como se eu fosse super inocente antes de pegar o celular no bolso. Observei ele desbloquear o aparelho e abrir o WhatsApp antes de me entregar o aparelho.

Franzi a testa, pegando. Estava aberto na conversa de um grupo. Li o nome.

“Grupo pra fazer o Ícaro sair de casa.”

“Vocês são tão idiotas.” – bufei devolvendo o celular.

“A gente não sabe ajudar, Ícaro. Ficamos com medo de atrapalhar, mas a gente sentiu saudade e estávamos preocupados. Juro que estávamos. A gente só... Tava pensando em como te convencer a falar com a gente. Você se trancava no quarto quando a gente ia na sua casa, Ícaro!”

“Não me faça sentir culpado.” – abaixei os olhos, nervoso. – “Vocês podiam ter continuado a me mandar mensagens, mesmo que eu não respondesse... Ajudava saber que vocês ainda se preocupavam.”

Ian respirou fundo.

“Tem razão, desculpa. A gente realmente não sabe lidar quando você fica assim, Ícaro. Ficamos com medo de pressionar e piorar.”

Suspirei, desviando o olhar.

Fernando e Marcelo estavam sentados do outro lado do pátio rindo e fazendo cócegas um no outro, se empurrando e se puxando para perto. Fernando parecia querer puxá-lo para dançar, enquanto Marcelo o puxava pelos braços para que sentasse com ele no chão. Era até fofo, mas estremeci apertando meus braços.

Fernando ergueu os olhos, provavelmente notando que tinha alguém, eu, encarando. Ele fez careta antes de virar o rosto e eu achei melhor desviar o olhar antes que o Marcelo também percebesse que eu estava observando.

Ian apertou meu ombro, chamando minha atenção.

“Tá tudo bem mesmo, Ícaro?”

“Tá sim. Desculpa. Me distraí.”

Ele me olhou preocupado e beliscou minha mão de forma afetuosa.

"Olha isso." - sorriu abrindo a galeria do celular e eu sabia que Ian iria me mostrar séries de fotos de maquiagens que vinha fazendo.

Vampiros, lobisomens, zumbis, sereias, Chapeleiro Louco, Noiva Cadáver... Nossa! Ian realmente tinha mão para maquiagem artística. Ele não conseguia ajudar a Paula a se maquiar para uma apresentação de dança, mas conseguia fazer uma maquiagem de zumbi com facilidade absurda. Isso não fazia sentido pra mim, mas acho que deviam exigir esforços diferentes, né? Afinal a maquiagem artística dava uma maior liberdade acho.

"Tão muito boas!" - sorri. - "Nível profissional."

Ian deu risada e piscou pra mim. - "Mesmo?"

"Mesmo. Você é bom nisso."

"Vou postar no Instagram mais tarde, é um jeito fácil de ganhar dinheiro em época de Dia das Bruxas e eventos de quadrinhos."

"C-O-M-I-C C-O-N." 

"Isso."

"Você devia fazer curso disso."

"Eu até faço, mas nada muito sério." - deu de ombros, ainda passando as fotos. - "Sabe, quanto mais você estuda algo, mais a sério leva e menos prazer isso te traz porque você leva como trabalho mesmo. Maquiagem artística pra mim é só passatempo. Gosto mais de física."

"Professor?" - adivinhei, porque física era basicamente a única matéria que Ian se dava ao trabalho de estudar invés de simplesmente colar da Amirah. Ele era tão bom que eu pedia para ele me ajudar com a matéria... E ele estava no primeiro ano!

E eu no segundo!

"Isso. Sabia que a maioria dos professores de física dos colégios na verdade não são formados para dar aula de física? São professores de matemática. Por isso, quem tem licenciatura em física acha emprego mais fácil e tem mais liberdade em sala de aula. Porque é mais difícil de achar. Se eu conseguir uma licenciatura em física, bom... Eu sei ler lábios e oralizo mais ou menos bem, então eu ser surdo não impediria ninguém de me contratar. E eu gosto da matéria, então..." - ele mordeu os lábios, o tom animado sumiu um pouco enquanto explicava e eu entendia o porquê.

Era um pouco chato ter sempre que pensar em como fazer para que a surdez não fosse ser empecilho de conseguir emprego. A maioria das vagas para pessoas com deficiência, bom... As empresas preferiam contratar quem usasse aparelho auditivo, soubesse ler lábios e oralizar. Minhas chances de conseguir trabalhar sem ser como autônomo eram bem baixas olhando assim.

"É um bom plano." - observei. - "Você seria bom professor. Sempre consegue me fazer passar."

Ian abriu mais o sorriso, passando a mão pelo cabelo.

"Física é legal. Biologia é bom pra conhecer a estrutura da vida, a química você entende as reações, mas física? Física você estuda o funcionamento do universo! É como se descobrisse os segredos dele! Os segredos da gravidade, das cores, da visão..."

"Você é a única pessoa que consegue fazer física parecer interessante." - suspirei.

Ian deu risada e em seguida fez bico.

"Você pode me ajudar a tirar umas fotos maquiado depois para eu postar? Eu te pago!"

"Tudo bem. Depois."

"Obrigado." - novamente, ele me deu um beliscãozinho afetuoso na mão.

***

“Você ganhou um gato!” – Thomas riu se sentando no chão da sala enquanto Baunilha vinha cheirar sua mão.

A festa da escola acabou, mas, a verdade era que ninguém queria dizer tchau e todos queríamos continuar conversando, então chamei meus amigos para cá. Amirah foi para casa explicando que tinha compromissos com a família, mas, os outros vieram.

Rodrigo espirrou.

“Não finja que não sabia!” – Sabrina revirou os olhos. – “O Davi mandou a foto no grupo!”

“Mandou?” – franzi a testa, surpreso.

“Davi e Alexia nos deixavam atualizados sobre como você estava.” – Rodrigo riu. – “Eu sou alérgico a gato. Tem remédio pra alergia, Ícaro?”

“Na cozinha. Pode pegar.” – sorri e ele se levantou.— “Então, o que eu perdi nos últimos dois meses?”

“A apresentação da Paula.” – Ian deu de ombros.

“E ela tá namorando agora.” — Sabrina contou. – “Dois ouvintes.”

“Dois?”

“É aquele tipo de casal lá... Os ouvintes têm uma palavra pra isso, mas eu não conheço o sinal.” – Rodrigo fez careta. – “Quando o casal é formado por três pessoas e as três se namoram. Eu realmente não sei o sinal.”

“Eu nem sei se tem sinal pra isso.” – Thomas suspirou. - “Vou tentar procurar depois, mas duvido.”

“O que mais eu perdi?”

“A Luana beijou minha prima.” – Rodrigo deu de ombros.

“Eu também.” – Ian arregalou os olhos enquanto falava. – “O Rodrigo quase me matou quando descobriu.”

Dei risada pegando meu celular.

Baunilha se sentou, dobrando as patas sob o corpo e observando atentamente todos conversarem, os olhos seguindo as nossas mãos com curiosidade. Talvez ela estivesse tentando entender o que estávamos fazendo.

Suspirei, desviando minha atenção da conversa e voltando-a para a mensagem que digitava.

[Ícaro]
Oi vidaaa
Meus amigos vieram aq em casa
Vc vai vir hj??

 

Mordi os lábios esperando a resposta. Sabia que o Mathias tinha certos problemas com ficar cercado por pessoas, então pareceu bom avisá-lo. Nem sempre ele estava bem o bastante para lidar com isso.

[Mathias]
Davi, Sabrina e Paula?

 

[Ícaro]
N
Sabrina, Thomas, Ian e Rodrigo

 

[Mathias]
Ah
Muita gnt...
E muita gnt q eu n conheço e.e

 

[Ícaro]
Ok

 

[Mathias]
Desculpa

 

[Ícaro]
Sem problemas ♥
A gnt se vê outro dia, okay?

 

[Mathias]
Ok
te amo

 

Está vendo? Parte de namorar é ter esses pequenos cuidados que você até pode achar desnecessário às vezes, mas que não te fazem mal e que para o outro faz uma boa diferença. Eu acho que tô ficando bom nesse negócio de namoro. Demorou uns cinco meses, mas acho que finalmente tô conseguindo. Palmas para mim.

Coloquei o celular de lado e tamborilei os dedos no chão, chamando Baunilha e ela logo veio pro meu colo. Fiz carinho na gatinha, sentindo-a começar a ronronar em poucos instantes.

Ergui os olhos, observando meus amigos conversarem. Fiquei em silêncio, concentrado em fazer carinho em Baunilha enquanto eles batiam papo sobre o dia, trocavam fofocas, comentavam sobre filmes e séries que estavam acompanhando, o assunto nunca acabando e sempre rendendo mais e mais e... De alguma forma, mesmo sendo minha casa, mesmo sendo meus amigos, mesmo eu estando na roda de conversa, eu não estava ali.

E os instantes passavam e parecia que eu estava cada vez menos e menos ali, como se estivesse desaparecendo. Como uma chama de uma vela, estava prestes a apagar.

Coloquei Baunilha no chão e me levantei.

“Tudo bem?” – Thomas perguntou erguendo os olhos para mim.

“Tudo. Só vou beber um pouco de água.”

Já na cozinha, enchi um copo com água gelada e me deixei cair numa cadeira. Minhas mãos tremiam.

Isso era difícil.

Eu estava tentando.

Juro que estava tentando.

Mas, era tão difícil acordar e sair e viver a vida normalmente como se não estivesse uma bagunça por dentro e tentar voltar a fazer as coisas que deviam ser normais e já não eram e... E...

Apertei o pescoço, me sentindo tonto e sufocado.

Eu estava tentando. Do fundo do meu coração, juro que estava, mas eu só... Só não conseguia. Não conseguia agir normal ou me sentir normal, ou... Ou... Não conseguia não falhar no básico! E isso era realmente sufocante! Era humilhante!

Fechei os olhos. Era difícil. Tão difícil. Eu não sabia se conseguiria passar por isso tudo de novo, se aguentaria...

Dei um pulo de susto, me levantando desajeitadamente ao sentir um toque no meu ombro. Me virei para a Sabrina, engolindo em seco. Ela arqueou a sobrancelha para mim, franzindo os lábios cobertos por uma camada de batom roxo.

“Você tá bem?”

“To sim. Só... Acho que preciso de uns minutos sozinho, só isso.”

A sobrancelha dela levantou mais ainda enquanto puxava uma cadeira e se sentava ao meu lado.

“Eu acho que você já ficou muito tempo sozinho”

Respirei fundo. – “Tava me sentindo fora de lugar.”

Sabrina levantou as mãos para falar, mas nós dois nos distraímos quando o Thomas entrou na cozinha. Ele pareceu hesitar, me olhando preocupado, antes de vir se sentar na minha frente.

“Tá tudo bem, Ícaro?”

Dei de ombros.

“Ele tava se sentindo deslocado.” – Sabrina explicou.

Olhei por baixo da mesa para poder dar um pisão no pé dela.

Thomas mordeu a bochecha me observando então sorriu. – “Não precisa se sentir assim, Ícaro. Você sempre vai ter um lugar com a gente.”

Senti meu rosto ficar quente, sem saber bem o que dizer ou o que pensar disso. Parte de mim, quis dar alguma resposta ácida sobre como eu não precisava que ele me dissesse isso porque aqueles eram meus amigos e eu os conhecia a bem mais tempo, que havia chegado primeiro, como se fosse uma criança pirracenta brigando por um brinquedo.

Mas... Mas, no fundo, eu meio que gostei dele dizer isso. Não sei se faz sentido, mas acho que de certa forma, era meio que aquilo que eu precisava que dissessem. Deu uma sensação boa ver isso.

“Obrigado.” – declarei por fim.

Thomas sorriu.

***

 Tchaikovsky tocava na cozinha enquanto eu guardava a louça. Minha mãe lavava a louça, na ponta dos pés, cruzando e descruzando as pernas. Fazendo plié e grand plié vez ou outra. Era legal.

Meu pai estava sentado, focado em várias contas sobre a mesa, tentando organizar os gastos do mês. Ele parecia estressado. Tínhamos uma média de gastos por mês e meu pai fazia todo o possível para nos manter dentro essa média. Cada centavo gasto era anotado  e quando necessário, algo era cortado. Normalmente algo legal porque era muito mais fácil cortar o dinheiro reservado a momentos de lazer do que diminuir a conta de luz.

"Tudo bem?" - perguntei, hesitante.

"Vamos ter que cortar um pouco." - ele explicou e pressionou as mãos contra os olhos, respirando fundo. - "Não sei o que, mas vamos. Terapia não é barato."

Desviei o olhar. Ai.

Minha mãe jogou água no meu pai, lançando um olhar irritado a ele.

Eles trocaram um olhar demorado antes do meu pai suspirar e apertar suavemente meu braço num gesto gentil. Minha mãe secou as mãos no pano de prato e veio sentar-se no colo dele, pegou a caneta que ele tinha na mão e começou a riscar várias coisas nos papéis.

A expressão dele foi ficando carrancuda conforme ela riscava. Por fim ela se levantou com uma expressão firme no rosto.

"Você e Alexia praticamente só assistem na Netflix, então vamos cancelar a TV a cabo."

"Ela vai ficar brava. Vai perder o canal com séries criminais" - pontuei e minha mãe deu de ombros.

"Seu pai para de comprar aquelas coisas de jogos que ele gosta..." - isso explicava a careta dele. - "Eu paro de pagar maquiadora para apresentações e não encomendo figurinos novos, isso dá uma boa diminuída."

"Você não precisa parar de encomendar figurino, amor." - meu pai suspirou, ele odiava a ideia da minha mãe não poder fazer algo relacionado as danças dela. Tenho certeza que no que dependesse dele, ela se apresentaria em eventos gigantes, daqueles que pessoas vem de fora do país para assistir.

"Já disse que vou parar." - ela revirou os olhos e se voltou para mim. - "E só um passeio pago por mês agora."

"Como é?"

"Você e o Mathias sempre vão em lugares muito caros. Chega. De agora em diante, só um passeio pago por mês. Tentem ir em exposições gratuitas e coisas assim."

Fiz bico, mas concordei. Não adiantava tentar reclamar com minha mãe quando ela estava com aquele olhar determinado no rosto. O fato de Alexia estudar numa escola técnica e de todos nós termos passe-livre sempre serviu para que sobrasse algum dinheiro, some isso com o fato dos dois trabalharem e tudo bem. Mas, vez ou outra, ainda era apertado e a gente tinha que cortar custo.

Era sempre minha mãe quem escolhia o que seria cortado porque embora meu pai organizasse tudo, ele nunca queria cortar nada. Minha mãe escolhia sempre de uma forma bem simples: cortar um gasto dela e do meu pai, dois gastos meu e da Alexia (porque, bom, a gente não contribui com o dinheiro da casa, então...). Não adiantava discutir.

***

Alexia estava usando um pijama da Mulher-Maravilha, jogando, com fones de ouvidos cor-de-rosa, cabelos soltos, sentada na cama, com travesseiro nas costas e uma coberta de oncinha sobre os pés.

Baunilha entrou no quarto logo atrás de mim, cheirando tudo e entrando embaixo dos móveis com curiosidade. Coisinha linda.

"Alexia, me empresta um esmalte?" - pedi, mas ela não tirou os olhos da tela do laptop. - "Alexia?"

Acenei em frente seu rosto, mas ela continuou focada. Bufei, revirando os olhos e abri a gaveta do móvel de cabeceira sabendo ser ali que ela guardava a caixa de esmaltes.

Ninguém tira minha irmã dos jogos quando ela tá assim. Nem se um raio caísse nesse quarto ela perceberia.

Analisei as cores na maleta rosa um instante, tentando escolher que cor usaria. Alexia tinha tantos esmaltes que era impossível tirar um da maleta sem puxar com força.

Uni as sobrancelhas, puxando um papel dobrado entre dois esmaltes pretos e que estava tornando ainda mais difícil tirar. Olhei para minha irmã um instante, meio receoso porque sabia que não era da minha conta, mas desdobrei a folha mesmo assim porque é isso que irmãos fazem: eles ficam mexendo nas suas coisas enquanto você fica concentrado num joguinho e não dá atenção para eles.

Irmãos são como gatos.

Olhei o papel franzindo a testa. Era uma folha de exame. Passei os olhos pela página e prendi a respiração um instante vendo do que se tratava afinal.

( ) HIV+

( ) Sífilis

( ) Hepatite C

Me levantei, balançando o papel na frente da Alexia.

Ela ergueu os olhos um instante e empalideceu. Rapidamente tirou os fones e fechou o laptop, me encarando seriamente.

Silêncio.

Muito silêncio.

Ela parecia estar pensando no que fazer ou dizer, lançando olhares em direção a porta fechada frequentemente.

"Você não devia mexer no que não é da sua conta." - declarou por fim após vários instantes. - "Você me disse para não me intrometer nas suas coisas e agora se intromete com as minhas?"

Hesitei antes de suspirar e dobrar a folha, entregando para ela.

Alexia respirou fundo, escondendo o papel sobre a perna, parecia alguém que tinha acabado de sofrer uma intimação.

Me sentei ao seu lado devagar, observando.

"Eu achei que tinha jogado isso fora já! Esqueci por completo." - suspirou escondendo o rosto em seguida.

Percebi o nervoso dela e entendi que estava com medo de julgamentos. Suspirei a abraçando e puxei sua cabeça para que recostasse no meu ombro. Lexi ficou encolhida nos meus braços alguns minutos antes de se afastar.

"Como você viu, deu tudo negativo." - forçou um sorriso. - "Não importa então."

Mordi os lábios. Ela claramente queria encerrar o assunto, mas...

"Quando foi isso?"

"No começo do ano." - não era bem isso que eu tava perguntando, mas antes que eu pudesse explicar melhor a pergunta ela continuou. - "Eu saí pra uma festa com a E-L-O-A e o J-U-A-N me apresentou esse amigo dele e... Sei lá, aconteceu. A camisinha estourou, eu entrei em pânico e... E foi isso."

Alexia respirou fundo, jogando a cabeça para trás e pressionando as mãos contra os olhos com delicadeza, os olhos enchendo deixavam claro que ela nunca tinha falado disso com ninguém.

Respirei fundo tentando manter um semblante calmo porque não queria parecer estar julgando. Essas coisas aconteciam.

"Alexia..." - hesitei. - "Quantas horas depois você fez o teste?"

"Uns três dias depois eu acho."

Cerrei os lábios. Não queria dizer isso, não queria, mas...

"Mas... E a janela?"

"Que janela?" - ela pareceu confusa, olhando em volta como se achando que eu me referia a janela do quarto.

Respirei fundo.

"Janela I-M-U-N-O-L..." - ela arregalou os olhos e empalideceu novamente antes mesmo que eu acabasse de soletrar. Sua pele assumindo um tom cinzento meio preocupante.

"Eu... Eu... Eu não..." 

Puxei-a para outro abraço percebendo seu nervoso e suspirei deixando um beijo na sua testa. A mão de Alexia apertava meu braço e a força com que ela fazia isso deixava claro que estava assustada.

Eu não sei exatamente qual é a janela imunológica quando se trata de HIV, mas, eu sei que ela existe. E tenho a séria impressão que é bem mais que três dias.

Me afastei um pouco quando ela parou de tremer.

"Quer que eu jogue isso fora pra você quando mãe e pai não estiverem olhando? Não conto pra eles, prometo."

Ela hesitou antes de concordar e me entregou o papel do exame, ainda trêmula.

"Olha, se não deu nada até agora, talvez esteja tudo bem. Mas, tenta refazer o teste. Só por garantia." - pedi e ela concordou com a cabeça, voltando a se encostar em mim.

***

Fiquei com a Alexia até ela, ainda nervosa, cair no sono, e fui para o meu quarto com Baunilha.

Escondi o exame entre partituras que tinha guardadas numa pasta e programei um alarme no celular para amanhã com o título de "jogue aquela folha fora bem cedo".

Baunilha se ajeitou para dormir dentro do meu sapato. Não sei porque, mas ela gostava de ficar ali. Gata estranha.

Voltei minha atenção para meu celular quando o senti vibrar e franzi a testa para o horário. Já era alta madrugada.

[Mathias]
Tem autoteste

Franzi a testa para o que Mathias disse. Estava cansado e com sono e foi meio inevitável contar a ele o que tinha acontecido. A verdade é que eu fiquei realmente muito preocupado com minha irmã e precisava falar com alguém. E, meus amigos são fofoqueiros, então não podia ser com eles.

[Ícaro]
O que e isso?

[Mathias]
É tipo um teste de gravidez
Só q pra HIV
É um pouco caro, mas acho q tem pelo SUS tbm
Eu ja tive que fazer umas duas vezes, é bem de boa
Só q é só HIV, se ela tiver contraido alguma outra coisa n identifica
Espeta o dedo pq usa sangue, colhe e coloca no buraquinho do teste
Demora uns vinte minutos pra mostrar o resultado
Ai mostra reagente q é positivo e n-reagente, q é negativo
Se der reagente, a Lexi tem q ir pro CTA pra fazer o exame de sangue definitivo e dps disso é bateria de exame

[Ícaro]
E confiavel?

[Mathias]
Quase 100% de precisão se n to enganado
O melhor era a Lexi ter usado PEP inves de ir direto pro exame
N sei como os med deixaram passar, na maioria eles fazem taaantas perguntas pra n acontecer esse tipo de coisa :/

[Ícaro]
Acho q ela ficou com vergonha e disse q era so exame de rotina
E o q eu faria

[Mathias]
N pode 
Muito perigoso isso
Mas serio, autoteste é suave de fazer

 

[Ícaro]
Como sabe isso tudo?
 

Ele demorou um pouco para responder. Tive a estranha impressão que estava pensando no que dizer.

 

[Mathias]
Tenho um amigo q tem hiv
E meu ex tbm era soropositivo

As vezes a gnt se descuidava
Eu tomava PrEP mas preferia testar por garantia
Ai fiz o autoteste umas duas ou três vezes

 

[Ícaro]
Prep?

[Mathias]
Profilaxia pré-exposição

[Ícaro]
Amor
Eu mal entendo portugues
Vc acha q eu sei língua de médico?

 

Ele mandou uma figurinha de um cachorro rindo.

[Mathias]
PrEP é tipo um anticoncepcional pra HIV
E dnv, SÓ pra hiv, n vale pra outras dsts
Parei de tomar logo q terminei com ele
Ainda bem pq me dava muito enjoo
 

[Ícaro]
Então seu ex-namorado te ensinou sobre HIV e o atual ensinou Libras
Com sorte o proximo te ensina a ficar rico

Ele demorou uns instantes pra responder e enviou uma figurinha de um Homem-Aranha com uma cara muito irritada.

[Mathias]
Eu n gostei desse ngc de proximo namorado nn

Dei risada.

[Ícaro]
Foi só brincadeira

[Mathias]
Tá mas eu n gostei :(

[Ícaro]
Ok ok desculpa
Esquece isso de proximo namorado
Ou vai ser eu ou vai ser eu e acabou

[Mathias]
Melhor assim

Hesitei tentando conter a curiosidade. Não era o tipo de coisa que eu devia perguntar e eu sabia disso, mas não pude evitar.

[Ícaro]
Sei q n minha conta
Mas
Posso perguntar pq terminou o ultimo namoro?

De novo, Mathias demorou a responder. No alto da tela aparecia e desaparecia um "digitando..." 

Roí a unha enquanto esperava.

 

[Mathias]
Complicado
Era tudo d boa
Mas em dado momento ele parou de fazer o tratamento
Falou algo tipo "eu ja vou morrer msm, pra q tomar remedio?"
Eu vi q ia dar ruim e pulei fora
Ele n era do tipo q queria sair passando HIV, na real era bem cuidadoso mas
Parar o tratamento colocava a saude dele e a minha em risco, ent 
Decidi q minha prioridade nessa situação tinha q ser eu msm
Ele ter hiv n me incomodava, o problema foi parar o tratamento msm

Cerrei os lábios pensando um instante. Tive uma leve vontade de perguntar mais, numa mistura de curiosidade e desconforto.

Mas percebi que era o tipo de coisa que saber mais só serviria para me fazer sentir mal e me deixar ciumento atoa. Por isso, decidi que o melhor era mudar o assunto.

[Ícaro]
Entendi
Espero q Lexi fique bem

[Mathias]
Ela vai amor
N se preocupe
Tenho ctz q vai dar tudo certo
Como foi o dia com seus amigos?

 

[Ícaro]
Bom
Mas estranho
Mas bom
Eu achei estranho
N gosto de achar estranho ficar com meus amigos
Mas eles foram bonzinhos cmg :)

 

[Mathias]
Isso é bom
Vc precisa de um tempo pra se reabituar tudo bem
Normal ser estranho por enquanto
Eu fiquei so em casa o dia todo ent n tenho muita novidade

 

[Ícaro]
Como ta com sua mãe?

 

De novo ele demorou a responder. Não sabia se era o assunto que o deixava desconfortável ou se ele só estaria com sono.

[Mathias]
A gnt conversou
Resolvemos a briga
Mas ela foi pro trabalho ent
Solidão nossa de cada dia

Mordi os lábios outra vez sem saber o que dizer.

[Ícaro]
Vc devia adotar um bichinho pra n ficar mais sozinho
Tipo um gato
Assim ele ia dormir no seu sapato igual a Baunilha

 

Tirei uma foto da Baunilha dentro do meu sapato com os olhinhos fechados, a cabeça pendendo um pouco pra frente e enviei.

[Mathias]
Q fofaaaaa
N sei se minha mae deixaria
Mas é uma ideia legal ♥


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Notas finais do capítulo

Será se o Mat vai adotar a Cacau? ♥



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