Diários do Fim do Mundo | FIC INTERATIVA (hiatus) escrita por Ma Ellena


Capítulo 5
CAPÍTULO 5 - Os limbos da vida




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25/10/2142

Pois é, lembra quando falamos que algo bom pode sair de tudo? Talvez Kassie tenha razão em algumas partes, mas segundas chances servem para isso, não? Olhando pelo lado bom, podia ser pior. Poderíamos ter realmente perdido nossos braços, ao invés de ter apenas nossos mantimentos roubados. 

Quem diria que uma garota de 15 anos seria capaz de fazer isso, quer dizer, como Violet vai sobreviver sozinha no deserto? Estaria sendo muito ingênua em querer ir atrás dela? Talvez. Eu prefiro pensar que sou apenas uma pessoa com um bom coração, mesmo no fim do mundo. Isso é bom, certo? Mesmo que eu acabe indo contra a lei da sobrevivência, certo? 

Bom, os pontos positivos são que Smugg (Geraldo) e Kassie ainda tem as mochilas deles, e a caminhonete. Talvez realmente seja uma boa ideia começar a dormir em cima da minha  mochila como eles, dessa forma minhas coisas preciosas não teriam sido roubadas. 

Mesmo que não seja um kit de sobrevivência como o deles, o meu é mais para vivência mesmo, coisas para me entreter e me ajudar a viver. Deveria colocar o diário de volta na bolsa da Kassie antes dela terminar de planejar com Smugg (Joaquim) o que vamos fazer em seguida, mas não ainda, quando não tenho nada para fazer. 

Preciso confessar, eu já sabia que eles eram sortudos em passar o fim do mundo com uma pessoa tão divertida e incrível como eu, mas não esperava passar o resto do fim do mundo com pessoas tão fantásticas como eles. Quer dizer, eu realmente não preciso me preocupar em nada com esses dois, apenas em deixá-los alegres e contentes o que, convenhamos, é muito fácil ficar assim comigo por perto. 

Falando neles, vamos discutir sobre eles, porque sinto que até aqui nós nos conhecemos tão bem, meu caro amigo, mas tão mau ao mesmo tempo. Não seria ótimo se pudéssemos trocar hologramas como antigamente? Mas tudo bem, porque parece que todo mundo está tranquilo em voltar aos métodos arcaicos. Como todos se adaptaram tão bem, como uma garota de quinze anos, a viver completamente sem tecnologia, eu não faço ideia. 

Quer dizer, eu mal me lembrava como escrever, talvez seja por isso que minha letra é desse jeito. Enfim, de volta à Kassie e Smugg, vou apresentar os dados que consegui coletar nesses últimos dias com eles. Sobre Kassie tem mais coisa, mas vocês já conhecem ela por dentro, vamos falar por fora porque, pelo que eu leio desse diário, ela passa uma impressão física muito diferente. 

Minha maior surpresa quando nos conhecemos não foi só ser atingida na cabeça, mas o fato de que um gnomo de jardim tinha me atacado. Sério, não comentamos muito sobre isso, mas Kassie é tão pequena e fofa que é fácil esquecer que ela é uma máquina de matar. 

Lembra que falei sobre o feminismo no apocalipse? Então, vamos falar sobre preconceitos agora, até mesmo porque sem termos fotos para grampear aqui fica difícil. Até agora, o maior dos preconceitos que encontrei foi o preconceito com os mortos-vivos, aqueles demônios que acabamos deixando para trás. 

Lembra deles? Porque eu quase não me lembro, às vezes nem parece que estamos no fim do mundo, para falar a verdade. Acho que apenas tivemos sorte de não encará-los ainda, os que encontramos na estrada já tinham sido mortos pelos nômades ou dormindo por aí. 

Kassie sempre enxerga a melhor solução para tudo e não ia ser diferente dessa vez, eu confio nela cegamente, e a caminhonete que Smugg (Raimundo) adquiriu de formas misteriosas tem nos protegido muito. Estamos vivos por sorte ou por Kassie e Smugg (Sebastião).

O maior preconceito além dos demônios veio de mim mesma, surpreendentemente. Olhando daqui, é quase como se Kassie fosse apenas uma criança perdida tentando se virar no mundo, mas não somos todos? Ela é tão pequena e fica com tanta raiva por isso, mas é difícil me conter e levar ela a sério com toda fofura. 

E o fato dela ser asiática (o que nem sei mais se é o termo certo depois de não existir mais fronteiras entre países, de qualquer forma, sem ofensa aos asiáticos) só colabora, ajuda a acrescentar o preconceito de menininha fofa que ela tem, assim como a jaqueta gigante que ela usa. Mas, depois de conhecê-la, dá pra perceber que por trás de toda essa fofura, existe um dos cérebros mais potentes e racionais que eu pude conhecer. 

Ela está sempre pronta para tudo, até para uma briga. Quando ela consegue descontrair, e quando resolve rir de mim e das piadas de Smugg ao invés de apenas julgar, as covinhas dela aparecem também, dá até vontade de apertar. No fim, ela é apenas um bebê que precisa ser protegido do mundo. Espero que consigamos chegar na cidade para ela, enfim, conseguir descansar e virar uma engenheira, ou qualquer outra coisa que ela quiser. Ela merece.

Smugg (Jorge) é um grande contraste em comparação à ela, somos mais parecidos do que ele e Kassie. Devo admitir, adoro Kassie, mas ter alguém que consegue fazer piadas piores que a minha é um alívio. Ele é bem mais alto que Kassie, olhando daqui é até fofo. Enquanto ela é pequena e baixa, ele é alto e, possivelmente, forte. 

É difícil dizer com toda a roupa de exterminador do futuro que ele usa, fora a máscara de gás que só agora estou conseguindo convencê-lo a tirar. Ela parece uma criança, ele contrasta com a barba pra fazer. Não julgo, ainda não achamos uma gillete que ele pudesse usar em algo que não fosse uma arma. 

Acabei de perceber que todos somos muito diferentes, até a recém-fugida Violet. Eu e Smugg (Heitor) temos quase o mesmo tom de cabelo castanho, mas o dele é curto e liso e o meu é longo e cacheado. Violet é loira e parece a princesa Aurora, Kassie é mais como a Mulan. Violet tem pele de porcelana, Smugg (Walter) é branco, Kassie é um tom moreno-amarelado, e eu sou negra. É bom ter uma diversidade tão grande no nosso grupo. Violet é quieta e, aparentemente, antissocial. Smugg (Afonso) é engraçado e calculista. Kassie é séria e engenhosa. E eu, bom, eu sou eu, essa definitivamente é minha definição.

Ser descontraído tem suas vantagens e necessidades também, sem Kassie eu teria morrido de fome e, sem mim, ela teria morrido de infelicidade e solidão. Todos precisamos sair das nossas bolhas de medo e preocupação que nos enfiamos em momentos difíceis. 

Isso é uma das coisas que o fim do mundo tem me ensinado, sobre como, no fim, tudo isso é como uma grande experiência de laboratório em que só nos resta enfrentar a nós mesmos e a forma que nos relacionamos com os outros. Somos mais do que apenas animais assustados que atacam quando ameaçados, mas seres pensantes que conseguem discutir civilizadamente e respeitar opiniões diferentes por mais doidas que elas sejam. 

Às vezes, temos que priorizar o bem geral e não o fato de estarmos certos. Como Kassie e Smugg (Edson) logo ali, sem socos e prisões como de costume, apenas uma conversa e análise de mapas. Algo sobre Smugg (Joel) conhecer alguém por essa área que pode nos ajudar, talvez até se junte à nós na nossa jornada ao Éden.

Se eu sei o que eles estão fazendo? Não faço ideia, mas sei o que vou fazer: cantar para todos vocês a música que está na minha cabeça desde acordei até Kassie resolver me matar pela milésima vez nesse apocalipse. Sério, se sobrevivi todo esse tempo com ela, o apocalipse é brincadeira de criança para mim. Vou colocar ela aqui para vocês compartilharem do meu talento:

“don't worry, be happy, be happy now

don't worry

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) be happy

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) don't worry, be happy

don't worry

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) be happy

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) don't worry, be happy

don't worry, don't worry

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) don't worry, don't do it, be happy

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) put a smile in your face

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) don't bring everybody down like this

don't worry

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) it will soon pass, whatever it is

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) don't worry, be happy

(Ooh, ooh ooh ooh oo-ooh ooh oo-ooh) I'm not worried, I'm happy”

Adeus, foi bom conhecer vocês.

— Com amor, a agora morta Nadin, talvez não tão sábia

 

 

*****

 

28/10/2142 08:56PM, SUPERMERCADO

Sinceramente, a maior parte das vezes eu não sei se mato Soph ou abraço ela. Talvez matar com um abraço seja uma boa ideia. Mas, como ela mesmo iria falar, isso seria impossível com o tamanho dos meus braços. Malditos braços pequenos. Digo isso só pelo que ela escreveu antes mesmo, ela não perde uma oportunidade, eu juro. 

Secretamente eu estou bem com isso, é como uma piada interna e me faz sentir como se nos conhecêssemos há muito tempo. Mas é tranquilo desde que seja ela, quando Smugg (seja lá que tipo de nome seja esse) fala sobre isso não tem graça, não se pode simplesmente roubar a intimidade com os outros (se você estiver lendo isso, é uma indireta sim).

Mas vamos ao que realmente interessa, como já deve ter percebido, achamos um lugar diferente. Se você pensa que é a nossa salvação ter encontrado um supermercado, está tão errado quanto Sophia (e sim, Sophia, você também erra). Pelo que analisamos no mapa, depois daquela criança ter roubado nossas coisas, o supermercado era um ponto próximo e que poderia nos abrigar. 

Abrigar do quê? Adivinha. Se você chutou chuva, acertou em cheio. Mais uma tempestade, mas essa acabou comprovando algumas teorias que tínhamos sobre o fim do mundo, que acabamos discutindo na viagem ao trocar experiências. Está uma tempestade de granizo, chuva e neve ao mesmo tempo, e pra melhorar, está muito quente. Talvez seja uma boa ideia trocarmos algo por mais uma das máscaras que Smugg usa. 

E sim, ele não é de todo ruim. Ainda que Sophia às vezes questione a ideia de voltar à sociedade medieval e que nas raízes do nosso subconsciente, tudo o que pensamos é num sistema simples, mas deturpado, de trocas. Algo sobre sempre esperamos algo ao invés de apenas compartilhar, ou algo assim, acredito que escambo seja realmente um método muito bom e inteligente de sobreviver no fim do mundo, parece natural e justo. 

Soph pode até dizer que eu sou a bebê, mas ela precisa ser protegida. Dentro dela existe algo que julgo ser muito mais precioso do que o que observo em mim e em Smugg, algo que vai além do mesmo antigo pensamento de sobrevivência. Às vezes, é como se focássemos tanto em sobreviver que esquecemos que não sabemos se o mundo realmente acabou, já não tínhamos essa ideia mesmo antes do fim do mundo. 

Smugg ainda é mais tranquilo que eu, mas Soph tem o poder de espalhar toda a alegria e tranquilidade dela para os outros, como se a felicidade dela fosse um vírus. E eu posso ser engenhosa, mas ela tem uma inteligência emocional invejável, nunca pensei que alguém pudesse ser capaz de sair dançando sem música e cantarolando no meio do fim do mundo, quando a cada esquina há uma ameaça de morte. 

Ela realmente é preciosa para nosso pequeno grupo. Isso ou tanta maconha já fritou o cérebro dela. No fundo, eu espero que seja a primeira opção.

— Kassie

 

 

*****

 

03/11/2684 

Como Kassie é uma reclamona e eu gosto de variar um pouco, quem veio dar as usuais notícias sou eu agora. Uma tempestade caiu e várias reflexões saíram, farei o favor de anotá-las para vocês quando tiver vontade. Smugg (Francisco) adora coisas antigas tanto quanto Kassie, o que explica muita coisa. 

Ah, e nunca, mas nunca mesmo, em qualquer circunstância, por mais estranho e assustador que seja o momento, mesmo se alguém estiver atrás de você querendo te matar, entre em uma casa abandonada. É uma receita para o fracasso.

— Nadin, a sábia do noticiário

 

 

*****

 

Para a felicidade de todos e bem geral da nação, eu vim escrever de novo, já que Kassie anda muito ocupada esses dias. Com o que, eu não sei, levando em conta que é o fim do mundo e a maior parte das coisas foram destruídas. Mas tudo bem, vou continuar fingindo que encarar um mapa por três dias seguidos negando a realidade em que nos encontramos é normal. 

Afinal, quem sou eu pra julgar, não é mesmo? É isso o que tenho feito praticamente o apocalipse todo, analisando e questionando a vida sem esperar alguma resposta. Pelo menos eu ainda faço questão de pensar. Mas às vezes, é difícil continuar fazendo isso. Não é incrível como até mesmo eu fico sem palavras às vezes? 

Sério, me surpreende como algumas coisas ainda me chocam. Estamos no fim do mundo, como é que a mente consegue continuar achando que algo comum e corriqueiro antes do Apocalipse seja estranho agora? Apesar de toda a positividade, ainda tenho a consciência da maldade humana que habita em cada um de nós. A diferença é o quanto deixamos isso nos afetar, o quanto alimentamos ela. 

Uma vez, em uma aula da faculdade (sim, eu fazia faculdade, por incrível que pareça. Estudar é importante, foi o que nos deixou vivos até agora. Se tiverem alguma oportunidade e possibilidade nesse fim de mundo, estudem, crianças), um professor contou uma história antiga sobre dois ursos. 

Sobre como existem dois ursos dentro de nós, um mal e um bom, que estão em constante guerra. Cansados e necessitados de energia, eles buscam alimento no reservatório de nossa alma, consciente e inconsciente, memórias alegres e traumas escondidos, a fim de vencerem a batalha. 

Como somos a fonte de alimento deles, cabe a nós escolher qual alimentamos mais e, consequentemente, qual irá vencer. O mal ou o bom. Ainda tenho dificuldades em tentar entender como conseguiam acreditar que dois ursos cabiam dentro deles mesmos, é fisicamente impossível, principalmente se essa pessoa for Kassie. 

Li também que a felicidade é uma mera tradução da realidade, como uma escolha que fazemos. Tendo isso em vista, creio que o amigo (colega, conhecido, que seja) de Smugg (Alberto) é um péssimo tradutor, ainda pior que Kassie. No supermercado, Smugg (Alfred) havia dito que conhecia uma pessoa nessa região que havia feito trocas com ele, algo sobre cortar a grama por uma faca, e que poderíamos pedir ajuda. 

Em troca de algo, claro, porque é essa a nova maravilhosa sociedade que estamos construindo. Deveríamos seriamente conversar sobre isso, possibilidades infinitas, mas decidimos continuar do mesmo jeito. Ou pior.

Enfim, depois de quase dois dias viajando naquele carro, conseguimos chegar em uma casa abandonada. Péssima ideia. Sério, pra pessoas que amam coisas antigas Kassie e Smugg deveriam assistir mais filmes de terror contemporâneos, todo mundo sabe que a casa no meio da floresta perto do lago é o lugar mais propício para ser morto. 

Se ela parece acabada e o lago estiver sujo ganha um bônus e a única certeza que se tem ao entrar é que nem todos vão sair. Mas não, melhor entrarmos em algum lugar estranho, não temos nada de valiosa pra perder, não é mesmo? Quer dizer, quem acha que a vida é algo precioso no apocalipse? 

Só a doida da Sophia, isso mesmo, vamos continuar tentando nos matar, porque, no fim, tudo isso deve ser uma história sádica e deturpada criada por um autor mais sádico e deturpada ainda! A questão é quem é o mais louco: nós, o autor ou você que está lendo isso no conforto da sua casa (que provavelmente é tão abandonada quanto a que encontramos)!

Sabe o que encontramos assim que pisamos na varanda e batemos na porta? Se você pensou em uma pancada na cabeça e prisão, passou perto. Uma arma. Bem na minha cara. Pode isso, produção? Aparentemente sim! Smugg tentou argumentar com o cara, que aparentemente se chama Joe, mas a resposta foi uma porta na cara. 

Fomos enxotados por um adulto ranzinza que age como o velhinho do Up! (Sim, referências antigas de novo, só porque é um clássico da animação do século 21). Esperava que Smugg fosse a criancinha, mas ele apenas disse para esperarmos alguns dias.

Vou te contar, pra quem tem um nome bíblico, isso não foi nem um pouco jesuítico da parte dele. Mas tudo bem, porque ainda tenho Kassie e Smugg. Seria muito pior se ele realmente fosse um assassino e não conseguíssemos invadir o celeiro perto da casa. 

Que por sinal, tem vários ganchos pendurados, mais lugares bons pra dormir e alguns ratos que Kassie está tentando descobrir se é uma fonte saudável de proteína. Juro pra você, se não fosse a necessidade de sobreviver, eu teria virado vegetariana.

— Nadin, a sábia sem fome

 

 

*****

 

08/11/2142 03:56PM, CASA DO JOE

Acho que já estou cansada de dizer o quanto Sophia consegue ser cansativa e irritante, apesar de uma boa companhia. Não demorou muito tempo para Joe perceber isso também, visto que agora estamos na sala dele, em frente à lareira e tomando chá quente enquanto esperamos a sopa de feijão ficar pronta. 

Se alguém estiver lendo isso, acho bom anotar que feijão é um dos melhores alimentos para se sobreviver ao apocalipse. É uma ótima fonte de vitaminas, minerais, proteínas e cresce muito rápido. Bom, pelo menos é isso que está escrito em um dos livros da estante da sala. 

Apesar de tudo, se pudesse escolher alguém para passar o apocalipse junto, escolheria Sophia sem pensar. Ela pode ser desatenta, irritante e distraída, mas é a melhor saída para lidar com pessoas. É como uma chave que abre todas as portas, talvez tente aprender com ela uma coisa ou outra. Talvez. 

Smugg tem sido uma companhia útil também. Ainda me questiono como ele arranjou tantas coisas, ele diz que foi através de trabalhos, mas ainda questiono que tipo de trabalho se faz para conseguir tudo isso. Os mapas que ele conseguiu foram um jeito de chegarmos até aqui, de nos abrigar da tempestade no supermercado e conhecermos Joe. 

É quase como se ele pegasse as tarefas que Soph não consegue fazer, como se eles se complementassem. Infelizmente, eles se complementam no humor questionável e na vontade infinita de falar também. Me pergunto o que seria deste diário se ele também começasse a escrever. 

O que nos leva à quarta pessoa que começou a conviver conosco. Joe é um cara peculiar, no mínimo. Qualquer pessoa que tenha como primeira reação apontar uma arma na sua cara quando já te conhece e tudo o que você fez foi tocar a campainha é, no mínimo, peculiar. Mas provavelmente teria feito o mesmo, então ele deve ser um cara confiável. 

Ele é extremamente quieto também. Acho que seria uma boa adição ao nosso grupo de sobrevivência ao apocalipse, tendo em conta ele ser uma das únicas pessoas que não saíram da própria casa e que deixou o interior extremamente conservado, mesmo quando o calor e a chuva a fizeram parecer abandonada. É um ótimo disfarce para afugentar visitas, quando o apocalipse acabar, talvez, eu tente ter uma casa assim também. 

Ele é mais velho também, seria bom conseguir ter mais alguém para nos apoiarmos. De certa forma, ele me lembra André. Ele tem cara de quem sabe das coisas, como um bibliotecário. Surpreendentemente, ele é uma das pessoas que tenho vontade de me aproximar, deve ter informações úteis e que possam nos ajudar. Ou talvez só tenha problemas paternos, como diria Freud.

— Kassie

 

*****

 

NOMES QUE TALVEZ SEJAM O DO SMUGG

 Albert

Amos

Arthur

Artie

Bennett

Clarence

Clifford

Earl

Edison

Edmund

Erwin

Edwin

Elon

Emmett

Emile

Ernest

Frank

Francis

Gael

Gerald

Gert

Gus

Harold

Harmon

Harvey

Hayden

Hilda

Howard

Hugh

Jasper

Jarrett

Julien

Kenneth

Langston

Louis

Marshall

Mickey

Milton

Nelson

Neville

Norman

Orville

Oscar

Otis

Pierce

Presley

Preston

Ralph

Randall

Raymond

Reed

Richard

Rodney

Roy

Shadrack

Sherman

Spencer

Stanley

Sterling

Tobias

Waldo

Whitman

Wilber

Willie

Winston

Windsor

Wren

Wright

— Nadin, a sábia

 

*****

 

10/11/2142 03:56PM, CASA DO JOE

Para quem quer que esteja lendo isso, uma ótima dica a ser anotada é que quanto mais pessoas tiver no seu grupo, mais comida você vai precisar. Eu sei que isso parece óbvio, mas em um apocalipse, todo tipo de mantimento é escasso. E não falo só sobre comida e água, papel higiênico, desodorante e shampoo são coisas raras de se achar. 

Chegamos a um momento de conseguir entender porque a França se orgulha tanto dos seus perfumes que eram mais úteis na Idade Média, qualquer um mataria por um banho depois de um  mês sem lenços umedecidos para ajudar. Bom, pelo menos eu mataria. 

Ainda que Joe tenha ficado relutante, Smugg conseguiu convencê-lo a nos mostrar o que tinha guardado para fazermos a conta de quantos dias ainda conseguimos nos manter. Hoje foi o dia em que marcamos de procurar mais mantimentos. Pelo menos uma pessoa deveria tomar conta da casa, uma procurar lenha e dois para procurar mantimentos. 

Joe disse que o maior perigo nessa área não era só as criaturas, que aparentemente estão em todo lugar, mas as pessoas que procuram mantimentos também. É impressionante o que as pessoas conseguem chegar a fazer quando se sentem ameaçadas. Sophia claramente não tem condições de andar sozinha por aí, e não confiaria em deixar Joe com alguém.

Smugg concordou  e resolveu levar Sophia com ele para acharem mantimentos, já que ele conhece mais a área e tem uma noção melhor de onde pode encontrar algo. Achei melhor que Joe fosse buscar a lenha, não poderia arriscar voltarmos e achar a porta trancada quando voltarmos. Eu fiquei checando os arredores da casa e procurando algo útil nela, lendo e separando os livros que encontrei na estante.

Quando passamos a noite no celeiro, pudemos encontrar madeira o suficiente para consertar o telhado e reforçar as janelas, mas nada que demorasse para queimar. As sobras foram úteis para criar uma horta interna, já que não quero arriscar que a chuva estrague tudo novamente, o que garantiu uma Sophia mais feliz e cantarolante do que quando ela chegou com Smugg.

De alguma forma, ele priorizou encontrar as ervas especiais delas do que algo que fosse bom para o grupo. E quando digo ervas, digo todas as ervas, sem exceção. Mas ele foi útil também. No fim, além de presentes que cativaram a atenção e aumentaram o afeto de Sophia por ele, Smugg conseguiu o suficiente para quatro dias. 

A caminhonete de origem desconhecida, que ele insiste que era de seu pai e que tinha usado para carregar um artefato, ainda que suspeita, veio a calhar. Devo comentar que a maior parte do lixo que ele trouxe dizendo ser artefatos históricos importantes para lembrarmos de identidade cultural pós-apocalíptica foi desnecessária, mas a opção de poder finalmente lavar meu cabelo me fez aceitar tudo aquilo como troca. 

Ele conseguiu várias latas de conservas diferentes, vários grãos e tubérculos,  que custou algum tipo de trabalho braçal e faca. Resolvi ignorar o comentário de que Sophia conseguiu a maior parte dos utensílios convencendo pessoas de que cocos e galões de água não eram tão necessários à sobrevivência, assim como os novos livros que ela trouxe.

Apesar dos pesares, acho que estamos indo muito bem em toda essa questão de sobrevivência, principalmente depois de Joe chegar surpreendido com o quanto conseguimos em um dia. Às vezes esqueço que ainda somos considerados novos demais para tudo isso. Tenho certeza que toda pesquisa que fizemos sobre cenários possíveis no fim do mundo foi o que nos ajudou a chegar até aqui e evitarmos erros catastróficos.

Depois do dia inteiro procurando coisas, conseguimos loona para o caso de chover, roupas para um possível inverno , uma bomba e um filtro de água que tentarei usar para criar um filtro para água da chuva com Smugg e mudas e terra boa para Joe e Sophia fazerem uma horta, cortesia de Joe. Tentarei guardar tudo no porão.

Enquanto ficava na casa, resolvi construir algumas coisas para passarinhos também, caso eles ainda sejam comestíveis. Algumas coisas me chamaram a atenção nos livros que chequei enquanto tentava descobrir como fazer uma casa de passarinho. 

Havia alguns sobre mitologia grega que me pareceu interessante para passar o tempo técnicas de construção rústicas que ensinam a usar concreto para sustentação e de biologia que jurava ter aprendido algo sobre na escola, que explicava a evolução dos animais e talvez explique como eles estão agora. 

Mas o que realmente me chamou a atenção foram os livros de costura, como crochê e tricô, e livros infantis. Não é muito difícil supor que essa era uma casa de família, já que em um quarto de casal e um de solteiro com uma cama pequena.

Seria ousado e talvez errôneo pensar que essa era a casa da família do Joe, mas é como se as peças do quebra-cabeça apenas encaixassem. Todos nós sofremos alguma perda com o fim do mundo, mas não tem como saber se foi antes ou depois. Acho que é apenas algo normal em qualquer situação, as perdas.

O único livro que não estava na estante estava guardado ao lado da cama de casal, na gaveta do criado-mudo. Já tinha ouvido falar sobre ele, mas nunca tinha visto uma Bíblia fora dos museus. Mais de trinta livros compilados em apenas um lugar, escrito por pessoas diferentes em diferentes épocas, mas que contavam o trajeto da história de um povo, mas que tinha um mesmo assunto em comum que ligava todos eles? 

Era meu sonho conseguir uma dessas.Só não esperava que tivesse uma arma tão bem guardada e sem pó ao lado dela, ainda mais carregada. Pelo pouco que sei, não é algo que combine tanto. Não pretendo me dar ao trabalho de perguntar a Joe o que aconteceu, por motivos simples e óbvios. 

Pessoas mentem o tempo todo e omitem coisas que evidências não negam. Perguntar para alguém é como dar um tiro no próprio pé. E todos nós sofremos mais com o apocalipse do que mostramos, só chegamos na mesma conclusão de que o modo mais seguro de tentar viver um pouco é um dia de cada vez, sem se preocupar com o ontem ou com o amanhã. independente da tragédia, todo dia é uma nova escolha a ser feita, uma nova chance de viver melhor do que o dia anterior.

—Kassie

 

*****

 

13/11/2142 03:56PM, CASA DO JOE

Olá, ser que está lendo isso por motivos desconhecidos. Sentiu minha falta? Espero que sim, até mesmo porque neste diário eu só escrevo quando estão todos ocupados demais para lembrar de te atualizar. Sorte sua que eu existo, no fim das contas não saber muito da parte prática da sobrevivência serviu para algo.

E com o que estão todos ocupados, você se pergunta. Bom, descobrimos essa semana que existe coisa pior do que um ataque zumbi. Pior do que seres humanos que não pensam em atacar você são seres humanos que pensam, certo? Bom, transforme esses seres pensantes em animais desesperados por sobrevivência e que não se lembram do significado de algo básico como civilização, eles se tornam mil vezes pior.

O lado bom é que Kassie conseguiu o que queria, e agora estamos em um porão cheio de mantimentos. Surpreendentemente, ele não passa de uma lavanderia misturada com oficina e muito, mas muito mofo. Nada de corpo, o que tira Joe um pouco do radar de ‘assassino’, de uma forma esperada e frustrante. Ou ele só sabe se livrar bem das provas, quem sabe? De qualquer forma, ele ainda é incrível.

Sério, enquanto pegávamos minhas lindas plantinhas, ele quem ouviu algo estranho primeiro. Ou foi o que ele não ouviu que delatou o ataque? Eu achei impressionante ele achar que a falta do barulho dos pássaros nas casinhas que Kassie fez fosse um sinal de ameaça. 

Foi tudo tão rápido, num piscar de olhos Kasse e Smugg (Otto) entraram arrastando todos os mantimentos restantes para o porão e ele me carregou para baixo enquanto sacava sua arma. Mas ele se tornou meu herói quando desceu com a horta antes de trocar a porta. Criar um jardim inteiro do zero dá muito trabalho e eu ainda não estou disposta a perder isso pela segunda vez.

O lado bom de ser forçado a viver o momento é que, enquanto Kasie e Smug derretem os metais de bijuterias e caos que eles encontraram para fazer alguma arma decente que consiga nos proteger quando tentarmos colocar as coisas na caminhonete misteriosa, tudo acaba adquirindo um toque familiar.

As luzes piscando aos poucos, me lembrando o Natal, os copos de suco e as conversas soltas sobre a vida me fazem lembrar como tudo era antes, na oficina de meu avô. Enquanto o sol se punha e ele fechava a garagem, me levava café, apesar de minha preferência ser bebidas com potência de estragar meu fígado, me acomodando no teto do carro antigo que insistia em restaurar. 

Na cabeça dele, viajar pela terra com aquele troço velho e barulhento era mais rápido, já que evitaria o trânsito dos céus. Ele me perguntava o que estava estudando, me ajudando a memorizar e entender a matéria. Se conseguir chegar à faculdade, foi graças a ele. Sinto falta do velho. Tenho certeza que ele ficaria orgulhoso de me ver agora e dos resultados dos exames de sangue consequentes da minha nova dieta.

Joe tem feito isso de vez em quando, apesar de rabugento e ranzinza, ele cuida e se importa com a gente. Não vou deixar ele sair de perto da gente, combinado, Kassie? Existem coisas mais preciosas que precisamos nos lembrar nesse momento, coisas que nos impedem de nos tornarmos humanos desprovidos de qualquer humanidade, como os que estão esmurrando a porta nesse momento.

— Nadin, a sábia.


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