Diários do Fim do Mundo | FIC INTERATIVA (hiatus) escrita por Ma Ellena


Capítulo 4
CAPÍTULO 4 - Um raio cai duas vezes no mesmo lugar




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04/09/2142 3:24AM, LIVRARIA

Só queria deixar registrado, que tudo o que aconteceu foi só um leve momento de fraqueza. De ambas as partes, diga-se de passagem, Sophia continua irritando alegre e contente como se nada tivesse acontecido. Foi estupidez esperar que algo mais forte que uma pancada na cabeça consertasse ela. Mas decidimos não ir à fazenda hoje, só por precaução. 

Não é porque eu acredito na péssima atuação que Sophia faz de alguém que não consegue andar ainda, eu sei que é porque ela tem preguiça mesmo e por ser perigoso. Nem porque não quero mais arriscar perder o que é importante pra mim, agora que tenho algo com o que me preocupar. É estranhamente satisfatório o sentimento de ter algo a perder no meio de tudo isso, é como se a vida voltasse a seu lugar e pudesse me tornar humana novamente.

 ***** 

05/09/2142 5:57AM, LIVRARIA

Uma das coisas que mais aprendi nesses poucos meses de apocalipse é que privacidade e espaço pessoal são coisas que não existem mais. Se antes de tudo isso os diários eram lidos mesmo com a senha sendo uma impressão digital, agora virou a casa da mãe Joana. Não posso deixar Soph fingindo que está morrendo por um segundo enquanto tento fazer alguma sopa, que ela já sai mexendo na minha bolsa e lendo o que escrevi. 

E adicionando comentários, retomando conversas passadas e me dizendo que não entendi nada do que ela quis dizer. Talvez você, ser estranho que decide que vai ler diário perdidos no meio do nada ao invés de se esconder de todos os maus que existem nesse mundo novo, assim como Soph, tenha várias questões não respondidas nesse momento. 

Como o mundo acabou? Quem sou eu? Como sobrevivemos ao apocalipse? Minha família morreu? Porque escrever coisas inúteis sobre o dia a dia em um caderno ao invés de um guia pro fim do mundo? Como eu sei a hora exata em que estou escrevendo? Porque em uma época tão avançada ainda existem livrarias e milhares de livros? Mais importante ainda, como Sophia ainda não está morta se ela é um peso morto? Algumas perguntas posso responder, outras deixarei pra sua imaginação, e ainda outras não tenho as respostas e me questiono diariamente, como a última.

Vou tentar começar de novo com simples apresentações, já que Soph me convenceu de que se perdermos esse diário ele pode ser útil para passar nossos conhecimentos para frente. Meu nome é Cassandra Mei Fei Cheng, também conhecida como Kassie, nasci em 17 de outubro de 2666 (famoso ano amaldiçoado) em Ottawa, mas me mudei para uma cidade menor quando ainda era pequena. Não fazia ideia do que fazer da vida, agora só quero estar viva. 

Não faço a menor ideia de como o mundo acabou, os livros mostram diversos motivos diferentes, a única coisa que consegui identificar foi uma explosão e a aparição dessas criaturas estranhas. Talvez essa explosão tenha criado essas coisas ou, quem sabe, só libertou elas. Não é um tópico importante no meu dia a dia, o mais importante pra mim é ficar bem longe delas. Soph tem várias ideias diferentes também, ela gosta de testar todas. Um teste foi quase morrer, mas essa parte a gente não conta.

Também não fazemos ideia de como sobrevivemos ou o porquê de termos sobrevivido e os outros não. E de onde todo mundo foi parar. Pra falar a verdade, a gente não sabe de quase nada, mas sabemos como achar e armazenar comida, o que ajuda muito, provavelmente escreverei sobre isso algum dia. Tenho escrito mais sobre o que acontece porque é um jeito muito bom de refletir no dia a dia e não perder a cabeça com tudo o que acontece. De certa forma, é um jeito de tirar as preocupações da cabeça e viver um dia de cada vez.

Me chame de estranha e ultrapassada, já estou acostumada com a Soph falando isso o tempo todo sobre as referências que coloco de séculos atrás. A verdade é que , vivendo em uma cidade pequena e antiga, o que você mais acha são lojas de antiguidades. Hoje, é tudo o que sobrou. O resto não é tão importante, eu acho. E sobre o horário, lojas de antiguidades têm a sorte de ter relógios de parede analógicos, ainda que difíceis de achar, eles ajudam. Até acabar a pilha, minha ideia depois disso é fazer um relógio de sol portátil.

 

*****

 

08/09/2142 5:23AM, LIVRARIA

Antes de tudo, lembro que o que mais ouvia é que a felicidade se encontra no caminho, não no destino. Quem escreveu isso deve ter achado uma loja de doces abandonada no caminho, agora que isso aconteceu enquanto nós procurávamos mantimentos essa frase faz muito sentido para mim. Achamos sorvete derretido e bolo embolorado, mas as balas e chocolates ainda estavam intactas no canto da loja embaixo da estante que havia caído. Estar mais feliz e satisfeita no apocalipse, ainda que por um breve momento é o que chamo de benção. E isso é o que Sophia chama de filosofia de Epicuro.

Aparentemente, a milhares de anos atrás, houve um ser humano que dedicou toda a sua vida a entender o que era felicidade e prazer. De acordo com o que Sophia, o que era conhecido como “epicurismo” foi uma filosofia que dizia que o objetivo da vida era achar prazer nas pequenas coisas como doces e sopa. Eu precisei checar duas vezes antes de acreditar que ela não estava inventado algo, hoje em dia qualquer tipo de notícia pode ser falsa, já que não existem mais fontes confiáveis. Isso quando as fontes não são o morto-vivo da esquina.

De qualquer forma, fico assustada quando Soph fala coisas inteligentes nesse nível, é como se ela saísse do estado “criança feliz” pra “monge das montanhas” em segundos. Pensando de volta nessa conversa, talvez comece a adotar esse estilo de vida. Parece que Soph é uma pessoa madura que pensou no que significa a vida depois que tudo acabou e só resolveu viver buscando pequenos prazeres, como criar uma horta e fumar um pouco enquanto observa o sol se pondo. Se ela seguir a filosofia da felicidade, até agora tenho seguido a filosofia da destruição.

É muito difícil não pensar que todos os dias serão como todos os outros e que o importante é tentar sobreviver o máximo possível tentando evitar o inevitável, o dia em que todos estaremos juntos sem distinção debaixo da terra. Parece que nesse pensamento, mais antigo que o mofo do banheiro da livraria, os três pilares importantes são amigos, liberdade e análise de si mesmo. Algo como ter somente o necessário, porque o extraordinário é demais. 

O excesso pode ser a fonte de perturbações que atrapalharam a tranquilidade necessária na busca da felicidade. Acho que viver com o necessário é muito mais fácil hoje, já que excessos não existem. Ela contou também sobre como Epicuro criou um “jardim” para morar com todos os seus amigos e viverem do que plantam, apenas o necessário. Começo a pensar que esse cara adoraria o fim do mundo, onde o sistema que regia a sociedade não existe mais. 

Como uma folha em branco, é como se tivessem nos dado a oportunidade de começar novamente, mesmo com os problemas e ameaças que encontramos no caminho. Aliás, esse cara fala sobre isso também. Para ser feliz seria necessário controlar os nossos medos e desejos de maneira que esse novo estado de prazer seja estável e equilibrado, consequentemente, acharia um estado de tranquilidade e de ausência de perturbação. 

O que é extremamente fácil de falar e escrever. talvez seja por isso que ele criou uma comunidade própria, para comprovar o que estava pregando. Ou apenas porque gostava de jardins, quem sabe? Se tivesse que escrever um guia do sobrevivente do apocalipse, talvez começasse com essa ideia. Se funcionou à séculos atrás em um momento em que a sociedade se desenvolvia e os padrões a serem seguidos eram estabelecidos do dia em que se nascia ao dia em que morresse, por que não funcionaria agora?

De qualquer forma, hoje parece mais fácil seguir isso também. Querendo ou não, as pressões sociais que sentíamos antes não existem mais. Eu li alguma vez sobre o “fim da história”, em que a sociedade tinha evoluído tanto que não tinha mais para onde ir. Será que o apocalipse é isso, um recomeço ou ajuda para continuarmos nos desenvolvendo? Se isso é uma nova chance, será que vamos acertar dessa vez? Uma coisa é certa: depois de refletir e escrever sobre tudo isso, estou passando muito tempo com Sophia.

 

 *****

 

 11/09/2142 02:25AM, LIVRARIA

Pela primeira vez em muito tempo, acordei com um dos melhores barulhos do mundo. O som da chuva batendo no teto da livraria me deixa surpreendentemente feliz e desesperadamente preocupada. Será que havia goteiras no teto como descrito nos livros de história antiga? Será que a chuva agora é prejudicial, como as chamadas “chuvas ácidas”? Quanto dos problemas hídricos que havíamos, finalmente, conseguido manter poderiam acontecer por causa disso?

Ao mesmo tempo, enquanto esfregava os olhos de sono, enxergava os momentos em que brincava de pular nas poças de chuva que se formavam no jardim de casa. Sinto a água quente do banho jogando todo o frio pra fora e o cheiro de sopa que minha mãe fazia em momentos assim, para comermos enquanto assistimos algum filme.

Agora, olhando através dos pedaços da vitrine que não foram cobertos por madeira, enxergo o brilho da lua refletindo nas gotas de chuva que escorrem pelo vidro. Quem diria que o fim do mundo poderia ser tão pacífico e dolorosamente belo? Acho que são nos momentos alegres que acabamos avançando, mas nos momentos de dores, em meio ao deserto, que nos fortalecemos. 

O objetivo da vida pode ser a busca pelo prazer, mas a felicidade se encontra nos momentos em que se supera a dor. O passado em minha mente agora se mistura com o presente, e tudo que sobra são lágrimas de alegria, uma saudade imensa do que me trouxe até aqui e um anseio do que encontraremos pela frente.

 

 *****

 

 15/09/2142 8:27PM, LIVRARIA

Como tudo que é bom dura pouco, esse anseio não durou muito. A chuva durou um bom tempo e, quando finalmente conseguimos sair, pudemos ver o estrago que sobrou. Isso é, mais estrago do que antes. Para tentar explicar melhor, é como se depois de comer uma laranja e só sobrar o bagaço, desse ele para um cachorro comer. O que encontramos na rua foi esse resto.

A única coisa boa foi que, além de barro, destroços e sujeira na rua, não havia nada. E quando digo nada, quero dizer ninguém. Nem as aberrações, nem animais que nos serviriam de comida. Resolvemos dar uma olhada na fazenda, tinha certeza de que estaria tudo destruído. Dito e feito. Soph ficou mais abalada ao ver o jardim destruído do que eu achei que ficaria, é como se todo o trabalho da vida dela tivesse ido pro lixo. 

A casa ainda tinha alguns cômodos em pé, mas uma árvore havia caído na outra parte. Esse é um dos pontos ruins em escolher morar longe dos centros, as árvores. Também é a parte boa, mas vou ignorar isso, já que não favorece meu argumento. Tentei dar uma olhada no que restou e se conseguiríamos salvar algo de lá, ainda bem que não havíamos levado nenhum mantimento para lá. Eu quase morri do coração ao entrar naquela casa, pela milésima vez em meses.

Mesmo agora, dois dias depois de termos ido lá, ainda é difícil pra mim acreditar no que achamos naquela bagunça. Quem quer que disse que um raio nunca cai no mesmo lugar é um ignorante, devia ter me lembrado disso depois de deixar minha guarda abaixar, de novo. Um raio tem uma tendência maior de cair no mesmo lugar porque o ambiente e as condições são propícias para que isso aconteça e, aparentemente, nossa vida era exatamente igual. Como a física previu, um raio caiu duas vezes no mesmo lugar.

 

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15/10/2142

Para quem estiver lendo isso, é um prazer, finalmente, poder te conhecer. Quer dizer, escrever… Que triste a possibilidade de poder falar com alguém essa pessoa (ou coisa, vai saber) ser incapacitada de responder, nunca pensei que fosse escrever um monólogo. Dizem que para entender alguém, deve-se se colocar no lugar dessa pessoa, mas ainda não entendo como Kassie consegue ficar horas a fio usando esse caderno. 

Talvez ela só esteja arranjando uma desculpa para ficar longe, esse deve ser o jeito de mostrar sua adolescente rebelde que se tranca no quarto. Vamos ver, ela me disse que, se fosse para escrever, que escrevesse algo útil sobre os últimos dias. Irônico, já que ela mesma não tenha escrito coisas extremamente úteis, além do lindo relacionamento amor-ódio que tem pelo mundo. Nem um pouco bipolar. 

Enfim, fico feliz que pelo menos algo interessante sobre mim ela tenha escrito, e que tenha entendido a parte importante de Epicuro. Talvez meu objetivo no apocalipse seja torná-la um pouco mais parecida comigo, quem sabe, a gente pode sonhar, né? Aonde ela tinha parado mesmo? Ah é, Violet. Mas, antes de falarmos sobre como descobrimos que o demônio é na verdade uma garota perdida de 16 anos, vamos falar sobre a Kassie. 

Acredito que se esse diário tivesse uma rede social de comentários, ela seria o trend topics. E eu também, porque né, eu sou eu. Enfim, Kassie tenta ser emo a maior parte das vezes, acho que deu pra reparar, mas no fundo ela é só uma criança fofa que deve ser protegida. Sabe aquele tipo de criança prodígio que é tão genial que muitas vezes se esquece de viver um pouco? Bom, essa é a Kass. 

Ela é meio doida às vezes também, acho que ela tem uma leve tendência psicopata de vez em quando, já que bate em qualquer ser vivo que possa vir a ser uma ameaça. O típico “atira depois pergunta”, sabe? O que nos leva de volta à Violet, o ser humano (acho) que encontramos na fazenda. 

Não me leve a mal, eu entendo porque alguém se esconderia em uma fazenda no meio de uma tempestade, independente do lugar estar habitado ou não. Eu também entendo o porquê dessa pessoa segurar uma pedra de forma ameaçadora. Também entendo o porquê de pegar um pedaço de madeira como se fosse um bastão de baseball para se proteger de um ser desconhecido que você acaba de encontrar no seu refúgio depois de uma tempestade. 

Querendo ou não, estamos no fim do mundo, a definição de sociedade que tínhamos antes praticamente não existe. O que não entendo é como, naquele exato momento, eu consegui entender a discussão trazida por Rousseau e Hobbes, e o porque não conseguimos definir um ponto de vista só. O fato de Kassie ter batido na coitada (ou não, vai saber) da garota foi influenciado pela organização social do pós-apocalipse, em que sobreviver é o único foco e reinado pelas leis da selva, ou ela sempre foi assim? 

Violet (descobrimos agora pouco o nome dela) ter partido pra violência antes de podermos ter uma conversa civilizada e checar se o calcanhar dela estava bem era uma reação automática de um homem bom, ou ela só é má e depois de estabelecermos contato ela aprenderá a ter educação? Não sei definir, mas, se no futuro esse apocalipse virar Jogos Vorazes, eu apostaria na Kassie. Pessoas pequenas têm suas vantagens. Bom, vou parar por aqui, estou com fome.

 

Nadin, a sábia.

 

*****

 

18/10/2142 08:56PM, LIVRARIA

Eu sinto que deveria parar de esperar e prever coisas ruins acontecendo, isso dá azar. Alguém invadiu a livraria? Aconteceu. Ser atacado pelos seres estranhos? Aconteceu. Sophia roubar o diário e escrever nele? Aconteceu. Algo destruiu a fazenda? Aconteceu. Alguém dentro da fazenda? Aconteceu. Sophia assina as entradas como se fosse uma outra pessoa mesmo que eu saiba que é ela? Aconteceu. A chuva causa problemas hídricos? Aconteceu também. Devia parar de prever desgraças.

Precisamos de um novo plano. Vai ser impossível reconstruir a fazenda, principalmente com uma árvore caída no meio dela. A livraria também está dando sinais de que vai ceder, não é seguro ou sensato continuar aqui por mais tempo. O céu está escurecendo de novo, muito provavelmente outra onda de tempestades estão vindo.

Ironicamente, não sei se prefiro o calor infernal de antes ou ficar ilhada e não enxergar o sol pelos próximos cinco dias. Precisamos achar outro lugar, o que significa empacotar tudo e sair vagando por aí em busca de um refúgio. Não sei para onde iríamos e nem como conseguiríamos sair daqui. Talvez Sophia consiga. 

A grande questão é o que fazer com Violet, o ser humano que se escondeu na fazenda por causa da chuva. A boa notícia é que isso significa que existem mais pessoas por aí e que é possível atravessar a fronteira, já que ela veio da mesma direção que Sophia. A má notícia é que a puberdade ainda existe mesmo depois do fim do mundo, e eu não estou com paciência para ficar lidando com uma adolescente violenta no momento. 

Talvez seja uma boa ideia deixá-la aqui, soltamos ela e saímos vagando. Mas não confio nela, bem provável que ela nos siga e talvez nos ataque. Sempre existe a possibilidade de criar uma gaiola móvel, mas seria um grande trabalho ficar arrastando ela e nossas coisas. Talvez uma corrente já faça um ótimo trabalho. Tenho que pensar.

 

— Kassie

 

 *****

 

20/10/2142

Oi de novo, ser que por algum motivo estranho esteja lendo isso. Como anda a vida? Porque a nossa anda muito. Com minhas habilidades de argumentação e discutindo sobre o que nos faz humanos, convenci Kassie de que o melhor jeito de agir era parando de tratar pessoas como animais e não colocando elas em gaiolas. Muito menos uma gaiola em que tenha que carregar por aí sabe-se lá pra onde. 

Não confio em Violet ainda, mas acho que devemos deixá-la quieta. Kassie tem ignorado ela desde que saímos da cidade. De alguma forma, ela tem conseguido achar algum jeito seguro de nos escondermos e nos abrigarmos do frio. Essa menina é melhor que internet, ela sempre tem uma solução para tudo. 

Não temos galhos secos para uma fogueira que nos aqueça? Usamos os livros extras que ela trouxe. Vai começar a chover e o vento nos atrapalha dormir? Ela tira um lençol da bolsa e cria uma barraca. Ela é boa demais pra ser verdade, há rumores que suspeitam que ela seja um robô que utiliza inteligência artificial para resolver todos os problemas. Isso explicaria uma parte da violência e sempre trancaria as pessoas em gaiolas. Acho. 

Enquanto as meninas dormem e eu consigo um tempo tranquilo pra minha pausa reflexiva da madrugada, é quase como se estivéssemos fazendo uma festa do pijama em um acampamento. Nunca fui muito fã de acampamentos, os mosquitos sempre atrapalham a festa. Mas neste momento, é bom perceber como Kassie consegue ficar em paz por alguns minutos. 

Vou te contar, essa menina está sempre se preocupando com tudo, talvez ela na verdade seja uma senhora de oitenta anos e que viajou no tempo e acabou presa no seu corpo de vinte. Violet também parece tranquila, como uma irmã mais nova que temos que cuidar, já que ela acabou invadindo o porta-malas do carro tentando participar de nossa viagem. 

Ela não tem falado muito, acho que ainda está assustada. No fim, todos somos apenas pessoas assustadas tentando achar algo que nos salve de se afogar na escuridão do nosso ser. Talvez. Talvez quem esteja viajando seja apenas eu.

Nadin, a sábia

 

*****

 

20/10/2142 À TARDE, EM ALGUM LUGAR

Aconteceu de novo, mais um ataque. Estamos perdidas, com frio, fome e ferradas. Talvez Sophia esteja certa e não exista mais uma noção correta do que é humanidade, a única certeza que temos é que a humanidade é um lixo.

Kassie

 

*****

 

20/10/2684

A humanidade é um lixo. Mas sabe o que se pode fazer com ele? Adubo. Portanto, a humanidade, ainda que lixo, é útil. Nesse momento, meu caro leitor, você deve estar se perguntando. Mas Sophia, sua linda, o que aconteceu para que você e Kassie chegassem a essa conclusão? 

Veja bem, lindo sobrevivente do apocalipse, muitas coisas podem acabar dando errado quando você decide se aventurar pelo mundo depois dele ter acabado. Você pode acabar não encontrando nada nem ninguém e ser o último ser humano sobrevivente no planeta e acabar se perdendo, literal e metaforicamente falando. 

Você pode acabar encontrando uma mistura de oásis e cornucópia que te garantirá todas as provisões do mundo pelo resto de sua vida e, quem sabe, alienígenas que te ensinarão a reconstruir as pirâmides e toda a civilização, comprovando uma teoria antiga. Ou você pode simplesmente ser atacado por um grupo nômade que você nem considerou a existência e que segue a mesma moral, ética e comportamentos de Kassie, acabando preso em uma jaula sem nada além de uma pancada na cabeça. Pontos bônus se eles tiverem uma prisão ambulante movida a um animal que ainda não consegui identificar. 

Reflexões que acabam saindo desse ocorrido: Kassie deveria ter previsto isso enquanto eu tentava colher a flor que encontrei largada no chão; Kassie pode facilmente virar a rainha de um grupo inteiro e podemos virar militantes da paz com um exército que transformará tudo o que restou do mundo no jardim de Epicuro.

As vantagens que recentemente descobri de conseguir escrever o que acontece simultaneamente com Kassie é prover a você, meu caro leitor, uma visão diferente desse “admirável mundo novo” em que estamos vivendo. Isso inclui o que aconteceu para que o mundo acabasse de acordo com moi. Mas estou com preguiça de falar sobre isso agora, acho mais importante comentar sobre nossas novas aquisições e perdas. 

Por que estava comentando mesmo de visões diferentes? Ah, sim, os nômades que nos bateram e prenderam em uma jaula. Sério, deveria escrever um ensaio, se chamaria “tudo de errado na sociedade pós-apocalíptica”. 

Primeiramente, algo que já havia comentado, o sério problema de excesso de violência que tenta suprir desesperadamente a falta de confiança presente na maioria dos cidadãos mundiais. 

Segundamente, a falta de leis morais e éticas que impedem e punem o excesso de violência e abuso de qualquer forma contra uma mulher. Poderia não ser o melhor panorâma, mas estávamos fazendo progresso nessa questão antes de tudo isso, para que regredir? 

Terceiramente, se nada disso existe, todo o vocabulário pode ser reformulado e eu posso inventar palavras das quais a existência não é confirmada, como “segundamente”. Deveríamos começar a colocar em uso uma nova definição de perfeição e maravilha, eu chamo de “sopheição” e “maraphia”, sinta-se livre para abusar delas, meu caro leitor.

Tentarei deixar de divagar, como Kassie diria sobre conversar com você e me integrar ao invés de apenas te informar sobre esse mundo como Kassie faz, e voltar ao tópico “visões diferentes de mundo”. Kassie vive à base da desconfiança e fatos, mas eu, meu caro amigo, vivo à base do amor e da boa vontade que esse mundo tanto carece.

Portanto, já que o plano de tornarmos Kassie a rainha do rolê e fazer desse mundo um lugar melhor, que eu teria facilmente conseguido se a própria não tivesse me mandado “parar de graça”, seguimos rumo ao plano b. Agora, seguindo Epicuro (espero que tenha aprendido direitinho, porque não vou repetir, qualquer coisa volte para o dia 08/08), moramos com nossos melhores amigos. 

Talvez eu esteja forçando a barra? Provavelmente. Mas ainda acho melhor forçar e fingir que, além de Kassie e Violet, todos os outros nômades são nossa nova família, do que forçar a barra na cabeça dos outros, como a própria Violet sugeriu. Sério, essa menina aprende rápido. Contando para você, meu velho amigo, sobre nossas novas aquisições da semana, te apresento um novo personagem nessa novela completamente sem nexo e nada linear que é a nossa vida: Smug. 

Sim, ele disse que o nome dele é esse, mas eu tenho certeza que é o nome social que encontrou para tentar disfarçar um nome que se envergonha e que tem menos força no apocalipse, como Bartolomeu. Sem ofensas aos Bartolomeus que estejam lendo isso, mas se basear em um personagem de um desenho animado de séculos atrás não é muito popular e comum nesses dias. 

Ainda que o subconsciente do nosso novo amigo ‘Bart’ acredite que o fim do mundo pode ser apenas um jogo de Black Ops (não me julgue pelas referências antigas), ele é um cara “boa pinta”, como diria minha tataravó. E sim, vou continuar eternamente a colocar referências antigas toda vez que pensar no nome dele até me cansar, porque eu quero. 

Kassie e Violet ainda olham para ele como se tivesse roubado nossa comida, mesmo que ele tenha sido a pessoa que nos alimentou desde que chegamos. Ele é um cara bacana e engraçado (talvez com um humor questionável, mas o meu também é, então não julgarei as piadas de vovô), mas Kassie discorda. O que faz o meu dia mil vezes mais divertido, assistir os dois interagindo é sensacional. 

Quer dizer, onde ele estava durante todo esse fim de mundo? Parece que todas as pessoas que conheci antes dele tinham uma vida extremamente triste e levam tudo a sério. Qual é, gente, é o fim do mundo! Tudo é possível (só não seja um otário, por favor), não existem padrões para você ser julgado, por que ficar sentado em um canto ouvindo músicas emo (sim, Kassie, essa é para você)? 

Podemos redefinir o mundo todo, intercâmbios culturais voltaram às suas raízes e sair dançando por aí é o melhor jeito que eu conheço para se divertir, mesmo sem música. Talvez você acabe escorregando na lama molhada e caindo de cara no chão? Talvez. Talvez isso tenha acontecido comigo? Talvez. Mas se esse não é o melhor momento para revermos e analisarmos toda a nossa existência e o que realmente nos define como seres humanos e sociedade, honestamente, eu não sei qual é. 

Pronto, falei tudo o que precisava ser falado nesse momento. Vou buscar mais da bebida que Smug (Vicente) ofereceu no café da manhã e que disse que ajuda a ficar acordado. Talvez eu não deveria ter tomado muito daquilo e deva parar de tomar no momento? Talvez. Mas a gente só vive uma vez, então serve um copo para si mesmo e saúde.

— Sua sopheidade, Nadin, a sábia

 

*****

 

22/10/2684 03:56PM, ALGUM LUGAR

Tentando aprender com Sophia, vou tentar ver o lado positivo das coisas. Esse tal de Smugg é estranho, intrometido e irritante, mas, assim como o adubo que é a humanidade, ele tem sido útil. Pra começo de conversa, é extremamente difícil não desconfiar de uma pessoa que estava preparada para o fim do mundo antes dele acontecer. 

O porquê de a primeira reação dele ter sido roubar a caminhonete mais próxima é uma incógnita para mim, mas Sophia tem ótimas teorias e decidiu compartilhar a que encontrou essa semana. De acordo com ela, é provável que o sonho de criança dele tenha sido encenar alguma das cenas clássicas de Mad Max. Ou de qualquer filme da franquia interminável de “Velozes e Furiosos”, principalmente o 57. 

E ele riu sobre isso assim que ela falou, porque estamos na droga de uma caminhonete e falar sobre qualquer coisa aqui dentro é compartilhar seus pensamentos. E ele ainda tem uma bolsa enorme com vários objetos úteis, nem ousei perguntar como ele conseguiu tudo aquilo. Menos uma caneta e um livro, parece que não é tão útil quanto pensava, não é mesmo?

De alguma forma, Violet começou a ser uma das pessoas mais decentes que acabei encontrando no fim do mundo. Imagino que ela saiba falar nossa língua, mas ela tem estado quieta a maior parte do tempo. Também tenho estado quieta, já que Smug e Sophia são extremamente barulhentos. 

Às vezes me esqueço que ela pode ser apenas uma garota assustada com o fato de ter quinze anos e ter que se virar nesse mundo. Eu já estava assustada quando tinha dezessete e precisava decidir toda a minha vida. Ela é quieta, mas tenho certeza que apenas esconde a inteligência que tem. Os olhos dela nunca param em um lugar só, é como se estivesse sempre analisando e solucionando todos os cenários possíveis. 

E disso eu entendo. Por isso tenho receio do que ela possa fazer. O medo e o desespero, somados à inteligência e ambição que brilham nos olhos dela podem gerar um resultado não muito adequado à nossa situação. Talvez a abordagem de Soph seja melhor, principalmente se começarmos a encontrar gente mais nova que nós três. Ainda que tenhamos medo, estamos tentando ser civilizados e acreditamos que tudo vai dar certo no fim. Sim, até mesmo eu penso assim. 

Mas é algo que você acaba adquirindo com o tempo, fico preocupada se com Violet tudo é apenas um desastre e o momento em que vivemos é a única coisa que pode ser possível e plausível no futuro. A gente acaba tendo essa tendência de viver apenas o momento, intensamente. Principalmente agora que ela está presa com três pessoas estranhas rumo à um conto de fadas impossível que encontraremos no fim do arco-íris.

Ah sim, fugimos da barbaridade que era aquela tribo de nômades e descobrimos que Smug estava apenas de passagem. Aparentemente, de acordo com a fonte super confiável que ele e os rumores que ele ouviu pelo caminho são, existe um lugar em que todos estão a salvo. Era algum nome bíblico que não me lembro agora. Apesar de não gostar de carros, vamos seguindo para lá. 

E apesar de não gostar de ouvir Sophia rindo e se apoiando no banco da frente para conversar com ele como se ele fosse o cara mais interessante da faculdade dela, sentar no banco traseiro é pior. No fim, só espero que a gente consiga chegar são e salvos em algum lugar em que Sophia consiga filosofar em um jardim, Smug consiga um nome decente para apresentar os objetos antigos em alguma galeria ou museu e que Violet consiga ser uma adolescente feliz. No fim, só quero que estejamos todos bem.

— Kassie

 

*****

 

24/10/2684 02:54AM, ALGUM LUGAR

Você já cansou, eu já cansei e todos nós já estamos fartos da “sociedade pós-apocalíptica”, como diria Sophia. Mas, como já virou tradição, venho a vós comunicar irritadamente que a sociedade é uma droga e que confiar nas pessoas não vale a pena. Você dá a mão e eles roubam seu braço.

— Kassie


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