Flashlight escrita por Brigadeiro


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Inicialmente era pra história ter 3 capítulos + epílogo. Mas eles ficaram grande demais então eu dividi os pontos de vista. Então agora se tornaram 6 capítulos + epílogo.

Pretendo postar os próximos dois em Novembro, e então os últimos no natal.

Apenas avisando, comunicação é sempre bom, embora eu quase nunca me comunique como se deve.

Esse capítulo pode ser pesado se você tem sensibilidade à momentos de crise, principalmente crises de ansiedade. Leia com cuidado, qualquer coisa minha DM esta sempre aberta.

Boa leitura.



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Doug’s

 

Like a tidal wave, I’ll make a mess

Or calm waters if that serves you best

I will love you without any strings attached

 

It’s okay if you can’t catch your breath

You can take the oxygen

Straight out of my own chest

 

O primeiro dia de aula de seu penúltimo ano seria sempre inesquecível para Doug.

Depois dos meses de férias absurdamente entediantes e caseiros, ele não esperava muito do ano letivo além de boas notas e a esperança de continuar não sendo notado pelo demais alunos da escola. Ele não sentia nenhuma falta do tempo em que o encurralavam nos corredores. Ser invisível era bem melhor.

Mas então, quando passou pela porta da sala, ela estava lá.

Distraída com seu material, a garota mais linda em quem ele já tinha posto os olhos estava sentada na carteira dele, como se o esperasse. Organizava as canetas ao lado do caderno por ordem de tamanho, com uma pequena ruga formando-se em sua testa de porcelana pela concentração. Mas é claro que não podia ser o caso, afinal porque alguém bonita como ela estaria esperando por ele? Não fazia sentido.

Doug ficou tão chocado com a cena que não foi capaz de avançar ou de falar, nem de decidir o que fazer, mesmo quando a professora entrou na sala e o mandou se sentar. 

Então ela falou com ele.

Sem sarcasmo. Sem arrogância. Sem condescendência. Ela tinha se enganado sobre o lugar, e só então Doug percebeu que aquele era provavelmente o primeiro dela na escola, porque ele com certeza teria notado ela nas aulas antes se ela já tivesse estado por lá.

Ele não foi capaz de respondê-la imediatamente, principalmente porque ela realmente parecia preocupada por ter pegado o lugar dele. Não apenas preocupada, mas assustada, e ela lançou um olhar amedrontado para as carteiras livres ao fundo e estremeceu.

Doug gostava de seu lugar. O deixava o mais longe possível da turma detestável que se sentava no fundo e que adorava tirar sarro dele de vez em quando, mas quando a menina começou a juntar suas coisas com um olhar infeliz no rosto ele teve que ceder a carteira. Baseado em como mal tinha conseguido encontrar sua própria voz para dizer aquilo a ela, provavelmente teria cedido todo seu material e suas roupas também se ela pedisse.

Provavelmente deveria se envergonhar de sua reação pouco natural, mas não era mesmo todo dia que uma garota bonita e gentil se sentava em sua carteira e falava com ele. Não era normal, e por alguns minutos após o começo da aula ele ficou se perguntando se aquilo não seria algum tipo de pegadinha. Afinal, ela tinha sido educada e gentil, mas ele percebeu como ela tinha se retesiado quando ele tocou em seu ombro. Mas também tinha parecido genuinamente aliviada por ele ter cedido seu lugar na frente. Ele não sabia o que pensar de tudo aquilo.

Ele mal prestou atenção na aula, ocupado em observar a menina nova. Ela era fascinante. Começando pela escolha do lugar na sala. Garotas tão lindas sempre se sentavam no fundo, com os amigos populares e os namorados do time, e era muito estranho que ela tenha não apenas tenha escolhido a carteira mais à frente possível como parecia considerá-la uma espécie de bote salva vidas. E, então, tinha sua concentração. Doug não se lembrava de conhecer alguém tão determinada a entender uma aula quanto ele mesmo. Apesar de estar atrás dela e não poder ver seu rosto, ele observou como ela anotava furiosamente tudo o que a Srta. Miranda escrevia no quadro com uma caneta enfeitada bonita, mas logo ficou claro que ela não entendia uma palavra do espanhol em si. E também ficou claro o porquê ela tinha desejado sentar na frente.

Ela tinha medo da turma do fundo. Ou pelo menos parecia ter. Apesar de parecer totalmente concentrada na aula, Doug reparou em um padrão nos ombros dela. Todas as vezes que o grupinho das últimas fileiras se exaltava nas brincadeiras e as risadas ficavam muito altas, todo o tronco dela se tencionava como os de alguém que se prepara para uma luta. Ele não tinha certeza se ela mesma percebia aquilo, mas estava lá. E sua teoria foi confirmada quando Chad decidiu chamar por ela nos últimos minutos da aula.

Não era surpresa para Doug a abordagem pouco sutil do colega. Principalmente porque os tinha escutado cochicharem sobre ela durante toda a aula, curiosos e interessados. Mas, no instante em que a primeira bolinha dele a atingiu, o que antes era provavelmente inconsciente se tornou completamente consciente. O corpo dela travou na cadeira, tão parado quanto um poste, e ela começou a suar e a respirar muito audivelmente. Quando a segunda bolinha a atingiu, ela quase saltou da cadeira.

Então o sinal tocou, e ela começou a jogar sua coisas na mochila mais rápido do que qualquer máquina seria capaz de fazer. Mas como ela claramente não era uma máquina, seus dedos trêmulos e atrapalharam e derrubaram a maior parte de suas canetas no chão. Após uma hora inteira observando-a, Doug quase se sentia tão ansioso quanto ela na corrida para escapar de Chad, então se abaixou para recolher as canetas assim que percebeu que ela não conseguiria fugir a tempo.

— Eu recolho — ele conseguiu dizer a ela, ansioso para ajudar. — Vai.

E ela foi.

Doug recolheu as canetas com cuidado, parando para prestar atenção em cada uma delas. Dava para saber muito sobre alguém através das canetas que a pessoa usa se for alguém que se importe com aquilo, e uma delas chamou a atenção dele. Aquela que ela tinha usado durante a aula inteira. Era uma daquelas canetas em feitas para boa caligrafia, com cabo enfeitado e uma rosa azul se destacando na ponta.

Ele sorriu e guardou as canetas, desejando encontrá-la novamente em breve.

{...}

Aquela era a primeira vez em toda a sua vida que Doug ficava feliz por almoçar sozinho na arquibancada.

Normalmente se sentia deslocado e solitário, mas naquele dia se sentiu sortudo. De que outra maneira teria encontrado Evie – como ela tinha felizmente se apresentado – e tido a melhor conversa de sua vida?

Ela o tinha achado legal, e declarado a palavra como se fosse um fato óbvio. E tinha sorrido, ainda que bem de leve, o que a deixou ainda mais bonita como se fosse possível. E, por fim, tinha ficado sincera e genuinamente feliz em saber que teriam a próxima aula juntos.

— Como é a professora de literatura?

Eles estavam caminhando para a sala de aula após passarem nos armários para pegar os cadernos e livros, parecendo amigos como se não tivessem se conhecido há meia hora atrás. Surpreendentemente, ela estava usando o armário da namorada de Ben, o capitão do time da escola e foi quando Doug descobriu que ela era amiga de Mal. Ele achou a amizade um tanto quanto estranha porque Evie parecia ser a pessoa mais doce que ele já conheceu enquanto que Mal lhe dava medo, mas achou melhor não comentar o fato, apenas agradeceu que ela não tivesse aparecido no armário também enquanto ele estava por perto.

— Ela é bem dinâmica, tem um excelente gosto para os livros que nos manda ler e costuma usar meios alternativos de ensino.

— O que quer dizer com meios alternativos?

— Hm... Nos faz encenar trechos, montar cartazes, músicas, dar aula vestida de personagens... Esse tipo de coisa.

Evie gemeu de desgosto.

— Ela não vai fazer eu me levantar e me apresentar pra turma toda como a professora de inglês fez, não é?

— Duvido muito. A Srta. Darling é hiperativa demais sequer pra notar que você está na sala. Tenho certeza que ela vê os alunos mais como uma plateia pro hobbie dela, que são os livros.

Aquilo não apareceu tranquilizá-la tanto assim e ela respirou fundo ao passar pela porta. A sala de aula da turma de literatura da Auradon Prep era diferente do que se esperaria de uma sala de literatura comum, graças à professora que tinham. A lousa ficava entre estantes cheias de livros, que também cobriam mais duas das quatro paredes do cômodo. Um espaço grande no centro ficava livre, reservado para as encenações e debates entre alunos que a professora gostava de provocar. Ao invés das carteiras tradicionais, mesas grandes parecidas com as que se encontrava em escritórios eram dispostas pela sala e os alunos se sentavam em duplas ou trios.

Doug foi direto para a mesa na frente onde tinha se sentado sozinho por todo o ano anterior, e Evie o seguiu direto para lá se acomodando ao lado dele com uma distância razoável entre as cadeiras. Doug a observou enquanto tornava a organizar as canetas, caderno e livro como tinha feito na primeira aula, tudo milimetricamente perfeito.

— Acho que você não vai precisar disso — Doug apontou para o caderno dela quando viu a Srta. Darling entrar na sala com um aparelho de DVD nas mãos.

A professora cumprimentou os alunos de forma genérica e pouco pessoal e então anunciou que naquele dia eles assistiriam um filme contemporâneo baseado em uma obra de Shakespeare que posteriormente seria base para uma redação. Ela teve uma pequena dificuldade com os fios do aparelho ao tentar conectar tudo no projeto que apontava para a lousa branca, mas logo tudo estava ajeitado e ela deu play no vídeo.

As luzes se apagaram ao mesmo tempo em que o filme iluminou a lousa, e Doug sentiu Evie se remexer em sua cadeira. Ele a olhou pelo canto do olho e ela parecia desconfortável, mas a sala estava em silêncio enquanto as primeiras imagens começavam a surgir no telão e ele achou melhor não perguntar nada.

A história começou, mas ele foi incapaz de prestar atenção. Havia uma garota e dois caras, uma senhora e uma viagem, ele nunca tinha visto aquele filme antes, mas não se importava. Poderia encontrar online facilmente depois, só precisaria do nome, que ele também não tinha pegado. Não conseguia se focar na história porque Evie também parecia não conseguir. Mesmo entre o espaço na mesa, ele podia ver os olhos dela bem arregalados, mas não para a tela. Eles se movimentavam com rapidez, correndo entre os cantos da sala e nunca se fixando em algo específico.

Ela não gosta do escuro, ele notou.

Ela parecia sempre inspirar mais fundo quando as cenas claras mudavam para ambientações mais escuras, que automaticamente deixavam a sala mais escura também. Felizmente, eram poucas cenas assim. A maior parte do filme se passava durante o dia, em cenários no campo ou em cidades rústicas típicas de filmes clássicos. E Doug estava tão sintonizado com as reações de Evie que começou a se sentir aliviado junto com ela quando a tela ficava mais clara também. Ele podia sentir a respiração dela ao seu lado.

Por isso, foi capaz de perceber no instante em que tudo mudou.

Foi tão rápido quanto um sopro, mas atingiu Evie como se ela fosse a folha solta na mira do vento forte. Roger Ateara, no fundo da sala, fez algum comentário que todos ao redor acharam muito engraçado, e uma onda de risadinhas se dissipou pela sala e Evie arfou como se alguém a tivesse cutucado com uma agulha.

— O que é tão engraçado? — a Srta. Darling levantou a voz para repreender os alunos, mas a bronca teve o efeito contrário do que se podia esperar. Ao atrair a atenção para o aluno engraçadinho, a professora o fez de alvo de mais risadas.

— Ih, se ferrou,  Ateara — alguém comentou, e risadas mais altas irromperam.

Evie agarrou a borda da mesa que dividia com Doug, exercendo tanta força na madeira que os nós de seus dedos ficaram brancos. Seus olhos ainda estavam abertos, muito fixos na tela agora e ficou claro que o último lugar para onde ela queria olhar era para a fonte das risadas. Ela nem piscava ou se movia, com exceção de seus ombros, que pareciam fazer esforço para levar ar até ela.

— Evie? — ele chamou em voz baixa, preocupado, mas ela não respondeu.

— Compartilhe conosco sua opinião sobre a cena, Sr. Ateara, já que seus amigos acharam tão interessante — a professora insistiu.

Roger Ateara não era do tipo de aluno que ficava envergonhado de suas piadas. Doug temeu o que se seguiria porque já tinha notado o incomodava Evie e, sabia, por já ter presenciado outras exibições de Roger, que ele tornaria tudo pior.

— Evie, não quer ir ao banheiro? — ele perguntou novamente, embora ela o estivesse ignorando, desesperado para tirá-la da sala antes que Roger responder. Mas Evie não parecia nem sequer estar ouvindo-o, presa em sua própria mente.

Era como se estivessem presos em dois ambientes ao mesmo tempo. O da sala, preenchido por risadas, bom humor e a expectativa dos alunos de ver o palhaço da turma em ação. E outro particular na mesa de Evie e Doug, tomado por preocupação, pânico e seja lá o que mais Evie estivesse sentindo que Doug não conseguiu identificar.

E como prometido no mal agouro, Roger se levantou para ficar visível à sala inteira, com um sorrisinho de canto de quem gosta de brincar com fogo, e deu de ombros despreocupadamente.

— Eu só comentei, Srta. Darling, que eu concordo com o filme sobre a questão do cabelo, e adoraria especialmente ter essa Sophie com as mãos no meu — ele piscou pra professora. — Mas serve você também, linda.

Doug se encolheu com a explosão de gargalhadas que se seguiu, antecipando a reação de Evie, pra quem olhava.

Ela estava suando. Se ela tivesse um pouco mais de força, poderia ter quebrado a mesa só com os dedos. Sua respiração mal existia, reduzida a arquejos rápidos e altos que faziam parecer que ela estava sufocando. Os olhos castanhos ainda bem abertos agora estavam molhados e repletos de um terro que Doug nunca presenciara nem mesmo em filmes.

— Ev... — ele levou a mão em direção ao ombro dela, mas antes que pudesse tocá-la ela saltou da mesa e correu porta a fora.

Ninguém sequer percebeu quando a porta bateu. Os alunos ainda riam e a professora estava ocupada demais brigando com seu aluno pouco respeitoso, e Doug não pensou duas vezes sobre o que fazer. Ele recolheu suas coisas e as dela o mais rápido que podia, e então deixou a sala antes no final da aula pela primeira vez em sua vida.

Ele não se importava, precisava ir atrás dela.

A primeira coisa que notou ao sair da sala foi que os corredores estavam vazios, claro, já que todos os alunos ainda estavam em aula, mas Evie também não parecia à vista. Pra onde ela poderia ter corrido em tão pouco tempo e com a mente tão pouco clara?

— Evie! — ele chamou enquanto avançava pelo corredor, e percebe que a resposta para sua pergunta era: lugar nenhum.

Ela não tinha corrido muito após sair da sala. Logo após chamar seu nome, ouviu os arquejos engasgados bem próximos e a encontrou.

Evie estava agachada arás do bebedouro, tentando respirar. Não chorava, apenas as lágrimas secas escorriam dos olhos firmemente abertos parecidos com os de alguém que tenta não perder o vislumbre de um cometa. Parecia tão pequena quanto uma criança naquela posição, absolutamente aterrorizada e perdida. Sua boca se mexia rapidamente, sussurrando algo.

— Evie! — Doug se abaixou na frente dela, tomando o cuidado para não tocá-la. Já tinha entendido que ela também não gostava de toques e não queria piorar a situação.

— Não posso... Fechar os olhos — era o que ela repetia nos sussurros, cada palavra sendo dita entre arquejos enquanto ela buscava por ar. — Não me deixe... Fechar os olhos.

— Evie, você precisa respirar — ele pediu, desesperado e sem saber o que fazer.

Deveria chamar alguém? Procurar Mal, Ben ou alguém da enfermaria? A professora?

Não. Ele soube no mesmo instante. Não podia fazer nada daquilo porque, primeiro, não podia deixá-la sozinha. E, segundo, suspeitava de que aquilo só tornaria tudo pior depois. Ainda não conhecia Evie direito, mas sempre tinha sido muito perceptível e sabia que Evie queria muito se enturmar. Ele já tinha sido aquele garoto. O aluno novo tímido e estranho, de quem era fácil tirar sarro e que desejava ter amigos mais do que tudo. Se pudesse parar de gaguejar sempre que alguém falava com ele, ou se fosse corajoso o bastante para enfrentar as zombarias que faziam dele desde que tinha pisado naquela escola, se fosse forte o bastante pra não se esconder, talvez tivesse acontecido. Ele já tinha desistido de tudo aquilo à muito tempo, mas Evie ainda tinha uma chance. Ela não era estranha como ele, pelo contrário, era linda e as pessoas queriam falar com ela. Ela não gaguejava para falar e era espontânea e inteligente. Ela ainda podia ter tudo que queria.

Ninguém tinha visto sua reação na sala, ninguém tinha prestado atenção nela com todo o show de Roger Ateara no centro do palco. Doug ainda não entendia completamente o que estava acontecendo com ela ali, mas ela tinha uma boa chance de conseguir passar por aquilo sem se tornar o assunto do ano na escola. Mas o que aconteceria se ele a levasse para a enfermaria? O que aconteceria se o sinal tocasse no meio do caminho e todos os alunos saíssem de suas salas e a encontrasse daquele jeito? As consequências daquele tipo de fofoca poderiam fazê-la talvez nem voltar mais para a escola.

Ele precisava tirá-la de lá antes que alguém aparecesse.

— Evie, precisamos sair daqui — ele a chamou de novo, dessa vez mais alto, balançando as mãos na frente do rosto dela.

Ela encarava o vidro espelhado do laboratório de ciências agora, quase petrificada exceto por suas mãos que apertavam os dois lados da cabeça como se tentasse expulsar os pensamentos de dentro de seu cérebro.

— Por favor — ela repetiu mais alto, e Doug pensou que ela talvez estivesse tentando responder a ele.

Ele olhou ao redor, para as portas das salas que estavam prestes a se abrir assim que o sinal batesse e sentiu a urgência do momento. Quer ela estivesse falando com ele ou não ele precisava fazer alguma coisa, precisava arriscar.

Com cuidado, ele encostou na palma da mão dela que se achatava contra o cabelo escuro azulado e bem penteado. Ela se esquivou dele como se tivesse levado um choque, mas seus olhos finalmente encontraram os dele e ela suspirou, implorando. E foi quando o sinal tocou.

Ele agarrou a mão dela e correu, arrastando-a junto. Felizmente ela correu com ele, ou teria sido difícil movê-la. Talvez o sinal tivesse despertado-a, por fim. Doug virou no primeiro corredor à direita enquanto os primeiros alunos começavam a sair para o corredor e o barulho das conversas tomava conta do ambiente, então abriu a última porta no fundo e empurrou Evie para dentro, fechando-se com ela ali logo em seguida.

Assim que ele a soltou, Evie escorregou até o canto da parede e tornou a se agachar, dessa vez enterrando a cabeça entre as pernas. Finalmente seus olhos tinham se fechado, as pálpebras bem apertadas, e ela estremeceu como se tivesse acabado de entrar em um cômodo muito frio. Doug se lembrou do que ela dizia no corredor. “Não me deixe fechar os olhos”. Seja lá o que for que ela via quando os fechava, não era bonito.

Ele aguardou alguns segundo, permitindo-se a si mesmo recuperar o fôlego depois da adrenalina. Ele sabia que ninguém entraria ali agora. Conhecia todos os horários da sala de música, e nas segundas ela ficava completamente vazia por todo o período letivo porque eram os dias de folga do professor. Evie poderia ter todo o tempo do mundo para que o que quer que estivesse acontecendo com ela ali pudesse passar sem que ninguém além dele testemunhasse. Era do que ela parecia precisar. Tempo.

Ele ficou próximo dela, que estava tremendo levemente no chão, a uma distância respeitosa e perguntando-se se deveria sacar seu celular e buscar no Google sobre instruções de como ajudar alguém em situações de crise. Ele se sentia um idiota parado ali, vendo-a tremer sem fazer nada. Claramente não era frio, então colocar seu casaco nos ombros dela não adiantaria de nada. Queria muito fazer alguma coisa, qualquer coisa.

Quando o tremor se transformou, finalmente, em soluços de choro, ele teve uma ideia.

Doug se adiantou até o final da espaçosa sala onde ficavam os instrumentos e pegou seu violino. Não exatamente dele. O dele de verdade estava em casa bem guardado, mas aquele era o violino da escola que só ele tocava há quatros anos, desde que tinha entrado para a turma de música. Tinha sido seu primeiro instrumento e com o qual ele tinha liderado todos os recitais desde então.

Ele trouxe o violino e o arco para si e voltou para perto de Evie. Ela ainda chorava de cabeça baixa, lutando com seu pulmão em busca de ar. Ele se sentou no chão próximo a ela e, após inspirar e fechar os olhos por dois segundos como sempre fazia, começou a tocar a primeira música que lhe surgiu na cabeça.

A melodia começou a serpentear pelo espaço da sala que felizmente era acústica, e fazer seu caminho através deles, como deveria ser. Primeiro bem tranquila, cada nota surgindo como um indivíduo singular no espaço, até lentamente darem as mãos para formarem o ritmo compassado e belo da música que o quarteto da escola estava ensaiando para o recital de inverno.

Ele tocou sem tirar os olhos de Evie. Sentiu enquanto as notas cresciam e inflavam e quando elas declinaram e se amorteciam ao mesmo tempo em que acompanhava o subir e descer dos ombros de Evie ao puxar o ar para respirar. Ele gostava muito daquela música, e pelo jeito Evie também tinha gostado.

Aos poucos, tão lentamente que alguém menos atento não teria notado, a respiração dela passou a acompanhar as notas do violino. Assim que percebeu isso, Doug estendeu o som e tornou-o ainda mais lento, para dar tempo a ela de puxar o ar que precisava.

Três tempos de dez depois, ela levantou a cabeça e olhou para ele.

Seus olhos estavam vermelhos e a respiração ainda era precária, mas ela parecia mais consciente agora. Doug continuou tocando sem tirar os olhos dela. Evie fechou os olhos por alguns segundos e os abriu logo após estremecer. Repetiu aquilo mais três vezes, até conseguir mantê-los abertos de vez.

Doug aguardou alguns segundos, então finalmente perguntou:

— Como está se sentindo?

Ele tinha planejado a pergunta. Não queria perguntar “você está bem?” para não induzi-la a apenas assentir com a cabeça. Queria que ela fosse sincera, para que pudesse ajudá-la. Não sabia como tinha conseguido se manter tão calmo para ajudá-la, porque sentia que sua reação natural seria ter entrado em pânico junto com ela. Seu choro o tinha feito de sentir estranhamente incomodado, como se tivesse algo de muito errado no mundo só porque Evie estava chorando. Queria que ela voltasse a sorrir para que seu peito parasse de ser comprimido por aquele sentimento estranho.

— Caindo — ela finalmente o respondeu, sua voz estava rouca e parecia absurdamente cansada. O cansaço chegava aos olhos também, ela parecia a figura de alguém que carregava um grande peso nas costas. Ela gemeu e apertou a cabeça entre as mãos de novo. — São tantos pensamentos, eu não consigo fazê-los parar e a sala está girando.

Ela soluçou mais uma vez, e Doug se esforçou para não parar de tocar. Ela parecia precisar da música, e enquanto ela precisasse ele continuaria tocando.

— Apenas continue respirando — ele pediu. Seu coração parecia estar sendo apertado pela mesma sombra que nublava o rosto de Evie toda vez que ela puxava o ar com muita força após ficar muitos segundos sem inspirar. — Continue respirando.

Ela obedeceu. Inspirou devagar e expirou, ouvindo a música e seguindo a voz dele. Sua respiração pareceu finalmente regularizar alguns minutos depois, mas ela ainda tremia e segurava sua cabeça com uma expressão de dor no rosto.

— Como eu sei o que é real e o que é inventado? — ela sussurrou, e sua voz se quebrou na última palavra.

Doug não conseguiu encontrar as palavras que queria. Evie era a imagem da fragilidade diante dele, mas de alguma forma pareceu ao mesmo tempo extremamente forte. A imagem dela chegando com sua bandeja para se sentar na arquibancada mais cedo ainda estava fresca na memória dele, assim como o sorriso discreto dela enquanto conversavam. Doug não fazia ideia do que ela poderia ter passado para chegar até ali, mas não devia ter sido pouca coisa para tivesse o poder de deixá-la daquele jeito. Mas ele viu, sobretudo, a luta dentro dela. Viu a estudante disposta a aprender da aula de espanhol e a lutadora que saiu da sala, se levantou do corredor e agora batalhava para conversar com ele e se manter na realidade.

Com cuidado e premeditação cuidadosa, ele parou de tocar e colocou o violino de lado no chão. Então se aproximou dela, tentando se preparar para qualquer reação, e lentamente tocou com o dedo indicador nas costas da mão dela.

Ela ficou imóvel, mas não se esquivou, então ele prosseguiu. Correu com o dedo pela extensão da mão dela, traçando círculos entre as costas e os dedos.

— Está sentindo? — ele perguntou, e ela assentiu. — Isso é real. É onde a realidade está. Onde quer que sua mente a esteja levando agora, não é.

A mão dela cedeu sobre a de Doug, e ela fechou os dedos em torno da mão dele com força. Ele apertou de volta, olhando para ele.

Os cílios estavam parcialmente grudados por causa do choro, mas ela já não tremia e finalmente tinha retomado a respiração involuntária. Seus olhos caíram do rosto de Doug para suas mãos juntas e permaneceram ali por alguns segundos.

— Tudo bem?

Ela não respondeu. Parecia ela mesma ainda não ter certeza da resposta.

Mais uma vez, ele se lembrou da breve conversa dos dois na arquibancada. Gosto de olhar para o céu, ela tinha dito. Me dá a sensação de liberdade.

— Vem — Doug levantou, puxando-a de leve pelas mãos ainda unidas, e Doug se surpreendeu por ela o obedecer tão rapidamente.

Doug a tirou do canto pouco iluminado entre as paredes onde estava escondida e a guiou pela mão até a imensa janela de vidro da sala de música, que oferecia a luz do sol, uma visão muito privilegiada do jardim da escola e do céu azul aberto que enfeitava o dia. Quando ela percebeu a janela, seu rosto de iluminou.

Eles pararam lado a lado diante do vidro, e Evie olhava para as nuvens como se fossem a salvação de sua vida. A expressão de temor lentamente foi sendo substituída pelo alivio e mais uma vez Doug a viu levantar o rosto para o céu. O sol que batia em seus cabelos fazia os fios escuros pareceram azuis na luz, o que a deixava ainda mais linda, como se aquilo fosse possível. Sem dizer nada, ele abriu a janela e deixou a brisa de fora entrar na sala.

— Você toca tão bem — o elogio foi a primeira coisa que ela disse, e Doug se surpreendeu. — Foi a música mais linda que já escutei.

— Obrigado — ele conseguiu sentir o sangue correndo para suas bochechas. Geralmente, além de sua mãe, as únicas pessoas que o ouviam tocando era quem assistia aos recitais, e os elogios sempre iam apenas para o professor de música da escola, nunca direto pra ele. Poucas pessoas em sua vida realmente enxergavam Doug, e nenhuma delas vinham da escola. Evie era a primeira.

Ela suspirou.

— Me desculpe.

Doug balançou a cabeça, negando a necessidade de seu pedido. Depois de uma crise daquelas, a primeira coisa que ela tinha dito fora um elogio a ele, e em seguida pedia desculpas por algo que não tinha sido culpa dela? Conhecia Evie há poucas horas, mas já estava admirado com seu espírito.

— Você está melhor?

— Eu acho que estou, na maior parte do tempo. Mas ás vezes... — ela parou a confissão, tomando fôlego. — Eu sempre acordo com medo do dia seguinte, sem saber exatamente o que esperar do dia e do que temer nele. Algumas coisas... Algumas coisas específicas me assustam e então eu perco o controle.

— Escuro — Doug chutou, mais afirmando do que realmente perguntando. — E risadas. Principalmente as risadas.

— Isso — ela o olhou com curiosidade, mas estava claramente surpresa. Ela mordeu a parte interna da bochecha, olhando para ele. — Você não mentiu quando disse que era observador.

Ele sorriu de canto, feliz por ela ter prestado atenção no que ele disse no almoço.

— Não sei o que aconteceu na aula. Eu estava bem depois do almoço e animada com a aula, mas daí ela apagou a luz e as risadas começaram — Evie continuou a narração e Doug a deixou falar enquanto seus olhos se perdiam no céu novamente. — Eu deveria ficar bem, mas tudo aquilo foi demais. O barulho vinha de todos os lados, me sobrecarregou e quando isso acontece fica difícil respirar.

— Você disse que não podia fechar os olhos.

Ela assentiu.

— Quando eu os fecho, imagens vem. Imagens que me fazem não ter certeza de onde estou. Minha mente parece que não é minha. E depois, quando percebo que esse tipo de coisa está acontecendo de novo, fico tão frustrada, tão decepcionada, e o fluxo de sentimentos acaba sendo maior do que consigo aguentar. Mas quando a música começou... As coisas foram voltando pra mim tão rápido. Mais rápido do que nunca voltaram antes. Quando essas coisas acontecem, eu costumo demorar horas pra voltar. Você foi incrível.

— Você também foi. Eu só ajudei.

Ela chacoalhou a cabeça, negando com veemência a afirmação dele.

— Odeio quando sou tão fraca.

— Não diga isso. Você parece ser a pessoa mais forte que já conheci.

Ela o olhou como se não acreditasse, e ele sabia que ela estava pensando que ele tinha dito aquilo por condescendência, mas não era.

— Não estou mentindo — ele ergueu uma sobrancelha.

O canto da boca dela se ergueu meio milímetro.

— Como você sabe que eu acho que está mentindo?

Ele deu de ombros.

— Você é fácil de ler.

— Não sou — ela negou. — Você é que é um bom leitor.

— Então você deveria acreditar quando eu digo que é forte.

— Talvez. Mas não acredito.

— Talvez, se passarmos a andar juntos, eu possa te convencer do contrário.

Ela apertou a mão dele, unida entre a dela.

— É uma ótima ideia.


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Notas finais do capítulo

See you soon.



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