Sinais escrita por Sirena


Capítulo 29
Exposições


Notas iniciais do capítulo

Obrigada fran_silva, Isah Doll e heywtl pelos comentários maravilhosos ♥
Espero que tenham todos tido um bom feriado e que tenham uma boa semana tbm ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796817/chapter/29

Mathias

 Ícaro estava irritado.

Ok, eu sei que isso não parece uma informação útil porque Ícaro passava 90% do tempo dele irritado. Mas, ele real tava irritado.

 

[Ícaro]
Vc vai msm, n é???
Diz q sim
Vc tem que ir

 

[Mathias]
Amor
Eu já to aq

 

Guardei o celular tentando me focar ao meu redor porque era tensão demais numa só ida ao cinema.

Eloá estava aqui e Eric estava praticamente se escondendo atrás de Samantha. Juan já tinha chegado e estávamos esperando apenas Simone, Alexia e Ícaro. Ele ficou duas semanas sem sair e o pai dele decidiu que ele tinha de sair com a Alexia hoje.

Se eu fosse mais corajoso, provavelmente conversaria com o Felipe sobre o quão má ideia era forçar o Ícaro a sair com os amigos da Lexi. Mas, não sou corajoso então... É o que meu sogro manda.

— Simone! – Eloá deu um gritinho agudo quando avistou a amiga e foi correndo dar um abraço nela.

— Meu Deus, elas se falam como se não se vissem há dois anos! – Juan deu risada do meu lado e eu apenas concordei com a cabeça.

Simone estava com o cabelo castanho preso num rabo de cavalo alto e um vestido azul de alças finas, com pequenas flores amarelas estampadas na saia.

— Mathias, você veio! – Si praticamente pulou em cima de mim, me prendendo num abraço forte, o cabelo fazendo cócegas no meu nariz e o cheiro de perfume da Barbie inundando meus sentimentos por um instante. — Nossa, você tá lindo com essa maquiagem! Algum dia vai ter que me ensinar a fazer um delineado desses!

Dei risada, meu rosto ficando quente.

— Valeu, Si.

— Ah, eu trouxe algo pra você! – ela sorriu mais, tirando um batom de dentro da bolsa de alças. — Achei que essa cor ia combinar com seu tom de pele.

— Ei, Simone! O aniversariante sou eu! – Eric bufou, puxando a garota pela cintura para um abraço.

— Ai, sai, Eric! Eu já te vejo todo o dia! Não se ache especial! – Simone revirou os olhos, num tom teatralmente desgostoso, então riu e deu um beijo na bochecha do Eric. — Onde estão Lexi e Ícaro? Mathias, você já reparou como o nome do seu namorado se parece um pouquinho com “caralho”?

Franzi a testa. — É... Eles tão chegando já.

— Meu aniversário e vou ter que ver um filme legendado. – Eric resmungou, parecendo irritado.

— Você sabe ler, não sabe? – arqueei a sobrancelha.

— Uau. Alguém tá aprendendo. – ele debochou antes de dar risada. — Certo, você venceu dessa vez.

Tentei não rir enquanto olhava em volta, tentando vislumbrar os gêmeos, a impaciência começando a tomar conta de mim. Tinha vaga consciência das conversas ao meu redor, mas resolvi me focar em conversar com a Samantha.

— Por que eles tinham de vir? - ela suspirou puxando um fio de cabelo solto da trança que tinha me pedido ajuda para fazer.

— É tudo siamês. – murmurei para ela. — Eric só ia convidar a Lexi e a Simone, aí a Simone convidou a Eloá e ele ficou bravo, mas não disse nada porque não pode explicar porque não vai mais com a cara dela. Enfim, Lexi vai trazer o Ícaro e ela também mencionou sobre perto do Francisco e do Juan então os dois se convidaram.

— Que falta de educação.

— Total.

— Odeio gente desconhecida. – Sam cochichou para que apenas eu pudesse ouvir.

Antes que eu pudesse concordar, me assustei sentindo me abraçarem por trás e olhei sobre o ombro. Ícaro encostou a testa nas minhas costas, me abraçando com mais força.

— Ei... – uni as sobrancelhas desmanchando o abraço para poder olhá-lo. — Ei, tudo bem? – sei que é idiota tentar falar em português com o Ícaro, mas falar em Libras era meio impossível quando ele estava olhando para o chão e não para mim.

Ele não ergueu os olhos enquanto voltava a me abraçar, escondendo o rosto no meu peito.

— Dia ruim. – Alexia declarou, antes de ir desejar feliz aniversário para o Eric.

Ah!

Segurei a mão do Ícaro e beijei a ponta dos seus dedos enquanto tentava ver seu rosto.

“Eu realmente não queria sair de casa hoje.” – declarou sem me olhar. – “Não me sinto bem.”

Suspirei o abraçando outra vez.

— Mat, vem! – Sam chamou e percebi que ela e os outros já estavam entrando no shopping. Suspirei outra vez.

— To indo.

A mão de Ícaro se fechou na gola da minha camisa quando tentei me mexer. Ele ergueu os olhos para mim, parecendo hesitar.

“Fica comigo hoje. Por favor.”

Sorri.

Eu tô bem aqui.” – garanti, deixando um beijinho em sua testa em seguida. – “Não se preocupa. Vem.”

***

A ansiedade pesava como o próprio martelo do Thor sobre a mesa em que estávamos na praça de alimentação. Bandejas de hambúrgueres, sushis, tortas e pratos de comida sobre a mesa, junto a sucos, refrigerantes e mais um monte de coisa se acumulando, tudo sendo devorado em uma velocidade surpreendente, e de uma maneira que poderia ser considerada farta ou nojenta dependendo de quem estava falando.

Ícaro parecia incrivelmente ansioso.

Eric também.

E eu tava tentando não me deixar atingir por toda aquela tensão e me focar nas conversas ao redor, mas caralho, estava difícil.

Suspirei enquanto pegava algumas batatas fritas na bandeja do Ícaro, uma vez que já tinha comido as minhas. Imediatamente ele arrancou as batatas da minha mão, rindo.

“É meu. Você já comeu o seu.”

“Você nem tá comendo! Divide!” – bufei esticando a mão em direção a sua bandeja e levando um tapinha em seguida. – “Vamos, Ícaro! Não seja egoísta!”

“Sai!”

Dei risada enquanto ele começava a me fazer cócegas na barriga, fui obrigado a dividir minha atenção entre roubar seu lanche e lhe devolver as cócegas. Ícaro ria, escorregando na cadeira e jogando a cabeça para trás enquanto tentava não cair.

Não é querendo me exibir, mas... Eu sempre ganhava dele nas guerras de cócegas.

Ícaro respirou fundo, apertando minhas mãos e tentando conter o riso ao mesmo tempo em que recuperava o fôlego.

“Não pega minha batata.” – pediu, fazendo bico, ainda rindo.

“Você é uma pessoa terrível, sabia?” – dei risada.

Imediatamente o riso no canto dos seus lábios sumiu e ele abaixou os olhos.

Opa.

Segurei seu queixo, fazendo me olhar de novo.

“Foi uma brincadeira.” – garanti. Ícaro às vezes... Quando ele ficava ansioso assim, às vezes ele tinha mais dificuldade de entender quando eu falava essas coisas como uma brincadeira.

E às vezes eu esquecia que ele ainda não estava bem o bastante para eu falar essas coisas mesmo que apenas brincando.

Observei-o morder os lábios e passar as mãos pelos cabelos roxos, enrolando o dedo em um dos cachos (um que, aliás, tava bonitinho demais, parecia até desenhado, que fofo), antes de, por fim pegar uma das batatas e fazer sinal para que eu abrisse a boca.

Dei risada, meu rosto queimando enquanto obedecia.

— Meu Deus, eu não to nem segurando vela mais! To segurando um castiçal inteiro! – olhei assustado para Simone que ria observando a gente. — Vocês são tão fofos, puta que pariu! Vão se foder! Fofos do caralho!

Como eu tava comendo, resolvi que era melhor só fazer o sinal de obrigado.

Ícaro apoiou o queixo na mão, os olhos indo de mim para a Simone com um jeito confuso.

“Ela tava dizendo que a gente é fofo.” – expliquei.

Ele abriu a boca como quem fala “ah” e então fez careta. – “Fofo é uma palavra grande.”

“Não. É só que ela falou com alguns palavrões para dar ênfase. Tipo, muitos.”

“Ouvintes.” – revirou os olhos.

Fofo do caralho!

— Ai, Mat, você é maravilhoso! – Sam deu risada do outro lado da mesa.

— Sou mesmo. – dei risada, fazendo sinais para traduzir enquanto falava. Do meu lado, Ícaro revirou os olhos de novo.

— Realmente. Eu nunca teria paciência para traduzir isso tudo. – Eloá riu enquanto esticava a mão em direção ao seu copo de refrigerante. Franzi a testa, abaixando as mãos, sem ter bem certeza se devia, ou mesmo se queria, traduzir essa parte. — Seu irmão tem uma puta sorte, Alexia.

Franzi a testa mais ainda. Eu conhecia esse tom e não gostava. Era um tom que parecia dizer que eu estava fazendo um favor ao Ícaro por namorar com ele e isso era uma colocação tão...

— Uau. – Lexi revirou os olhos e tenho que dizer que ela nunca se pareceu tanto com o Ícaro quanto naquele instante, então sorriu, o rosto se abrindo numa expressão brincalhona que era estranhamente mais aterrorizante do que a de sarcasmo. — Se você acha isso mesmo, por que não diz pra ele e não pra mim? Medo que ele te mande pra puta que pariu?

Eloá deu risada, provavelmente ignorando a raiva nos olhos da minha cunhada.

— Só to dizendo que não é todo mundo que se esforçaria tanto assim.

— Não é um esforço tão grande. – murmurei sem jeito porque, na verdade, Libras era até que bem fácil. Tinham sinais que eram fáceis de confundir, claro, mas dava para aprender tantos sinais e frases num só dia...

— Não sei não, Mat. Tenho certeza que pra certas pessoas seria um esforço do caralho. – Eric comentou, afastando sua bandeja.

Olhei por baixo da mesa e estava para lhe dar um chute quando ele continuou:

— Tipo, sei lá... A Eloá mesmo, por exemplo, ela com certeza não aguentaria namorar qualquer pessoa que tivesse uma única característica que fugisse do padrãozinho dela.

Eita porra!

Me ajeitei na cadeira de novo.

Ícaro beliscou minha orelha, olhando de uma pessoa para a outra da mesa sem entender nada do que estava acontecendo. Segurei sua mão porque seria realmente complicado traduzir o que tava acontecendo enquanto o silêncio tomava conta da mesa e a tensão ficava quase intragável. Só a ideia de falar qualquer coisa, fosse com as mãos ou com a boca, era meio que assustadora naquele momento.

Ele me olhou confuso e eu suspirei. O bom de namorar uma pessoa por vários meses é que vocês desenvolvem meio que uma linguagem através dos olhares e acho que isso ficou bem evidente porque Ícaro apenas concordou com a cabeça como se eu realmente tivesse dito algo.

— Por padrão você quer dizer saudável? – Eloá franziu a testa. — Só to dizendo que nem todo mundo tem a coragem do Mathias, só isso. Não precisa se doer.

— Ei! – olhei irritado. — Eu apostaria um bilhete premiado de loteria que meu namorado é mais saudável que você, então cuidado com a língua! – não pude resistir ao impulso de fazer o sinal de “puta” logo que acabei de falar.

Eloá revirou os olhos.

— As pessoas têm ideias bizarras do que é ser saudável. – Eric comentou, olhando de forma realmente furiosa para Eloá.

Por que ele quis lavar a roupa suja logo agora, inferno? Ele teve meses pra isso, porra! Por que agora?

— Tá começando a parecer pessoal. – Eloá riu.

— Talvez seja.

Tamborilei meus dedos na testa tentando me livrar da sensação de desconforto que claramente todo mundo naquela mesa estava sentindo.

— Então, gente... – Francisco começou, parecendo desconfortável. — Vocês acham que o multiverso vai ser real nesse filme ou é tudo pegadinha do Mysterio?

Admirei o esforço do Fran, mas a frase dele não fez nenhum efeito sobre a mesa. A tensão ainda era absurdamente intensa. Eloá e Eric se encaravam como se estivessem para se matar.

Estremeci.

Abri a boca pensando em algo para dizer, mas desisti.

— Você é podre, Eloá. – Eric bufou, desviando o olhar e cruzando os braços, completamente defensivo.

— Ok, alguém pode explicar o que caralhos tá acontecendo? – Juan bufou batendo a mão na mesa, claramente estressado com todo aquele nervosismo.

Respirei fundo.

Eric esfregou o rosto e abriu a boca, mas Eloá foi mais rápida:

— Eric tá putinho porque eu não quis namorar com ele por ele ter AIDS.

Eric bateu na mesa, irritado. — Eu não tenho AIDS, tenho HIV. É diferente.

— Não sei onde.

— HIV é o vírus, a pessoa só desenvolve AIDS se tiver o vírus e não tratar. – murmurei hesitante, mas me arrependi logo em seguida de ter aberto a boca. Tantos olhares em cima de mim, foi totalmente desconcertante.

A mesa, meio que tava uma bagunça naquele instante.

Olhos arregalados, expressões surpresas, Ícaro confuso, perguntas no rosto de todo mundo, silêncio.

 

Troquei um olhar com Eric e não era difícil ver o que estava acontecendo na sua mente. Era muita coisa, pensei. Era muita coisa para ele rever, memórias demais para revisitar de uma só vez. Os olhares que dirigiam a ele de repente, eram de julgamento, preocupação, pena e outros sentimentos indignos. Ele não merecia aqueles olhares.

Eram frases pesadas e injustas de mais transmitidas por olhares.

— Eu vou... É... - Eric balançou a cabeça sem concluir a frase, o rosto vermelho enquanto deixava a mesa.

— A pessoa conta que tem HIV depois da gente já ter transado e eu tenho que ficar com ela? Me poupa! – Eloá bufou, se defendendo antes mesmo que alguém pudesse dizer algo. — Eu fui correndo fazer um exame depois que ele contou.

Alexia se encolheu no canto da mesa e eu entendia o quanto aquilo também estava atingindo ela. Devia ser tão confuso...

— Ai, ele vacilou também. – Simone cerrou os lábios.

— Ele devia ter falado antes. – Francisco concordou.

Estranhamente, aquela foi minha gota d’água.

Dei risada.

— Só por curiosidade... Com quantas pessoas vocês já transaram? – arquei a sobrancelha. — Vocês sabiam a sorologia de todas? Perguntaram a sorologia de todas? Aliás, vocês sempre transam de preservativo? E sim, isso inclui o oral. Ah, e vocês sabem se a sorologia de vocês é mesmo negativa? Fazem os exames a cada seis meses sem falta? Se querem bancar os santinhos responsáveis e dizer o que os outros deviam fazer é melhor que a resposta para todas essas perguntas seja “sim.” Porque se não, vocês não têm moral pra falar porra nenhuma.

— Cara, qual é... – Francisco se mexeu desconfortável no lugar, sua expressão entregando que a resposta para todas as perguntas provavelmente era “não”. — Ele tinha essa obrigação...

— Contar era uma opção. Apenas uma opção. A única obrigação dele é fazer o tratamento... Não, nem isso! A única obrigação mesmo é de usar preservativo. O tratamento ele faz porque quer. O resto é só opção. Não é uma coisa fácil de contar. E sabe por que não é fácil de contar? Porque as pessoas reagem exatamente igual vocês tão reagindo agora, cheios de acusações e perguntas como se ele fosse culpado de um crime. Sendo que tipo... Literalmente diabete e HIV são classificados como doenças crônicas e os remédios têm efeitos até bem parecidos, mas... - minha voz tremia.  — Mas, nossa! Ninguém ligaria se ele dissesse que não pode comer algo por diabete, mas fazem esse escândalo todo por HIV? Ah, puta que pariu! Calem a boca porque a única razão pra essa vagabunda aí ter querido fazer os exames, foi porque ela ficou com medo e é ignorante pra caralho e não porque ela se preocupa com a própria saúde! Até porque se ela se preocupasse realmente ela saberia o bastante para não expor ele!

— Você me chamou de quê? – Eloá me olhou com desgosto.

— Que eu saiba o único surdo nessa mesa é meu namorado, então não preciso repetir. – bufei me levantando. — Agora, eu vou procurar o Eric e desejar que vocês todos ardam no inferno!

Samantha veio comigo.

O que não foi surpresa, mas ela estava me olhando num misto de espanto e orgulho enquanto a gente andava.

— Que foi? – arqueei a sobrancelha, minhas mãos tremiam e meu rosto queimava de raiva.

— Você. – ela riu. — Eu tava pronta pra fazer um discurso, mas você humilhou todo mundo ali atrás. Caralho... Meu bebê cresceu, to emocionada!

Dei risada. — Talvez eu tenha exagerado. A ignorância meio que é normal.

— Mas, não é certa. Ainda mais numa época em que a gente pode simplesmente pesquisar na internet. – ela reforçou, cerrando os olhos. — Você foi incrível e definitivamente não exagerou. Eu te achei fantástico. Devia levantar a voz assim mais vezes.

— Ah... – encolhi os ombros. — Eu só odeio ver gente fazendo isso com ele. Eric já ouviu essas coisas antes, não precisa passar por isso de novo.

— Eu nunca achei que ia ver isso. – ela murmurou. — Tipo, ver o Eric te protegendo é normal. Nunca pensei que ia ver o inverso.

Respirei fundo. — Eu também nunca achei que ia fazer isso.

— Você é um bom amigo, Mat. – Sam olhou sobre o ombro. — Só é um namorado ruim porque esqueceu o seu namorado lá na mesa com um monte de preconceituosinho de merda.

Arregalei os olhos, parando.

— Relaxa, ele tá vindo atrás da gente. – ela riu, beliscando minha bochecha de forma afetiva.

Me virei e vi Ícaro, Alexia, Simone e Francisco vindo atrás da gente. Parei.

Ícaro me abraçou, encostando o queixo no meu ombro. Contive um riso enquanto o abraçava de volta. Seu suspiro bateu no meu pescoço segundos antes de se afastar.

“Teve briga na mesa depois que você saiu.” – fez careta. – “Pareceu briga feia. Alexia me puxou pra cá. Não to entendendo nada! Isso é irritante! Eu odeio isso!”

Suspirei.

“Desculpa. Tava nervoso demais para traduzir o que tava acontecendo.”

“Me explica agora então!” – ele bateu o pé enquanto falava. – “Odeio não entender as coisas! Odeio, odeio, odeio!”

Hesitei.

“E-L-O-Á contou pra todo mundo que o E-R-I-C tem H-I-V.”

“Ele tem?” – Ícaro franziu a testa.

Fiz o sinal de sim.

Ele respirou fundo.

“Começaram a falar coisas idiotas e ele se estressou.” – conclui.

“Que ridículos.” – cerrou os olhos. – “Isso não é o tipo de assunto que as pessoas deviam brigar numa mesa. É um fato que não diz respeito a elas.”

Abri e fechei a boca antes de sorrir.

“Eu te amo mais ainda agora, sabia?” — Ícaro deu risada e eu fiz careta emendando rapidamente – “Desculpa não ter traduzido o que tavam falando na hora, e ter saído daquele jeito, sei que você não tá bem hoje e...”

Ele deu de ombros. – "Foi por um motivo importante, tudo bem."

Sorri enquanto ele segurava minha mão por um momento, me olhando de um jeito diferente. Um jeito mais intenso, mais... Não sei. Mas, foi diferente. Fez meus órgãos revirarem. Mas... De um jeito bom. Não sei se deu para entender.

— Achei! – dei um pulo de susto com o grito da Samantha e ela me olhou com um desdém amigável. — Amor, eu sei que é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, é love, é você brigando com gente ignorante, é gente ignorante vindo atrás, mas vamos manter o foco em procurar o loirinho, vamos? Vem, vamos lá. O garoto tá pegando sorvete. Vem logo.

Deixei a Sam me puxar e tentei não olhar feio para Simone e Francisco que seguiam atrás da gente embora sem jeito. Mesmo se eles estivessem tentando não ser ignorantes, eu tava na defensiva e também estava bem desconfiado da intenção deles. Por mim eles não chegavam nem a vinte quilômetros do meu amigo nesse momento, sinceramente.

Eric estava sentado num banco perto de um quiosque de sorvetes.

— É de ovomaltine? – perguntei sentando do lado dele.

Ele deu risada, como tinha visto a gente chegando, não pareceu se assustar, apenas parecia... Nervoso.

— É sim, quer?

— Não, muito enjoativo. – dei de ombros. — Tá bem?

Ele suspirou, mexendo os pés e dando uma colherada no sorvete enquanto se encolhia, olhando timidamente para seus amigos, como se não tivesse bem certeza do que estava acontecendo.

Ver o Eric tão acanhado e tão acuado era só tão antinatural que chegava a ser doloroso.

— Eu quero. – Alexia declarou se sentando do outro lado dele. — Posso?

—... À vontade. – a voz dele tremia enquanto ela tirava o copinho de sorvete da sua mão e enchia a colher generosamente. — Só não tudo, Lexi.

Ela deu risada.

Simone pareceu hesitar antes de ajoelhar-se na frente do banco devagar e pegar as mãos do Eric. Ele se encolheu como se temesse, mas ela apenas beijou a ponta dos seus dedos e se levantou em seguida.

— É... Eu ainda não to entendendo direito porra nenhuma. – o Francisco declarou encolhendo os ombros e se balançando nos próprios pés. Era só uma cena tão desconfortável, caralho!

Ícaro beliscou minha mão.

— Você arruína um momento como ninguém, né, Francisco? – revirei os olhos para o Fran enquanto me virava para meu namorado. - “Que foi, amor?”

“Esse momento todo... Não acho que eu devia fazer parte, é mais coisa de amigos.”

“Tá tudo bem...” – ele negou com a cabeça enquanto eu falava e então sorriu.

“Vou comprar sorvete. Quer que eu pegue um pra você?”

“Não precisa, obrigado.”

Seu sorriso aumentou, me deu um beijo na testa antes de ir para o quiosque.

Voltei a atenção para o que estava acontecendo, percebendo que tinha perdido parte da conversa.

— Fran, cara, sério... – Eric revirou os olhos. Percebi que estávamos na parte que ele mais odiava, a parte das perguntas. — Não é nada de mais, na real. Tipo, é, eu tenho que tomar um remédio, todo dia e sempre que rola qualquer coisa mais séria sobre privatizar o SUS eu fico com um medo do caralho, mas tirando isso é só um grande “foda-se” na minha vida.

Alexia se inclinou para frente, ainda tomando o sorvete que Eric tinha comprado.

“S-U-S?”

Achei engraçado ela ter ido direto para Libras mesmo a conversa sendo oral. Às vezes, Alexia fazia isso. Por mais que ela fosse mais acostumada a conversar em português, a primeira língua dela ainda era a Libras, então quando estava no automático, sempre ia imediatamente para língua de sinais.

— Os remédios são todos pelo SUS, amorzinho. – expliquei.

— E os exames. – Eric completou, não parecendo perceber ter perdido uma linha do assunto. — Eu tenho que fazer os exames periodicamente pra verificar minha carga viral. Os remédios são a minha maior preocupação, se privatizassem eles iam ser caros pra caralho e como eu tenho que tomar todo dia sem falta... Seria um inferno. Eu já vivo com medo de rolar algum embargo e atrasarem pra chegar... Isso nunca aconteceu, claro, mas... Pelo menos, não aqui. Acho que já deve ter acontecido em outros estados e cara, deve ser desesperador!

Concordei com a cabeça, já tinha imaginado a situação algumas vezes e realmente devia ser angustiante.

— Mas, tipo, é só o remédio mesmo? – Simone trocou o peso de uma perna para a outra, parecendo desconfortável. — Tipo, você não tem que ter nenhum cuidado, tipo... Tipo, sei lá, não sei... Alguma outra coisa?

Eric ergueu os olhos para o teto e Sam revirou os olhos. Ela não tinha paciência para didática e tenho certeza que estava mordendo a língua para não dar nenhuma resposta afiada, isso ficou ainda mais claro quando ela abriu a boca para falar:

— Olha, me deem o dinheiro dos ingressos, eu vou comprar enquanto vocês resolvem isso.

Instantes depois de Sam já ter sumido de vista, Eric continuava sem falar nada, mexendo os pés como se estivesse tentando entender o que os amigos estavam pensando.

Me lembrei de algo que o Alex disse uma vez quando namorávamos: para as pessoas, podemos separar quem tem HIV em dois grupos. O grupo das vítimas, que se contaminaram por transmissão vertical ou pegaram de um parceiro que pulava cerca e o grupo dos culpados, que se contaminaram num momento de descuido. As vítimas eram coitadas para toda vida, os culpados eram vistos como promíscuos que mereciam tudo de ruim que os atingisse, se você fosse uma garota ou LGBT, era pior por questões de machismo, homofobia, julgamentos com base em religião e etc.

Tive vontade de gritar que o Eric estava no grupo das vítimas, que não foi descuido dele e sim dos pais... Só para ver se assim, aqueles olhares sobre ele se atenuavam. Mas, sabia que não era meu direito dizer isso e que se ele realmente achasse que isso ia ajudar no momento, teria dito... E também sabia que ele odiava essa separação em grupos de vítimas e culpados porque ninguém merecia viver com um vírus a vida toda.

— Tá, seguinte... – Eric respirou fundo. — Não, porra! Eu vivo a vida numa boa. O que cês tem de entender é que os remédios hoje são bons pra caralho! Bons o bastante para que a quantia de vírus no meu sangue seja indetectável. Quem pega HIV hoje em dia, com três ou quatro meses de tratamento já fica indetectável. E isso significa duas coisas, a primeira é que nem os exames de sangues mais avançados conseguem detectar vírus no sangue porque a carga viral é super pequena e a segunda... É que a carga viral é tão pequena que é intransmissível!

— Sexualmente intransmissível. – corrigi. — Uma mulher com HIV que amamenta e não faz uso daquele remédio lá pode passar pro filho pela amamentação, não é?

Ele franziu os lábios. — Eu não tenho certeza. Por via das dúvidas é melhor acreditar que é só sexualmente intransmissível. Mesmo assim já é algo foda. E óbvio que ser intransmissível não significa que pode transar a torto e a direito sem camisinha porque existem outras DSTS e como o HIV age de um jeito diferente em cada corpo e tem uma forma diferente em cada corpo, eu poderia contrair uma versão diferente e foder meu tratamento todo.

— Você ainda tem que tomar o remédio mesmo assim? – Francisco perguntou, mudando o peso de um pé para o outro.

— Sim, se não a carga viral sobe de novo e se duplica numa forma diferente, então o remédio deixaria de fazer efeito. – Eric deu de ombros. — Mas, isso não significa que eu não seja saudável, entende? Eu faço uma alimentação saudável, frequento a academia, faço os exames para outras DSTS a cada seis meses, faço o acompanhamento da minha carga viral frequentemente... Corro cinco quilômetros todo fim de semana, frequento um grupo de apoio para pessoas com HIV e ajudo quem se descobriu soropositivo recentemente, faço terapia... Faço prevenção combinada. É de boa. O problema maior hoje em dia é social e psicológico, sério. É pensar “porra, eu nunca vou achar alguém que me aceite com isso e vou morrer sozinho” ou “caralho e se eu esquecer o remédio? E como outras pessoas vão reagir se descobrirem isso?” É foda, eu vivo com esses pensamentos na cabeça o tempo todo, mas eu lido bem com eles. Eu vivo bem com HIV, na real vivo melhor que muita gente que nem HIV tem. Só é um problema mesmo quando entra na questão de namoro porque quase ninguém lida bem com isso, e na questão de pessoas ignorantes que reagem mal com isso, mas... – outra vez, deu de ombros.

— Pois é, galera ainda acha que HIV é sinônimo de uma vida fadada a fraqueza e doenças quando é só uma vida normal, levemente paranoica.

— Levemente paranoica? – Eric me olhou de forma acusativa.

— Você sempre fica nervoso quando acha que esqueceu o remédio. – dei risada. — Mas, enfim, é isso. Não é uma sentença de nada, o que obviamente não significa que não se deva se prevenir. Ainda é um vírus perigoso, só não é a mesma coisa que nos anos setenta.

— Os anos setenta foram foda. - Eric concordou. — Sou tão grato por ter nascido nos dias de hoje... E no Brasil.

— Quem é grato por viver no Brasil, meu Deus do céu? - Francisco franziu a testa.

— O Brasil é referência mundial no tratamento de HIV. - expliquei.

— Sem mais perguntas, por favor. – Eric declarou se levantando quando Simone fez menção a abrir a boca. – Chega.

Havia um tom de súplica na sua voz que me deixou verdadeiramente preocupado. Me levantei e apertei seu ombro.

— Tá tudo bem, cara. Eu tô aqui. - murmurei para ele no mesmo tom que ele sempre murmurava quando percebia que eu estava para entrar em pânico.

Francisco e Simone trocaram um olhar um instante antes de darem de ombros.

— Alexia acabou com seu sorvete, Eric. – Simone declarou e Eric se virou imediatamente para Lexi que seguia em silêncio, tentando pegar os mínimos restos de sorvete na colher.

— Lexi! Eu disse pra não comer tudo!

— Mas, vocês tavam tão distraídos... Eu achei que você não queria mais. – ela inclinou a cabeça lambendo os lábios, seu rosto numa mistura de inocência e deboche que... Sinceramente, como nunca antes eu tinha reparado quão parecida ela era com o Ícaro?

Tipo, ok, eles são gêmeos, eu sei! Mas, até o jeito de falar era igual o dele, o que é um absurdo porque que o Ícaro fala com as mãos! Essa semelhança não devia ser possível!

— Alexia, você é um ser humano horroroso. – Eric bufou.

Dei risada, olhando ao redor começando a perceber a demora do Ícaro e sorri ao vê-lo voltando trazendo um sorvete de casquinha de creme.

“Atendente demorou a me entender.” – ele explicou antes mesmo que eu pudesse perguntar parando do meu lado. – “Tá tudo bem aqui?”

“Tá sim.”

Ícaro sorriu voltando sua atenção para o sorvete de casquinha que já começava a derreter em sua mão e fez careta.

— Vamos ver se a Sam conseguiu os ingressos? – Francisco suspirou.

Antes que eu pudesse concordar, Ícaro apertou meu braço, chamando minha atenção.

“O sorvete tá com o cheiro estranho.” — ele fez bico parecendo decepcionado e olhando para o quiosque sobre o ombro antes de me olhar de novo – “Cheira.”

Hesitei antes de aproximar o rosto, um pouco confuso e dei um gritinho com a sensação gelada repentina que veio quando Ícaro passou o sorvete na minha cara.

— Por quê? – gritei, tentando afastar o sorvete do meu nariz e da minha bochecha enquanto ele gargalhava.

— Gente, pelo amor de Deus...  – ouvi a Simone falar.

— Não acredito que você caiu nessa, amorzinho. – Alexia também ria. — Vem, vamos logo ver os ingressos.

Não consegui responder, estava ocupado demais tentando tirar o sorvete do meu nariz e olhando irritado para meu namorado.

“Não deu pra resistir. Desculpa.” – Ícaro contraiu os lábios enquanto falava, tentando controlar os risos.

“Você vai ver só.” – cerrei os olhos e puxei-o. Ícaro deu um grito, tentando se afastar enquanto eu tentava alcançar a casquinha de sorvete para poder passar na cara dele.

Apertei sua cintura, deixando a ameaça de cócegas bem clara. Ícaro se dobrava de rir tentando escapar e acabou deixando o sorvete cair.

“Meu sorvete!” – ele deu um pulo para longe de mim, olhando triste para a casquinha no chão.

“Mereceu.” – dei risada.

— Vocês dois podem voltar para realidade e vir logo? – Eric bufou.

— Um instante.

Limpei os restos de sorvete da minha bochecha e passei o dedo sujo no nariz do Ícaro. Ele me olhou assustado e me empurrou rindo.

“Sem graça.” — falou antes de se abaixar e pegar a casquinha para poder colocar no lixo.

Ainda ficaria sorvete no chão, mas, bom... Já era algo, né?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sinais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.