Flashlight escrita por Brigadeiro


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

To my girl,

Que seu dia seja tão feliz quanto eu sou por ter você na minha vida.

Feliz aniversário, L ♥



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Evie’s

 

 

When life has cut too deep and left you hurting

The dreams you held so tight lost their meaning

And you don't know if you'll ever find the healing

You're gonna make it

The night can only last for so long

There's a promise for the ones who just hold on

Lift up your eyes and see

the sun is rising

 

 

O espelho parecia um pouco embaçado.

Evie teve que conter o impulso de ir buscar panos e produtos para deixá-lo brilhando. Já fazia quase um ano que aquela não era mais uma tarefa dela, mas ainda era difícil se lembrar disso. Difícil, mas necessário.

Ela ajeitou a capa azul em seus ombros, avaliando o ângulo dela em suas costas. Parecia bom. A maquiagem estava bem feita. Se pudesse fazer suas mãos pararem de tremer, poderia considerar-se aceitável para seu primeiro dia de aula desde sempre. Não perfeita como gostaria, mas aceitável. Aceitável era um adjetivo insatisfatório, mas teria que servir.

— Você ainda está na frente desse espelho?!

Mal surgiu na porta do quarto da amiga. Há horas ela já estava pronta, usando sempre a primeira coisa roxa que encontrava no armário e ficando linda em seu próprio estilo. Evie tinha tentado aplicar blush nas bochechas dela, mas a ideia foi vetada com veemência.

— Talvez se eu trocar o sapato.

— O que tem de errado com seu sapato?

— Eu não sei — Evie gemeu.

Mal se colocou atrás dela, e a chacoalhou um pouco.

— Está tudo bem, Ev. É só a escola. É bem legal, você vai ser. Daqui uns dias vai ficar até enjoada.

Evie assentiu, deixando as certezas de Mal tomarem conta dela mesma. Sua melhor amiga parecia tranquila e nem um pouco ansiosa, quanto qualquer estudante que tinha passado a vida tendo primeiros dias de aula desde sempre.  Já Evie tinha passado a semana ansiosa para aquele dia, mas não acordou tão determinada quando queria, o que já a frustrara logo cedo. Talvez ela devesse ter exercitado suas habilidades sociais durante o verão, saindo com Mal e seus amigos sempre que a chamava, mas ela tinha recusado a maior parte dos convites e usado o tempo livre tentando aprender tudo que deveria para não se transformar na burra da sala quando as aulas começassem.

E, mesmo que não tivesse tanto o que estudar, ela ainda teria evitado ao máximo sair de casa. Ela gostava muito dos amigos de Mal, que tinham se transformado em seus amigos também, mas é que Jay fazia muitas piadas. Ela preferia quando saía só com Mal e Ben, e tudo era mais tranquilo. Apesar de tudo aquilo, ela sabia que devia ter se esforçado mais.

Evie respirou fundo, se recompondo. Não adiantava lamentar agora o que fez ou não no verão.

— Certo. Vai ser bom.

— Minha garota. É assim que se fala.

Mal deu tapinhas nos ombros dela e a puxou para fora do quarto, dando-lhe tempo apenas de agarrar sua mochila azul e jogar nas costas antes descer os degraus para o andar de baixo, onde o pai de Mal as esperava.

Hades estava apoiado no beiral da porta de entrada, com os braços cruzados e a chave do carro girando entre os dedos.

— Olha só, minhas duas estudantes — ele abriu os braços e envolveu Mal pelos ombros, mas olhou para Evie. — Você tem certeza de que não quer esperar mais um ano antes de voltar? Porque você pode, sabe.

Hades vinha sendo muito mais gentil com ela do que Evie poderia esperar. Desde que seu trabalho na defensoria pública o tinha deixado encarregado do patrimônio de Evie (que se resumia a uma casa naquela mesma rua e uma pequena conta bancária que um dia pertenceram a sua mãe e que Evie teria direito total aos 18), ele tinha aceitado acolher a garota em sua casa até que ela pudesse ter o acesso a sua herança.

Ele nunca explicou o porquê tinha decidido abrigá-la. Talvez pelo dinheiro que o governo pagava aos guardiões de acolhimento, e ele já tinha um quarto extra de qualquer maneira, mas talvez houvesse algo mais. Como Mal e Evie tinham sido vizinhas e amigas durante os primeiros anos de vida – algo que nenhuma das duas se lembrava muito bem – Evie suspeitava que ele tinha feito aquilo pra forçar Mal a ter alguma companhia feminina e ser mais sociável. Ou, mais provavelmente, para dar-lhe algo a mais no que pensar além do namorado de quem Hades não gostava e de quem ela não desgrudava.

Evie não ligava. Ela gostaria muito que algum parente legítimo seu tivesse sido encontrado para cuidar dela após a prisão de sua mãe, mas se não fosse por Hades e Mal ela estaria em algum tipo de abrigo agora, o que tinha recebido era mais do que merecia e seria grata a ele para sempre. E, fosse qual fossem os motivos dele, tinha funcionado. Evie vinha se esforçando para encarar a casa de Hades como um lar. E Mal e Evie tinham se dado melhor do que se poderia esperar, a adolescente rebelde e inquieta era agora o que se podia nomear de melhor amiga. E ela estava muito feliz por aquilo.

— Ela já esperou um ano no ano passado — Mal deu tapinhas no ombro do pai ao se desvencilhar do abraço, respondendo por Evie.

Hades rolou os olhos e olhou pra Evie como quem diz: "Da pra acreditar nessa garota?".

— Você tem certeza que quer ir, Evie? — ele perguntou de novo, esperando que ela mesma respondesse daquela vez.

Ela deu de ombros, preocupada com que sua voz denunciasse seu nervosismo.

Ela queria ir, queria mesmo. Queria encontrar seus novos amigos em um ambiente neutro, aprender coisas novas e descobrir como sua vida deveria ter sido se sua mãe não fosse louca. Ela queria muito, só não tinha certeza se estava pronta. Mas não importava se estava ou não, Mal estava certa. Ela já tinha perdido um ano se preparando, e estava na hora de recomeçar. Tinha que dar certo.

Uma buzina soou do lado de fora da casa, dando a chance de Evie escapar de responder a pergunta. Ela se adiantou para a porta, arrumando a mochila nos ombros e tentando copiar a disposição de Mal para a vida.

— Não acredito nisso — Hades murmurou atrás dela.

Um grande e brilhante carro azul escuro acabava de estacionar na porta deles. Evie não conhecia modelos de carros, mas sabia que aquele devia ser do tipo caro. E, saindo da porta do carona após abri-la, Benjamin acenava para elas com um sorriso gigantesco e animado que deu calafrios em Evie.

— Boa tarde, sogrinho — ele cumprimentou o pai de Mal.

— Humpt — foi toda a resposta que recebeu. Aparentemente não estava nos planos de Hades ter o trajeto até a escola roubado dele.

Mal passou por Evie como um raio roxo, direto até Ben. O filho do prefeito recepcionou a namorada com um carinho na bochecha e um beijo doce que a deixou vermelha antes de sumir dentro do veículo. Ele claramente não tinha medo dos olhares malignos do pai de Mal tanto quando o mesmo gostaria que tivesse.

Hades remoía impropérios ao lado de Evie na porta, provavelmente se perguntando porque ele não conseguia abraçar sua filha por mais de dez segundos, mas um adolescente metido a besta conseguia beijá-la o quanto quisesse.

Evie gostava do namorado de Mal. Ele era sempre educado e divertido, e fazia muito bem à sua amiga. Estava morando com eles a tempo o bastante para notar a diferença em Mal de quando Ben estava por perto e de quando não estava.

Hades, entretanto, não concordava.

— Ela não estaria tão empolgada a aula se ele não fosse estar lá também — Hades bufou e olhou pra Evie. — Última chance, garota. Eu adoraria companhia para maratonar Peaky Blinders, você sabe.

— Evie! — a voz de Mal soou impaciente de dentro do carro. — Vem logo.

Evie conteve um sorriso, e olhou para Hades lamentando.

— Talvez no fim de semana.

— Certo — ele coçou a cabeça, contrariado. — Boa aula para vocês, então.

— Obrigada, Hades.

Evie adiantou-se para a porta aberta e passou por Ben para poder entrar e sentar-se atrás de Mal. Ela já estava acomodada no banco de couro, mastigando algumas balas que tinha tirado dos porta-luvas. Ben fechou a porta e entrou, e o carro deu partida.

— E então, prontas para o primeiro dia de aula?

Evie gemeu. Mal riu.

— Evie está nervosa.

—Claro que está, é o primeiro dia, todo mundo fica nervoso — ele disse, compreensível, e cutucou Mal entre as costelas. Ela se encolheu pra perto dele, sorrindo. — É o sênior year!

— O que isso significa? — Evie arregalou os olhos, com medo. Ninguém tinha lhe dito nada sobre ser um ano especial.

— Que é nosso penúltimo ano antes da formatura, só isso — ele garantiu, tentando acalmá-la. — Desculpe, esqueci que você não conhece todo o esquema. Não tem com o que se preocupar. Eu mesmo dei um empurrãozinho nos horários de aulas de vocês. Estarão juntas ou comigo em quase todas as aulas.

A palavra quase assustava Evie, mas ela não disse mais nada. Não queria parecer mal agradecida quando ele já estava fazendo tanto. Mal se esforçava para não demonstrar, mas ela sabia que sua amiga estava preocupada com ela e tentando fazer todo o possível para tudo parecer normal para Evie. E Ben sempre mergulhava em qualquer coisa que sua namorada decidisse que era a prioridade no momento, então ele também estava focado em fazer com o que o dia de Evie fosse bom. Ele tinha emprestado a Evie todos os livros que ela usou para estudar em casa no último ano e forneceu algumas aulas particulares também. Era um bom amigo. Era grata pelos dois, e se sentia compelida a fazer com que seu próprio dia fosse bom também, por eles e por si mesma.

Mas a gratidão não fazia o estômago de Evie se revirar menos conforme o carro se aproximava dos terrenos da escola, porque ela tinha uma vaga ideia do que poderia estar esperando-a por lá. Na melhor das hipóteses, encontrariam apenas uma entrada normal repleta de adolescentes com mochilas preparadas para mais um ano letivo, rindo e fazendo bagunça. Mas, mesmo nesse melhor cenário, Evie sabia que seria alvo de olhares e cochichos. Que garota nova não era?

— E aqui estamos — Ben olhou pela janela, animado como nenhum dos outros estudantes parecia estar. — Bem vinda ao mundo escolar, Evie. Você vai adorar!

Quando o carro estacionou, ela quis vomitar.

Como previu, centenas de adolescentes fervilhavam pelo estacionamento, se aglomerando entre os carros ou em grupos mais distantes na grama ou nas grandes portas da entrada. Ninguém estava olhando para ela, ainda, mas era como se estivessem. Sentia que, assim que pisasse para fora do carro, seria marcada. Não era só a garota nova, mas a garota nova da mãe maluca que cresceu num castelo na floresta. Era uma aberração.

Ben desceu primeiro e então ajudou Mal a descer, mantendo-a próxima dele o tempo todo. Então, estendeu a mão para Evie. Ela não se mexeu.

— Evie? — ele chamou, oferecendo-lhe um sorriso confiante.

Ela podia ouvir o som dos estudantes do lado de fora, correndo, gritando e rindo. Sua garganta se fechou. Eles saberiam. Assim que ela pisasse para fora do carro, todos saberiam quem ela era.

Evie respirou fundo três vezes, mantendo os olhos bem abertos. Não gostava de fechá-los, pois sempre que ficava escuro ela podia ouvir os gritos e as risadas novamente em sua mente e aquilo só piorava tudo. Não podia deixar aquilo acontecer. Não hoje. Não podia.

Ela precisava se acalmar e se levantar, porque não podia deixar com que seu passado a impedisse de viver. Não tinha como todos na escola saberem quem ela era, ela lembrou a si mesma. Seu caso chegou a ser noticiado nos jornais, mas ela se recusou a dar qualquer entrevista e Hades nunca autorizou que sua imagem fosse divulgada, então o caso morreu rapidamente e não tinha como ninguém lá conhecer seu rosto. Se a olhassem, era só porque era a garota nova. Milhões de instituições recebiam alunos novos todos os anos. Havia uma escola esperando por ela lá fora, com professores que podiam lhe ensinar coisas, e colegas que podiam se transformar em novas amizades. Por quanto tempo ela tinha sonhado com tudo aquilo? Não podia dar pra trás agora.

Talvez só mais um ano, a voz de Hades ecoou na mente dela.

Não. Se esperasse mais um ano, nunca estaria pronta. O medo era seu companheiro constante desde que podia se lembrar, mas ele não a pararia mais. Teria que acompanhá-la enquanto ela vivia.

Ben foi paciente enquanto ela tomava fôlego e reunia coragem.

— Tudo bem, vamos — ela finalmente pegou a mão dele, que a puxou para fora do carro com gentileza.

Ela esperou, olhando em volta, mas ninguém apontou ou prestou atenção nela. Claro, tinham se passado só cinco segundos, mas nada terrível tinha acontecido. De repente, encarar seu primeiro dia de aula parecia um alivio, e se sentiu bem.

Ela esperava que a sensação durasse.

{...}

Quando Ben disse que tinha dado um jeito nos horários, ela imaginou que não teria que se preocupar em ficar sozinha tão cedo. Ledo engano. O garoto até tinha realmente se esforçado, na semana inteira seu horário combinava quase 70% com o de Mal e 50% com o dele, o que significava que na maior parte das aulas o casal feliz também estava junto, mas também ainda significava que Evie teria pelo menos uma ou duas aulas sozinha por dia ao longo da semana.

E, como sua sorte era sempre magnífica, sua primeira aula da vida teria de ser enfrentada sem companhia. E haveria outra, dupla, logo após o almoço. Segundas definitivamente não seriam seus dias favoritos.

Ela encarou a porta da aula de espanhol como um inimigo a ser combatido.

Evie não se lembrava direito como era estudar. Não em uma escola de verdade, pelo menos. Tinha lembranças muito vagas de uma pré-escola esquecida, e então todas as referências a estudos lhe remetiam a sessões de tortura e gritos de sua mãe. Ou então a longos momentos sozinha no escuro com livros empoeirados e roubados sendo lidos na escuridão enquanto torcia para não ser pega lendo-os, e essas eram as lembranças mais reconfortantes.

Ela tomou fôlego e entrou na sala fingindo uma confiança que dificilmente chegava ao coração, mas estava quase. Depois do breve momento de pânico na entrada nada mais tinha acontecido ela percebeu que nada iria mesmo acontecer. Com exceção dos amigos de Mal que ela já tinha conhecido, como Jay, Carlos e Uma, ninguém mais tinha falado com ela. As centenas de alunos que perambulavam pelos corredores como formiguinhas em modo automático mal a notavam. Estava claro que sabiam que ela era nova ali, ou pelo menos a maioria deveria saber, mas ninguém a incomodou. Então ela sentiu que, se tudo continuasse daquele jeito, ela podia fazer isso.

Evie se sentou na cadeira à frente da lousa, no centro da sala. Era o último lugar vago na primeira fileira e ela se sentiu grata por ele. Como a professora ainda não havia chegado, os alunos no fundo da sala conversavam e se provocavam. Evie se concentrou para abafar as vozes, e focou sua atenção em seu próprio material. Com zelo, ela tirou da mochila seu caderno e suspirou ao passar a mão lentamente pela capa azul adornada por coroas douradas. Dificilmente se poderia explicar a satisfação que ela sentia em manusear seu próprio material escolar. Era aquele tipo de sensação etérea, única e profundamente pessoal sentida poucas vezes na vida. No caso de Evie, pela primeira vez na vida.

Ela puxou pra fora suas canetas e livro, e organizou-os milimetricamente entre o espaço disponível na mesa quadrada, deixando sua caneta favorita bem ao centro. Foi quando notou o pequeno rabisco na madeira, no canto superior direito um nome tinha sido traçado a lápis em uma letra fraca e arredondada. Doug.

— Buenos dias, clase. Quién está preparado para Español II? — a professora irrompeu na sala com passos apressados sobressaltando Evie, e trazia um bocado de folhetos na mão, claramente pronta para iniciar sua aula. Então, parou na frente de Evie, e disse: — Sr. Dwarsen, siéntate, por favor.

Por um segundo, ela ficou confusa. Entendia muito pouco de Espanhol, não era uma matéria fácil de se aprender sozinha como tinha feito com as outras ao longo da vida, e entendia muito pouco. Não fazia ideia do que a palavra Dwarsen significava, até que percebeu que não era com ela que a professora falava.

Um garoto magro de óculos ainda estava de pé, parado próximo à mesa em que Evie estava, e parecia um pouco perdido. Foi então que Evie entendeu.

— Oh, é o seu lugar? — ela perguntou alarmada.

O garoto assentiu devagar, constrangido e corado.

Fantástico. Seus primeiros dez minutos de aula e ela já tinha se sentado no lugar de outra pessoa e causado o constrangimento público de um colega. Isso ajudaria muito sua popularidade.

Infeliz, ela começou a juntar suas coisas para sair de lá, um tanto quanto em pânico se perguntando onde seria obrigada a sentar agora, quando ele a parou colocando a mão em seu ombro. Ela se retesiou, tensa, e ele rapidamente recolheu a mão.

— Desculpe — ele gaguejou um pouco, arrumou nos olhos os óculos que escorregaram para frente. — Por favor, fique. Eu posso sentar bem aqui atrás.

Evie hesitou, tentada. Ela realmente não queria ter que ficar no fundo da sala, porque tudo seria mais difícil lá.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Ela suspirou, aliviada e grata.

— Obrigada — sussurrou.

Ele assentiu, e se acomodou na cadeira atrás dela enquanto a aula começava. 

A professora deu boas-vindas à turma e começou a aula. Ou pelo menos foi o que achou que ela tinha feito. A mulher se recusava a falar em outra língua que não o Espanhol, e Evie não conseguia entender mais do que as poucas palavras que tinha decorado do dicionário que havia na casa de Hades.

Ela tinha tentado de verdade aprender o máximo possível no último ano para poder ingressar na escola no ano certo, e não atrasada. Não tinha sido tão difícil, porque apesar da mãe de Evie não ter se interessado por ensinar a ela muito mais do que o necessário para não ser uma idiota, havia muitos livros no castelo e ela se ocupou de ler todos quando estava escondida ou de castigo. E, desde que tinha ido morar com Hades e Mal, os dois a tinham ajudado muito tentado ensinar tudo que sabiam e Evie aprendia rápido. Ela estava certa de que conseguiria se sair bem em Inglês, Matemática, História, Literatura e Química. E estava confiante de que não seria difícil acompanhar as demais matérias. Mas uma vez que ela nunca tinha tido contato com outra língua no castelo e Mal e Hades também não conheciam o outro idioma, espanhol estava fora de seus domínios.

Felizmente, a professora não parecia ser do tipo extrovertida ou sociável. Não exigiu apresentações e não interagiu com a classe. Apenas falou e falou, e escreveu e escreveu na lousa, e embora Evie não tivesse entendido nem um terço da aula, pelo menos não fez papel de boba, e por isso se sentiu grata. Tinha estado tensa por medo de como os professores e alunos reagiriam à ela. Mas poucos minutos depois do início da aula sua concentração profunda na tentativa de entender algum resquício da fala rápida e enrolada da mulher fez com que Evie mal notasse o restante da classe atrás de si. Ela estava com dor de cabeça pelo esforço, mas ainda era melhor do que qualquer coisa que seus medos a tenham feito imaginar.

Ou talvez ela tenha comemorado cedo demais.

— Psiu — ela ouviu pela primeira vez a voz de alguém atrás dela, segundos depois de sentir uma bolinha batendo em suas costas.

Evie cerrou os lábios e ficou tensa, mas não se virou. Seu coração recomeçou a bater com irregularidade, e ela tentou se concentrar em sua respiração como a terapeuta tinha orientado. Alguém tinha parado de prestar atenção na aula para prestar atenção nela, e aquilo era tudo que ela tinha torcido para não acontecer.

Outra bolinha a acertou. Ela arfou.

— Hey, garota nova — a voz chamou novamente e risadinhas soaram ao redor dele.

Evie continuou olhando para frente, mas subitamente consciente novamente de onde estava e de sua própria fragilidade. Ela agarrou a borda da mesa com a ponta das mãos e respirou fundo, torcendo para que a terceira bolinha não a atingisse.

Para sua sorte e alívio, o sinal finalmente tocou. Ela soltou a respiração de forma pesada, e recolheu seu material na velocidade da luz antes que quem quer que a tenha chamado pudesse chegar até ela. Após uma hora inteira sem sentir medo, de repente se sentia novamente como um animal acuado, prestes a ser enjaulado.

O pânico era tanto que ela jogou as canetas direto na mochila, sem se preocupar com o estojo, e algumas delas caíram no chão. Os alunos do fundo estavam se levantando, se trombarem rindo, e vinham na direção dela.

— Droga — ela xingou, e considerou por um segundo a possibilidade de deixá-las lá.

Antes que pudesse decidir, entretanto, o garoto de óculos de quem ela tinha roubado o lugar mais cedo abaixou-se em direção às canetas.

— Eu recolho — ele disse, como se conhecesse os pensamentos de Evie e soubesse que ela precisava sair da sala o mais rápido possível. — Vai.

Uma onda de gratidão a inundou, mas ela não ficou pra agradecer. Apenas assentiu e correu porta a fora abraçada à sua mochila.

{...}

Evie tinha conseguido fugir. Graças ao garoto da aula de espanhol, ela nem mesmo tinha descoberto quem tinha jogado as bolinhas nela e esperava não descobrir. Não queria estremecer sempre que cruzasse com ele no corredor e ser rotulada como a estranha. Fingir ser normal já estava ocupando toda sua concentração emocional no momento.

As próximas duas aulas tinham sido bem mais tranquilas, e ajudaram o coração dela a se regularizar novamente. Sabia que não devia ter reagido daquele jeito. Não tinha sido nada demais, eram apenas colegas de classe que queriam falar com ela e ela pensou que estava pronta para aquele tipo de coisa. Quem decide ir para a escola sem conseguir encarar a perspectiva de ter que conversar com alguém novo? Evie se sentiu envergonhada e decepcionada consigo mesma, e teve de lutar para não deixar a voz de sua mãe chegar aos seus ouvidos para lhe lembrar o quanto ela era decepcionante.

Seguiu para as próximas aulas tentando ignorar a sensação incômoda de auto desapontamento. Eram Inglês e geometria, e ambas com Mal e Ben em seus flancos, o que facilitou tudo. Como Evie tinha previsto, as duas matérias não foram nem um pouco difíceis para ela, e seu humor melhorou um pouco ao sentir orgulhosa de si mesma por ter acompanhado tudo com tanta facilidade. Mas então, quando foi copiar a matéria do quadro, percebeu que sua caneta favorita tinha sido deixada para trás junto com as outras em sua fuga e ela se lembrou que tinha falhado no que mais importava.

Não quis pedir nada emprestado de Mal para não ter que responder perguntas e admitir envergonhada que tinha fugido de sua última sala como uma criminosa, então simplesmente escreveu tudo de vermelho. Era vergonhoso demais, ainda mais após todo o esforço que Mal estava fazendo para ajudá-la a se sentir bem na escola. Depois poderia passar a limpo, isso ajudaria a fixar a matéria também.

Evie tinha descoberto ao longo das duas horas seguintes que melhor parte de ter Mal como melhor amiga era que a garota carregava uma áurea consigo que repelia qualquer pessoa não bem vinda a se aproximar, e ela não considerava muita gente como bem vinda. Tinha passado os primeiros momentos entre o corredor e o decorrer da aula de inglês ainda tensa, olhando em volta, com medo que tentassem abordá-la daquela maneira novamente, mas não aconteceu. Tinha percebido que uma porcentagem dos alunos a seguia com os olhos curiosos e a expressão de quem gostaria de saber mais, mas ninguém se aproximou ou tentou falar com ela de novo e ela sabia que era por causa de Mal. A garota lançou olhares tortos a todos que encaravam Evie até que, por fim, ninguém mais o fazia. E mesmo que as duas estivessem andando ao lado de Ben, que parecia ser absurdamente popular, a presença de Mal mantinha os curiosos longe. Ela quis agradecer a Mal pela proteção, mas não sabia como verbalizar o sentimento.

O único momento realmente ruim naquele meio tempo tinha sido no início da aula de inglês, porque a professora sorridente quis que Evie se apresentasse. Ela quis xingar a professora e seu estado de espírito super positivo que ameaçava arruinar a segurança bamba de Evie, mas não podia levar uma detenção em seu primeiro dia de aula. Não suportaria encarar a si mesma no espelho nunca mais se algo do tipo acontecesse. Então ela reuniu cada gota coragem que poderia existir em si para se levantar e não tremer como uma vara verde diante da sala. Engoliu em seco e olhou para Mal ao falar. Estar do lado dela fazia Evie ter um pouco mais de confiança e vontade de não falhar. Então ela levantou e disse seu nome e sua idade fingindo que ela era a única ouvindo, e tornou a se sentar. A professora deve ter notado o quanto deixou Evie desconfortável, porque deixou a garota em paz e não fez mais nenhuma pergunta.

Após isso, o restante da manhã transcorreu de maneira agradável. Nem a professora de inglês e nem a de geometria pareciam tão rígidas quanto a senhora que lecionou espanhol, e fora algumas conversas paralelas e perguntas frequentes, não houve muito tumulto no decorrer das aulas.

— Por que você está andando com a sua mochila o dia inteiro? — Mal perguntou após saírem da sala ao som do terceiro sinal.

— Não quis ficar tendo que passar no armário a cada aula — Evie corou um pouco.

— Prefere carregar todos os seus livros para todas as aulas todos os dias? — ela estreitou os olhos para a amiga, e quando ela não respondeu Mal suspirou. — Quer deixar as coisas no meu armário até se acostumar com tudo?

Evie assentiu, envergonhada, e Mal abriu seu armário para ela e lhe passou a senha.

Ela só tinha descoberto a coisa toda do armário naquele dia, porque aparentemente não era algo importante o suficiente para terem alerto-a sobre o esquema antes. Mas era algo curioso ter um cantinho particular e pessoal seu na escola todos os dias, um cantinho que, apensar de insignificante, podia dizer muito sobre seu dono. Ela tinha visto rapidamente o armário de Ben mais cedo antes da primeira aula, e estava milimetricamente organizado; os livros dispostos em ordem de tamanho e matéria, uma muda de roupas perfeitamente dobrada na prateleira embaixo de alguns cadernos, um pequeno cofre na parte de baixo e fotos de Mal espalhadas entre a porta e as laterais, algumas deles dois juntos e outras mostravam apenas ela, em sua maioria distraída. Aquele era o armário de um aluno exemplar e namorado apaixonado, tudo que Ben realmente era.

Mas, quando Mal abriu o armário dela para que Evie pudesse acomodar suas coisas, foi impossível não notar o contraste. O limitado espaço estava uma bagunça, tal qual Mal era, com cores e objetos misturados como se um pequeno furação tivesse passado por ali. O furacão Mal. Haviam livros, cadernos e papel amassado misturado com roupas não dobradas, comida e algumas latas de tinta, aquarelas e pincéis. A parte interna dele estava pichada, o que Evie tinha quase certeza de que era ilegal, e as fotos que adornavam a porta dividiam-se entre o rosto de Ben e os de seus amigos. Havia uma foto dela com Evie no canto superior, o que a fez sorrir.

O principal motivo que levou Evie a não usar o armário designado a ela era que o que tinham dado a ela ficava a dois corredores de distância, longe do de Mal e próximo dos banheiros, onde ficava a maior concentração de pessoas estranhas. Mas, desde que tinha visto o armário de Ben pela manhã, algo dentro dela dizia que ela ainda não merecia ter aquilo. O seu próprio pedaço na escola. Mais do que merecer ou não, era sobre o pouco de si que ela deixaria lá. Ela não se conhecia o bastante ainda para saber que tipo de armário seria o seu, que tipo de marca sua ele exibiria. Parecia mais adequado deixá-lo vazio por enquanto, combinava com como ela se sentia.

Era bobo, mas fazia sentido para Evie.

Ela guardou sua mochila no armário de Mal, tendo que disputar o espaço entre uma caixa de biscoitos e um amontoado de desenhos, e então eles foram para o refeitório. Era estranho andar sem sua mochila depois de ter passado toda a manhã agarrada a ela como um bote salva vidas, ela parecia não saber o que fazer com suas mãos.

Ao chegarem no refeitório, o barulho atingiu Evie como uma explosão e ela estacou na entrada. O lugar era um retângulo fechado cheio, barulhento e movimentado, tanto que mal dava tempo de absorver o que estava acontecendo. Adolescentes corriam, comiam, conversavam, riam, gritavam, e Evie tentou controlar seu impulso de fugir e se trancar no banheiro.

— Hey, dá pra sair da frente? — alguém perguntou atrás dela e Mal a puxou pelo braço para continuar andando.

Seu problema sobre o que fazer com suas mãos foi rapidamente solucionado quando uma bandeja foi colocada sobre elas, e Evie se sentiu grata novamente. Ela seguiu Mal e Ben até bancada com comida tentando ignorar os sons em volta e observou suas opções. Havia uma merendeira servindo pratos com uma comida de aparência nada agradável e após elas estavam dispostos pedaços de pizza, sanduíches, hambúrgueres e porções de batata frita. Evie pegou apenas um sanduíche que parecia ter alface no meio e uma caixinha de suco, e rumaram para uma mesa.

Evie esteve se preparando para o almoço ao longo de todo o dia. Sabia que não podia esperar ter uma mesa reservada em um lugar calmo, e a perspectiva do que teria que enfrentar a assustava um pouco. Confirmando suas suspeitas, sua atenção foi atraída para uma mesa no fundo do salão de onde Jay acenava para elas freneticamente. Além dele, mais cinco pessoas já estavam sentadas ali e Evie ficou ansiosa.

Embora Mal tenha rumado direto para a mesa de Jay, Ben foi parado no meio do caminho a cada metro andado por pessoas cumprimentando-o ou fazendo perguntas. Ele sorria para todos e respondia todo mundo. Evie tratou de seguir Mal direto para a mesa cheia de gente incomum, que era melhor do que se a alternativa de ter de falar com todos os estranhos que paravam Ben.

O refeitório da escola não era tão rigidamente dividido como os filmes faziam parecer, Evie notou quando chegou na mesa. Uma mistura interessante se encontrava reunida ali. Jay era claramente um atleta padrão, enquanto Carlos fazia mais o estilo nerd da tecnologia e Uma... Evie realmente não sabia em qual categoria estudantil Uma poderia se encaixar. Próximo a eles, as novas pessoas que Evie ainda não conhecia incluíam uma garota asiática com porte atlético, uma menina que parecia ser tímida e inteligente ao mesmo tempo, um garoto bem distraído e um sujeito tão estranho quanto Uma. E quando finalmente eles se sentaram, o grupo mais diversificado que existia pareceu ficar completo com a valentona que botava medo nos outros alunos, o carinha popular de quem todos gostavam e a aluna nova e estranha que chamava a atenção por nunca falar com ninguém.

— Evie! — Jay a saudou assim que ela se sentou na mesa, receptivo como sempre. — Como está sendo o primeiro dia?

— Hmm... Interessante — foi só o que ela respondeu.

— Ela está se saindo muito bem, sabia geometria mais do que eu — Mal se inseriu na resposta, já mordendo seu pedaço de pizza.

— Qualquer um sabe mais de geometria do que você — Jay provocou Mal, e ela mostrou a língua para ele.

— Evie, este é o pessoal. Você já conhece Jay, Carlos e Uma. Lonnie a namorada do Jay. Jane, a namorada do Carlos. Harry, namorado da Uma. E o Gil — ela foi apontando para cada um conforme falava.

Todos acenaram para ela, alguns curiosos, outros nem tão interessados. Ela tinha ouvido falar de Lonnie, é claro, todas as vezes em que tinha estado com Jay ele não deixava de falar da namorada, mas aquela era a primeira vez que a vi. Ela parecia combinar perfeitamente com ele.

Jane parecia tão calada quanto a própria Evie, o que fez ela simpatizar automaticamente com a garota. E Harry estava tão desinteressado em sua pessoa quanto Uma, pareciam estar em uma bolha particular na mesa. Evie sentiu uma estranha compaixão por Gil, rodeado por casais daquela maneira, mas ele não aprecia se incomodar.

Ben comentou algo sobre um jogo de futebol qualquer que puxou a atenção da mesa e Evie pode se sentir invisível novamente. Provavelmente ele tinha feito de propósito, e aquela era mais uma das coisas que iria parar em sua listinha da gratidão. No final daquele dia teria muitos “obrigada” a distribuir.

Evie sentia que não deveria ser tímida. Não era quem ela sentia que deveria ser. Se tivesse tido outra vida, outra mãe, outra infância, tinha a impressão de que teria se tornado muito espontânea e extrovertida, mas aquilo tinha sido tirado dela por seus medos. Não conseguia encontrar sua voz ou dizer o que realmente queria se não estivesse se sentindo à vontade, o que a fazia parecer idiota.

Evie mordiscou seu sanduiche, olhando em volta do refeitório para além da mesa em que estavam, tentando se distrair dos próprios pensamentos depressivos. Estranhamente, se perguntou onde o menino da aula de espanhol estaria almoçando. Em qual mesa, com quais pessoas. De quem era amigo?

— Evie podia entrar para a torcida — Jay comentou, trazendo Evie a atenção de Evie de volta para a mesa deles ao pronunciar o nome dela.

— Ela é bonita o bastante pra conseguir entrar sem nem fazer um teste — Gil disse, e seu tom bondoso indicava que não tinha dito com malícia. Era apenas um fato.

— Não — Mal sacudiu a cabeça com ênfase.

— Por que não? — Jane perguntou, tímida.

— Não vou deixar ela chegar perto daquele bando maluco.

Jay ergueu uma sobrancelha, um sorriso debochado no rosto.

— Por que você decide por ela? Só porque você não consegue entrar pra torcida, não significa que ela não possa — ele riu. — Alguém tem que torcer pelo Ben, sabe.

Evie arregalou os olhos, e estava prestes a abrir a boca para declarar que jamais entraria num grupo para torcer pelo namorado de sua melhor amiga, mas não precisou. Os olhos de Mal se estreitaram em duas fendas estreitas, apesar de seu sorriso torto indicar que tinha levado na esportiva.

— Como se eu quisesse fazer parte daquilo, idiota. E Ben já tem gente demais torcendo por ele — ela revirou os olhos, e Evie sentiu que ela tinha alguém especifico em sua mente, porque Ben tratou de abraçá-la pelos ombros e beijar sua bochecha com fofura.

— Você é a única torcedora que me importa.

Mal sorriu e enfiou mais pizza na boca.

— Viu? — disse com a boca cheia, e apontou para Ben. — Se faz tanta questão de torcida, manda a Lonnie ir vestir aquela roupinha ridícula e sacudir pompons pra você.

— Tô fora — Lonnie alertou.

— É um grupo idiota e desnecessário — foi a única contribuição de Uma para a conversa.

— Inveja — Jay cantarolou.

Mal jogou um pedaço de comida nele, que desviou e acertou em Uma, provocando risos entre a mesa. Evie parou de mastigar e prendeu a respiração, aguardando tensa a brincadeira passar.

— Hey — Uma tacou de volta o pedaço de borda de pizza em Mal, que pegou e jogou de volta na boca, piscando.

— Vocês estão assustando a menina — Lonnie observou, olhando para Evie.

— Não. Eu estou... Bem — ela engoliu em seco, tentando empurrar para baixo o nó em seu estômago.

De repente e sem aviso, o braço de Jay estava ao redor dos ombros de Evie, e ela travou. Sabia que ele estava apenas sendo ele mesmo, mas não importava. O corpo de Evie não costumava obedecer como ela queria que fizesse, ainda estava longe de se acostumar com toque de estranhos, e o sorriso aberto que Jay sempre trazia consigo não tornava o aperto mais fácil de ignorar.

Ele sacudiu Evie um pouquinho.

— Se alguém mexer com você, é só me dizer, ok? — ele disse heroicamente, e Evie se sentiu mal por estar prestes a chorar ao invés de poder lhe agradecer pela oferta de proteção incondicional.

E foi nesse momento que Gil, que estava brincando com a torrada e alguns pedaços de alface, escolheu o momento errado para apoiar o cotovelo na borda da bandeja. O potinho de molho foi impulsionado e fez todo o trajeto de um arco perfeito até o ombro de Uma.

— GIL! — ela urrou, furiosa, e Jay finalmente libertou os ombros de Evie apenas para segurar a própria barriga enquanto gargalhava.

Evie sentiu sua garganta se fechar e o ar se tornar pesado e denso, como se a parede estivesse se fechando ao seu redor enquanto o som da risada de Jay ecoava em seus ouvidos. Ela se agarrou na borda da mesa e manteve os olhos abertos, mas a risada já começava a se modificar em seus ouvidos, transformando-se em...

— Não! — ela arfou, alto demais, e a mesa parou de rir.

Ela se esforçou para se concentrar e respirar, precisava se acalmar, precisava retomar o controle e terminar seu almoço como uma aluna normal, mas doía demais e ela soube que não conseguiria. Não se continuasse ali.

Seus dedos agarraram a bandeja e ela se levantou da mesa num pulo, arrastando a cadeira ruidosamente atrás de si.

— Evie? — Mal olhou para ela, preocupada.

— Me desculpe — Evie sussurrou, e piscou freneticamente para afastar as lágrimas que começavam a se acumular, e então correu.

Ela não viu por quem passou ou deixou de passar, as pessoas se tornaram borrões enquanto ela buscava por ar. Ela tentou diminuir o passo, andar ao invés de correr, mas a urgência dos seus pulmões a impeliam pra frente. Felizmente não esbarrou e nem trombou em ninguém, o que era praticamente um milagre. Ou não, talvez as pessoas só tivessem simplesmente desviado da menina maluca correndo com a bandeja na mão. Ela não se importava, só precisava de espaço.

Logo após à saída do refeitório um grande par de portas duplas estavam abertas direto para a parte de fora do prédio e os pés de Evie pareciam ter vida própria ao levá-la para a liberdade. Assim que o sol atingiu seu rosto ela suspirou de alivio, pois o ar entrou em seus pulmões novamente. Era sempre assim desde o seu primeiro dia de liberdade. Algo dentro dela ainda estava preso naquele castelo, e quando se sentia encurralada novamente precisava ver o céu. Ele a lembrava de que não estava de volta no porão, que era tudo coisa da cabeça dela.

A mente é uma ferramenta muito poderosa e a de Evie insistia em trazer a realidade de seu passado para seu presente, e às vezes se tornava difícil distinguir entre essas realidades. Quando elas se misturavam, tudo ficava confuso, o desespero tomava conta e ela odiava quando isso acontecia. Felizmente, segundos de exposição ao sol depois e ela já podia sentir-se retomando o controle de si mesma.

Ela olhou para a bandeja em suas mãos, seu almoço ainda quase inteiro e seu estômago roncando. De jeito nenhum voltaria para aquele refeitório, então deu um passo após o outro e começou a andar um tanto quanto sem rumo, sem saber por onde o caminho naquele gramado poderia dar. Ao contornar a lateral do prédio, entretanto, logo descobriu. O campo de futebol se estendia no horizonte, após o gramado, e a arquibancada vazia parecia o lugar perfeito para terminar sua refeição em paz antes de ter que enfrentar a próxima aula.

Ela não pensou duas vezes. Se adiantou até o campo vazio, dando a volta até alcançar os bancos de madeira da arquibancada e se sentou no primeiro deles. Pela primeira vez no dia, seu suspiro foi de satisfação. Finalmente poderia desfrutar de alguns minutos sem ter com o que se preocupar ou temer, sem ninguém por perto a quem decepcionar e isso era bom. Entretanto, ainda lutava contra a decepção consigo mesma. 

Ela tornou a mordiscou seu sanduiche, infeliz, pensando no que tinha acabado de acontecer.

Ela sabia que seria difícil, mas imaginou que conseguiria se controlar melhor. Tinha acordado tão razoavelmente confiante, e agora parecia que tinha decepcionado a todo mundo, principalmente a si mesma. Faziam meses que ela não tinha nenhum tipo de crise, além dos pesadelos recorrentes, e só de pensar no que Mal, Ben e seus novos colegas estavam pensando dela agora, tinha vontade de se encolher debaixo da arquibancada e não sair de lá nunca mais. Mas o pior não era o julgamento ou sua imagem, mas sim o quanto o dano em sua alma a faria perder. As coisas que queria e que nunca conseguiria ter.

Evie queria o que tinha visto naquela mesa. Os amigos, as brincadeiras internas, as provocações que reforçavam a amizade, pessoas que se conheciam e rondavam os limites uma das outras, mas sem nunca ultrapassar a linha do bem estar. Ninguém a conhecia para saber como brincar com ela, ninguém testava seus limites porque eles eram muito frágeis.

E, acima de tudo, gostaria de ter algo como o que Mal e Ben tinham, alguém a quem se amava tanto que a certeza de que nunca estariam sozinhos jamais era questionada. Desde que os conheceu que Evie vinha admirando o relacionamento deles e sonhando com algo tão verdadeiro quanto aquilo. Evie não tinha tido muitas coisas verdadeiras em sua vida, muito menos relacionamentos. O mais próximo disso que tinha chegado até o momento era sua amizade com Mal, algo pelo qual Evie era grata porque era provavelmente tudo o que teria nesse departamento.

Quando pensava em seu futuro, o que somente tinha começado a acontecer há alguns meses, o coração de Evie sonhava com uma casa aconchegante com pessoas que a amavam e pra onde ela tivesse vontade e prazer de voltar. Isso era o que ela queria, mas também o que ela não tinha esperanças de ter. Apesar de seus sonhos, sabia que tudo o que poderia esperar era acessar seus bens no próximo ano, arrumar um emprego em alguma área genérica razoável e viver fadada a vagar sozinha pela casa que um dia foi de sua mãe. Não tinha como ser algo muito diferente disso. Como poderia cursar uma faculdade se nem conseguia encarar seu primeiro dia no ensino médio? Como poderia se relacionar com alguém se contatos físicos a faziam se retrair e quando a própria expressão da felicidade a aterrorizava? Seus sonhos estavam limitados por seus traumas.

— Oi.

Evie deu um pulo de susto que fez seu sanduíche voar para o chão. Havia alguém ali, atrás dela.

Antes que ela sequer pudesse reagir à surpresa, o estranho foi mais rápido do que o cérebro dela e contornou suas costas para surgir diante de seus olhos. E então viu que não era um estranho. Era o garoto da aula de espanhol. Carregava sua própria bandeja de comida em mãos e parecia deslocado.

Ela não respondeu imediatamente o cumprimento dele, esperando seu corpo reagir, mas nada veio. O modo como ele a tinha salvado no final da aula deve ter ajudado seu cérebro e não enxergá-lo como ameaça.

Ela relaxou um pouco os ombros.

— Oi.

Ele sorriu, e em suas bochechas se formaram duas covinhas encantadoras que chamaram a atenção de Evie. Ele apontou para o banco onde ela estava sentada.

— Posso me sentar com você?

— Ah, pode — ela respondeu rápido, mas insegurança permeava sua voz.

Para sua surpresa, ele se sentou com um pouco de distância dela, respeitando seu espaço. Ele olhou para o sanduíche no chão.

— Te fiz derrubar seu almoço. Me desculpe.

— Fui eu quem derrubei — ela respondeu, e ficou surpresa de ouvir sua voz saindo clara.

— Falando em derrubar...

Do bolso, ele puxou um punhado de canetas e esticou para ela. Mas, menos de um segundo depois, pareceu pensar e então colocou as canetas no meio do espaço entre eles, e recolheu a mão de volta.

— Aqui. Isso é seu.

Ela colocou o cabelo para trás da orelha, revelando um pouco mais seu próprio rosto e permitindo-se olhar melhor para ele, curiosa. Lembrava-se claramente de como ele tinha agido rápido para dar a ela tempo de fugir. E, antes disso, de como parecia ter percebido que ela precisava do lugar na frente da sala e permitindo-a ficar com ele. E, agora, de alguma maneira, ele parecia saber que ela se sentiria mais à vontade se não tivesse que tocar na mão dele. Como se soubesse.

Ela pegou as canetas. Sua peça favorita estava ali, uma caneta de tinta preta e corpo metálico azulado, enfeitada com uma rosa azul de cristal falso no topo. Aquela tinha sido a primeira coisa que ela tinha comprado pra si mesma em toda a sua vida, sua primeira compra após sair do castelo, logo que foi morar com Mal. E ela tinha guardado por todo o último ano para poder usar quando finalmente voltasse a estudar.

— Sabia que ia querer essa daí de volta — ele comentou.

Ela voltou a olhar para ele. Não tinha reparado ainda em como os olhos dele eram verdes por trás dos óculos quadrados, mas o sol deixava o brilho em evidência. Eram olhos muito bonitos, e cheios de compreensão.

— Como? — ela perguntou, encurtando a pergunta. O que realmente queria dizer era: como você sabe? Não só sobre a caneta, mas sobre o lugar na sala, e sobre a fuga, e sobre a distância? Como podia entendê-la tão bem quando nem se conheciam?

Mas é claro que ele não respondeu sobre tudo aquilo. A pergunta de Evie tinha ficado implícita apenas sobre a caneta.

— Você usou apenas ela durante toda a aula de espanhol — ele deu de ombros.

Ela piscou, aturdida. Como?

— Sou muito observador — ele se justificou, lendo a expressão dela. Subitamente pareceu ter ficado sem jeito, e pigarreou ao mesmo tempo em que levantava os óculos que tinham escorregado por seu nariz. — Como é o seu nome?

— Ah, que falta de educação. Sou Evie — os cantos do lábio dela se repuxaram levemente em um sorrido fraco pela primeira vez em todo o dia, porque pela primeira vez no dia ela se sentiu normal. Não era comum que tivesse que se apresentar sozinha, e sentiu-se bem em fazê-lo. — Você deve ser o Doug.

Foi a vez dele de olhá-la com curiosidade.

— Como você sabe?

— Seu nome estava escrito na carteira — ela explicou. — Na sua carteira. Me desculpe ter pegado o seu lugar. Eu não sabia.  

— Não, não tem problema. Só fiquei surpreso na hora, porque ninguém nunca quer sentar na frente.

— Eu prefiro. É mais... Distante.

Ele assentiu, como se entendesse.

— É seu lugar agora.

— Ah, não! Não precisa fazer isso. Você até escreveu seu nome na mesa, deve significar algo pra você.

Ele sacudiu a cabeça, negando.

— Não, é só o lugar que eu sento desde sempre. Não faz diferença para mim sentar na mesa de trás, acredite. Você pode ficar com ele. Pode até escrever seu nome por cima do meu na semana que vem se quiser.

A bochechas de Evie se contraíram em outro sorriso tímido de novo, e ela ficou surpresa. Podia contar as vezes que tinha sorrido no último ano, ou melhor, em toda a sua vida, e não acontecia com frequência. Mas com cinco minutos de conversa, Doug tinha provocado dois sorrisos espontâneos nela sem nem tentar.

— Obrigada. Talvez eu faça isso. Aparentemente a pichação é uma atividade recorrente na escola — ela disse, lembrando-se do armário de Mal, e ficou surpresa novamente com como a brincadeira fluiu dela com naturalidade.

Ele corou. Ficava fofo corando, ela percebeu.

— Escrevi na mesa porque estava entediado, a minha mãe é colombiana então espanhol é como uma segunda língua para mim.

— Uau, significa que você entende alguma coisa do que aquela mulher fala? Por que eu não entendi nada.

— A Srta. Miranda gosta de fingir que estamos no próprio México — ele riu. — Posso te ajudar se quiser.

Ela não respondeu. Seus olhos desceram para a caneta em suas mãos novamente, torcendo-a. Estava se sentindo mais normal do que tinha se sentindo em toda a sua vida nos últimos minutos, mas não queria se comprometer com nada que talvez não conseguisse cumprir. E se dissesse a ele que aceitava, mas depois não conseguisse lidar com aulas particulares? Ou pior, se algo despertasse uma crise na frente dele e ele se assustasse e não falasse mais com ela?

— Aqui — ele mudou completamente o assunto ao empurrar sua própria bandeja na direção dela. — Te fiz derrubar seu sanduíche, pode pegar o meu.

Na bandeja dele havia um dos hambúrgueres ao que ela havia pegado, além de uma porção de batata frita e alguns nuggets. Seu primeiro impulso foi tentar negar, mas ela já tinha sido rude ao não respondê-lo e ela realmente ainda estava com fome, então pegou o lanche e o mordeu. Era delicioso.

— Obrigada — murmurou. Ele era um garoto curioso. Gentil, perspicaz e fofo, e fazia Evie se sentir à vontade. Nada parecido com qualquer um que ela tivesse conhecido antes. Ela sentiu-se curiosa ao pensar nele, e lembrou-se de como tinha se perguntando onde ele estaria no refeitório. — Por que não está lá dentro?

Ele desviou o olhar dela e puxou as batatas para si, começando a comê-las uma a uma.

— Eu sempre almoço aqui — ele disse em voz baixa, mas era possível perceber em sua voz de que não era algo do qual se orgulhava.

— Aqui é tão tranquilo — ela comentou, apreciando a vista do campo aberto sob o céu limpo, e a brisa que bateu em seu rosto foi deliciosa. — Seria ótimo poder fazer as refeições sempre aqui. Precisa me ensinar como faz pra conseguir fugir e ter essa paz.

— É fácil — ele suspirou, ainda mirava as batatas. — É só não ter amigos.

Evie franziu o cenho, confusa.

— Você não tem amigos? — ela perguntou antes que conseguisse se refrear, mas se recriminou logo em seguida. Que tipo de pergunta ofensiva era aquela?

Ele finalmente a olhou, mas a íris esverdeada não demonstrada raiva e sim curiosidade.

— Você parece surpresa.

— Eu estou. Você é tão legal, pensei que deveria ser alguém de quem todos gostam. Que talvez estivesse aqui fora porque todos querem sua companhia o tempo inteiro.

Ele corou novamente, e olhos dele emitiram um brilho diferente que Evie não identificou porque nunca tinha visto em outra pessoa antes, mas iluminou seu rosto e Evie não conseguiu parar de olhar para ele. Era lindo.

Deveria haver alguma palavra para descrever a emoção que via ali, mas ela não soube nomear.

— Você é a primeira pessoa que me diz isso — ele pigarreou para fazer a frase sair.

Ela deu de ombros, sentindo-se leve.

— Você é a primeira pessoa com quem eu consigo conversar hoje, isso deve significar alguma coisa.

Ele corou de novo, e Evie notou que a reação dele a agradava. Parecia lisonjeiro, ter alguém corando por algo que ela disse. Gostou da sensação que as bochechas rosadas dele causaram em seu estômago. Era... diferente.

— E por que você está aqui fora?

Foi a vez dela de corar, mas dessa vez pela vergonha. Não queria ter que explicar ao novo e tão recente amigo o fracasso que ela se sentia. Então, invés disso, ela levantou o rosto para o sol e sorriu de leve.

— Gosto de olhar para o céu — confessou, oferecendo a ele a melhor versão da verdade que podia naquele momento. — Me dá a sensação de liberdade.

Ele abriu a boca para respondê-la, mas então o sinal soou anunciando que eles precisavam retornar para as aulas. Evie se levantou ao mesmo tempo que ele, e enquanto ela pegava suas canetas ele recolheu as duas bandejas – a dela e a dele. E caminharam juntos de volta ao prédio.

— Obrigada — ela disse, lembrando-se que não tinha agradecido a ele pelo resgate das canetas.

— Sempre que precisar.

Ela não disse mais nada, porque estavam se aproximando das portas de entrada novamente e o barulho do vai e vem de alunos pelos corredores chegou aos ouvidos dela, fazendo o corpo de Evie retornar para a tensão habitual. A matéria seguinte era dupla, o que significava que tomaria dois tempos do seu horário e ainda por cima não incluía Mal ou Ben, e ela não fazia ideia do que lhe aprecia pior: encarar Mal depois da fuga vergonhosa do almoço ou lidar com uma nova turma sem ela.

Ela foi diminuindo o passo conforme chegava mais perto, e Doug acompanhou seu ritmo lento.

— Qual a sua próxima aula? — ele perguntou, interrompendo o fluxo de pensamentos ansiosos na mente dela.

— Dois tempos de literatura.

Ele sorriu.

— A minha também!

Foi como se um balde de ar tivesse sido despejado em Evie, e seus ombros relaxaram.

— Graças aos céus — ela suspirou, e se sentiu ainda mais grata por ele não comentar sua reação estranha à frase.

Pelo contrário, ele parecia bem feliz com a reação dela. E quando passaram pela soleira das grandes portas para o corredor, ela não travou.

— Você vai gostar da Srta. Darling, ela tem um excelente gosto para clássicos.


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Notas finais do capítulo

Diferente dos outros anos, dessa vez não só você sabia qual e sobre o que seria a história, como você quem ajudou a criar o plot com as palavras que escolheu, então escrevi já super preocupada com se ficaria à altura do que você deve ter imaginado.

Mais uma vez, obrigada por existir na minha vida. Nunca me cansarei de agradecer, porque você me dá mais motivos a cada dia. Não sei como você me aguenta, mas sou grata por isso também.

Tenha o mais feliz dos aniversários (o que é uma ironia devido ao quanto essa história ficou dramática, mas ok).



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