Diários do Fim do Mundo | FIC INTERATIVA (hiatus) escrita por Ma Ellena


Capítulo 6
CAPÍTULO 6 - Os fantasmas do Natal passado




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CEIA DE NATAL - NARRADOR, 24/12/2142 11:42PM, PORÃO DA CASA DO JOE

Por onde quer que olhassem, o sol parecia não brilhar acima das nuvens que causavam aquela tempestade de gelo e neve. Parecia. Algo em comum para todos que se encontravam escondidos no porão daquela casa parcialmente destruída, era a nostalgia que a época natalina trazia para suas mentes e corações. Sempre foi assim, mas nesse ano, tudo parecia amargo. Em suas mentes, flashes de seus entes queridos passavam em suas mentes enquanto tentavam se esquentar com uma tentativa falha de chocolate quente, e causavam um aperto em seus corações. Como uma homenagem silenciosa, o silêncio que pairava no ar era como uma despedida silenciosa. Depois de tanto tempo evitando e negando encarar o fato de que suas vidas haviam mudado drasticamente, um momento de pausa tão merecido forçava a todos a parar para refletir sobre suas vidas, passado, presente e futuro. 

 

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KASSIE, 24/12/2140 10h57PM, CASA DOS CHENG

As luzes de natal brilhavam alternadamente, enquanto Kassie esperava o momento certo para tirar a foto. Sua irmã, Kiara, a encarava com o brilho no olhar que sempre tinha, um olhar que desafiava o espectador a entrar em sua vida e descobrir os cantos mais fundos de sua alma. Era uma garota extremamente esperta, ainda que mais nova, sempre sabia de tudo e amava ensinar desde o porquê do céu ser azul até os reflexos de Macbeth na formação humana evoluída. 

“Você é muito boa nisso”, a garota de quatorze anos sorriu em aprovação ao olhar o resultado da foto.

“É mesmo, para transformar Kiara em algo bonito tem que ser mágica”, seu irmão mais velho apareceu, na tentativa bem sucedida de provocar a irmã.

Kassie sorriu enquanto observava os dois e esperava o momento certo de tirar mais uma foto. Com a proximidade da idade dos três, era quase como se fossem trigêmeos. E como sentia falta deles enquanto estudava em outra cidade, na esperança de terminar a escola tendo alguma ideia do que fazer depois. Kaleb era apenas um ano mais velho e se preparava para estudar e trabalhar na segurança das cidades, já que era um gênio da computação e poderia ajudar os soldados de inteligência artificial que protegiam a barreira do país. Algo sobre a necessidade e importância de fazer esse trabalho para proteger pequenos momentos de paz como esses foi o que o motivou, o que não surpreendeu ninguém de sua família. Sempre teve um irmão gentil e protetor. E como ele fazia falta.

Kiara era nova mas já tinha um propósito de vida desde os dez anos, como a pequena gênio que ela era. Queria ser professora e ensinar tudo o que aprendeu, dizia que era o melhor jeito de se aprender também. Algo sobre ser o próximo Einstein da história, sempre foi ambiciosa. Vivia pesquisando modos de integrar a educação humana com a educação dos AI’s, dizendo que a inclusão era uma parte importante do processo. Talvez fosse por isso que K, o robô que havia ganhado alguns anos antes, fosse seu melhor amigo. Ou porque K realmente conseguia pesquisar sobre todos os fatos do mundo.

“Vamos jantar? A ceia está pronta”, sua mãe chamou com uma voz suave que ouvia em sua mente todas as vezes que precisava se acalmar. Sentou-se ao lado do seu pai e começaram os agradecimentos que faziam todos os anos antes de comerem. 

Ao lembrar desses momentos, pela primeira vez em todo apocalipse, Kassie se permitiu chorar.

 

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SMUGG, 24/12/2139 9h23PM, MUSEU NACIONAL DE MINNESOTA

Apesar de ser véspera de natal, o Museu estava cheio. Talvez fosse culpa da neve que caía lá fora e que obrigava os pedestres a se abrigarem, ou o fato de que alguns casais acham romântico passar o feriado observando múmias e hologramas antigos e fracos, ou talvez fosse até o evento que estava sendo realizado naquele dia. Antony não sabia o que era, mas se alegrava em poder auxiliar e explicar repetidamente suas histórias favoritas. 

Era a primeira vez que o deixavam passar tanto tempo no museu, antes tinham que expulsá-lo de lá. Poderia contar todas as vezes que havia visitado aquele mesmo lugar, com seus pais e com a escola, assim como todas as aventuras e histórias que viveu com seu irmão. Havia sido o maior faraó que o Egito nunca teria, o melhor e mais justo Napoleão, conquistado mais terras que Alexandre o Grande, construído e derrubado a muralha da China. Havia sido o primeiro adolescente à pisar na lua, dado a primeira martelada para derrubar o muro de berlim, impedido o nazismo e o holocausto, sobrevivido à maior pandemia que o mundo vivenciou também. Havia sido o primeiro homem a criar os hologramas, o primeiro robô de inteligência artificial, e várias outras histórias. Mas de todas elas, a melhor era a que vivia e desejava que nunca acabasse.

Pela primeira vez naquele ano, saiu antes de o mandarem embora. Não porque queria, mas por que precisava. Era véspera de Natal e sua mãe havia insistido que ele comparecesse naquele ano, mesmo não tendo certeza se entendia o motivo de comemorar um feriado tão antigo. 

Correu em direção ao trem, na esperança de atravessar a cidade mais rápido do que os cinco minutos habituais. Enquanto esperava chegar na estação, observava as luzes brilhantes da cidade que passavam embaixo dele, a neve distorcendo o tamanho e tornando a paisagem mais bonita. Encostou suas costas no banco e respirando, observando a sacola de presentes bem embrulhados que carregava consigo.

Afinal, se ia participar de alguma tradição, achou que deveria seguir à risca. Além disso, estava na esperança de convencer sua mãe a trocar os presentes pela comida maravilhosa que já conseguia sentir o cheiro só de imaginar. Em um momento de tranquilidade, desejou que todos os anos seguintes fossem exatamente como aquele momento, cheio de vida e na certeza de que tudo fosse ficar bem.

 

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SOPHIA, 24/12/2138 11h37PM, LAJE DE ALGUMA CASA

As luzes da cidade brilhavam e a impediam de conseguir enxergar as estrelas no céu, o que a irritava. 

“Algum dia”, pensava. “Algum dia vou conseguir achar um lugar adequado para ver as estrelas”.

Parecia um sonho impossível, mas no momento era o único que tinha. A música no andar de baixo era como um som de fundo para sua mente, não a incomodava mais. A quantidade de gente que haviam conseguido colocar naquele apartamento era impressionante, mas depois de um tempo dançando sentiu a necessidade de tomar um ar.

Sophia deu um trago forte em seu cigarro recém enrolado e deitou de costas no concreto enquanto esperava o efeito da droga alcançá-la, com as pernas pendendo para fora da laje sem proteção. “Um fracasso”, era o que pensava. Seus pais a definiam assim, seus amigos também. Eram todos um fracasso e esse era seu destino, a maçã nunca cai tão longe da árvore. Com seus dezesseis anos, só esperava pacientemente o momento em que a escola pararia de tomar metade de seu tempo e aquele momento se tornaria sua eterna realidade. Diferente da parte rica da cidade, o lugar em que morava a condenava. Era o que pensava, até o fim das aulas daquele ano.

Não esperava que uma professora humana substituta a cativasse tanto, algo sobre as estrelas chamou a atenção da garota, em meio ao caos que a sala se encontrava. As estrelas não mentem, e seguem sempre o mesmo padrão, mas escondem os maiores segredos do universo. Segredos que diversas pessoas se aventuraram a descobrir e o que trouxe a maior parte da mudança e evolução que a humanidade presenciou. Desde luz para se protegerem de perigos até direcionamento para encontrarem novos planetas. Naquele Natal, tudo o que buscava era ver as estrelas e tentar descobrir o direcionamento que elas tinham para lhe oferecer. 

Lembrou do rosto de seu avô, cada vez que fingia não saber quantas leis a garota já havia quebrado. Ela estava na pior, com uma vida terrível, mas foi o que seu avô conseguiu oferecer. Ele ofereceu mais a toda a família do que tinha antes, o primeiro da família dele que conseguiu um emprego bom o suficiente para prover uma renda regular. Mas sua mãe sempre teve um dedo ruim para escolher homens, e não tomou seu avô como exemplo de ‘pai ideal’. As marcas nos corpos de sua mãe e de Sophia mostravam o resultado da péssima escolha, pelo menos havia sido esperta o suficiente para não colocar outra decepção de filho no mundo. Havia dois caminhos diferentes para seguir. Levantou bruscamente, fazendo sua cabeça latejar, e saiu correndo em direção à oficina de seu avô. Se fosse tomar uma decisão tão arriscada quanto seguir as estrelas, precisaria de um ambiente propício e da ajuda de alguém que já tivesse tentado mudar seu próprio destino.

 

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VIOLET, 24/12/2137 11h54PM, COBERTURA DE LONDRES

Em meio à confusão de cheiros, luzes e vozes que se passava no apartamento gigante, Violet observava a neve caindo nos telhados das casas. Não se lembrava da primeira vez que havia visto neve, mas naquele momento, ela odiava. Significava que não poderia sair de casa e tinha que ficar trancada naquela multidão. Depois de três anos, nem esperava encontrar o pai ou ganhar algum presente. Muito menos a mãe. De pernas cruzadas, mexia nas mechas louras e repassava como havia chegado até ali.

Era nova quando havia acontecido, mas não tinha como apagar de sua mente aquele momento. Seus pais gritavam tão alto que ela acordou, o barulho de vidro quebrando a assustou e a fez correr até a linda sala. Sua mãe tentava carregar a mala até a porta, fazendo força para se livrar do pai que a segurava. O carpete branco tinha adquirido uma mancha vermelha de vinho e o cheiro era muito forte para a pequena garota de sete anos. A porta se fechou com uma batida forte, e Violet observou o pai cair em joelhos, chorando. Ela só conseguiu compartilhar da dor do pai quando viu seu desenho, antes pendurado na parede, caído no chão e absorvendo o vinho.

Desde aquele dia, Violet aprendeu a cuidar de si mesma, e na maioria dos dias estava bem. Era uma ótima aluna, tinha alguns amigos com quem conversar no lanche, adorava ir ao cinema depois das aulas e a reconheciam quase sempre. Passava na padaria a caminho de casa, na esperança de ter alguma coisa boa para jantar. Ignorava seu pai e as muitas visitas que ele recebia e dormia em seu quarto depois de ler ou brincar.

Mas, em alguns dias como aquele, era difícil suportar toda a mudança. Lembrava de sair para observar a decoração na rua e de brincar na neve com seus pais, de abrir diversos presentes e de entregar os que havia feito para eles. Sentia saudades daquilo. Sabia que naquele dia seu pai beberia tanto que não acordaria cedo no dia seguinte, não havia nenhum presente debaixo da árvore para ela, e provavelmente ele brigaria com ela se perguntasse. Naquele Natal, havia pedido um cachorrinho ou gato para lhe fazer companhia.

Um dos rostos familiares do buffet chamou a criança, agora curiosa, em direção à cozinha. O que encontrou foi sua sobremesa favorita: bingsu. Um sorvete feito de neve de leite condensado, com calda de chocolate, morangos e granulado em cima. Poderia não ser um Natal perfeito, mas naquele dia voltou a gostar da neve. Se não caindo do lado de fora, pelo menos dentro do seu estômago.

 

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JOE, 24/12/2135 8h58PM, CASA DOS MARSHALL

Joe adorava todo tipo de comemoração, mas aquele ano era especial. Seria o primeiro Natal que passaria com o seu filhinho e havia feito um esforço enorme para que ele fosse perfeito, começando a planejar no dia em que soube que teria um filho. Havia planejado muito, mas algumas coisas acabaram saindo bem erradas. Tinha se empolgado tanto que a árvore que escolheu não cabia em pé de tão alta, a ceia era tão grande que sobraria comida para o resto do ano seguinte e se esqueceu do ponto mais importante. Um bebê de cinco meses só dormia.

Ele tinha um grande sorriso no rosto apesar de colocar o filho no berço e ir se deitar mais cedo do que planejava. Estava feliz por poder contar a ele, quando fosse mais velho, tudo o que havia acontecido naquele dia. Desejava que houvesse muitos outros anos para tentarem fazer a comemoração perfeita que queria. Sabia que pelo menos todos os presentes que havia comprado teriam alguma utilidade no futuro, no mínimo para entregar quando ele tivesse tamanho e idade o suficiente para usá-los.

Tinha que admitir, havia se empolgado muito. Mas o som da gargalhada que sua esposa havia dado com as atitudes dele já eram o melhor presente que ele poderia ter recebido, um som que ecoava em sua mente toda vez que a neve caia. Um som que agora sentia falta e apertava seu coração todos os segundos dentro daquela mesma casa, agora cheia de pessoas que agiam como animais.

 

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CEIA DE NATAL - NARRADOR, 24/12/2142 11:42PM, PORÃO DA CASA DO JOE

Por onde quer que olhassem, o sol parecia não brilhar acima das nuvens que causavam aquela tempestade de gelo e neve. 

Parecia. Algo em comum para todos que se encontravam escondidos no porão daquela casa parcialmente destruída, era a nostalgia que a época natalina trazia para suas mentes e corações. A nostalgia que sabiam que enfrentariam todos os próximos anos pelo resto de suas vidas. Mas uma nostalgia que sabiam que não podiam deixar que o consumissem, mas que fosse um lugar que os desse esperança e força, que os lembrasse de que sobreviver era o melhor jeito de honrar a memória de todos aqueles que haviam perdido.

Kassie respirou fundo e enxugou as lágrimas que escorriam timidamente pelo seu rosto, se movimentando em direção à comida que haviam conseguido pegar antes de descer para o porão e chamando a atenção dos outros. Ela separou uma bebida, algo que parecia ser pão e legumes enlatados, preparando uma sopa mais encorpada do que o normal. Despejou o conteúdo em cinco potes e adicionou o pão em sua mesa improvisada.

—Feliz Natal, e que esse ano seja melhor. - falou baixo e com um leve sorriso.

Todos se sentaram à mesa, agradecendo, e começaram a comer, esperando no porão a neve passar.


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