Under Our Stars escrita por StarSpectrum


Capítulo 11
Capítulo XI - O Devorador de Sóis




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Encaro aquela criatura que acabara de surgir do círculo. Ela se contorce por inteira, e as pessoas à sua volta aumentam a voz. A criatura-serpente abre sua boca enorme, revelando um grande olho no centro que olha para todos os lados daquela sala, e então trava seu olhar em minha direção, fazendo minha espinha gelar. Em mais uma contorção, como se estalasse os ombros, ela então começa a rastejar rapidamente em minha direção!

"BÉRCAN ÁQUILI‼" – Ouço uma voz familiar gritar. Correntes vermelhas então surgem de um dos membros encapuzados, envolvendo a cauda da criatura e a puxando para trás.

A atenção da criatura volta para esse tal membro e avança em direção à ele. Todos os outros se afastam imediatamente, e o membro atacado salta para trás para desviar das garras da criatura. Em seu salto, o capuz cai para trás e eu descubro que é a Flann!

"Flann!" – Grito, e ela olha em minha direção, com seus olhos escarlates.

Em um giro a criatura tenta chicotear Flann com sua cauda, mas ela é mais rápida e consegue desviar. Um dos encapuzados dispara uma espécie de bola mágica na criatura, que grita e vira sua atenção pro atacante. Vejo Flann correr imediatamente até mim, e em um giro, ela puxa um de seus papéis de dentro do seu vestido, morde seu dedo e faz um único risco no papel, imediatamente o colocando no chão.

"BÉRCAN UÁRIN!" – Flann grita, e uma imensa parede vermelha e transparente surge adiante, nos separando da criatura que está lutando contra os outros encapuzados. Ela suspira, e se vira pra mim – "Starlight! O que raios você tá fazendo aqui?!"

"E-eu?! Te pergunto a mesma coisa! Você sumiu depois que entramos na vila!" – Digo, indignada.

"Preciso te acompanhar por acaso?!" – Flann desvia o olhar de mim e foca na batalha adiante – "Pensei que você conseguisse se virar sozinha. Não sou sua babá."

"Claro que consigo! Mas eu queria ficar com você! E não ser deixada de lado assim...!"

Flann se vira pra mim, seus olhos estão verdes - "Por que você quer tanto minha companhia?! Primeiro sair da sua vila comigo, depois querer ficar andando comigo por Novak!" – Ela volta sua atenção para a batalha adiante – "Sinceramente, eu não entendo. Nem nos conhecemos!"

"Eu... eu pensei..." – Olho pra baixo – "Pensei que fossemos amigas..."

Flann fica em silêncio, e quando eu levanto a cabeça pra olhar pra ela, ela está com uma expressão surpresa no rosto. Ela abre a boca pra dizer algo, mas de repente a criatura bate com força contra a parede que Flann fez surgir. Os encapuzados voltam a atacar a criatura, e a batalha segue furiosamente. Flann volta a observar a batalha. Fico em silêncio por um momento, também observando.

"...afinal, que tipo de criatura é essa?"

"...Bakunawa. Um devorador de sol. Diferente do que o título descreve, eles só conseguem perseguir mana concentrada em forma de luz." – Flann suspira – "Meu plano era acabar com isso aqui e agora, mas..." – Ela cerra os punhos – "Era pra ele estar adormecido quando invocado. O que o acordou?!"

Coloco a mão no ombro de Flann, e ela olha pra mim – "...eu posso ajudar."

Flann me encara por um momento, depois me inspeciona de cima a baixo, dando um sorrisinho no final – "Você está de toalha."

Cruzo os braços, subindo um pouco a toalha – "A-ainda posso ajudar! Só me peça pra fazer algo que eu não precise pular!"

Flann dá uma leve risada – "...tudo bem, fazendeira. Você tinha me pedido treino. Vamos ver o que você pode fazer sem minha ajuda." –Em um piscar seus olhos mudam de cor, novamente vermelhos escarlate. Ela puxa algo de dentro de seu vestido, um punhado de papéis, os mesmos papéis com símbolos que ela usou antes – "Aqui. Sua primeira lição."

"Isso é pra...?" – Conto os papéis. São cinco.

"São talismãs. Você vê o círculo de invocação, não vê?" – Ela aponta para o grande círculo no chão e eu concordo com a cabeça – "Há uma estrela de cinco pontos desenhada nele. Coloque um talismã em cada uma dessas pontas." – Concordo com a cabeça novamente – "Vai dar um leve choque, mas eu sei que você aguenta. Vou distrair o bakunawa enquanto isso."

Flann faz alguns movimentos com as mãos e a parede acaba se desfazendo. O bakunawa, que antes estava com o foco nos encapuzados, imediatamente se vira na nossa direção assim que a parede se desfaz. Ele se rasteja rapidamente em nossa direção, ignorando os golpes mágicos que leva dos encapuzados. Flann então puxa duas adagas de trás de seu vestido, escondidas no laço que o prende, e corre rapidamente até a criatura, e em um único giro, ela faz um corte bem em seu braço, o fazendo gritar. O monstro então começa a se rastejar atrás de Flann. Essa é minha deixa.

Corro até o círculo mágico, e coloco um dos talismãs em uma das pontas da estrela, e de repente um grande choque percorre minha mão quando encosto no círculo. Leve choque o caramba! Balanço a cabeça e corro até a outra ponta, colocando outro talismã e levando mais um choque.

"Não!" – Uma voz masculina grita enquanto corro para a terceira ponta – "Você não deve fazer isso!" – Olho pra quem está falando, e é um dos encapuzados, olhando pra minha direção.

Com um movimento dos braços suas mãos brilham em azul, e ele lança uma rajada de gelo que percorre todo o chão na minha direção! Não sei por que ele está tentando me impedir, mas eu que não vou deixar! Seguro os talismãs em uma mão e me foco pra concentrar minha energia na mão direita. Aponto a minha mão na direção da rajada, e consigo soltar uma grande explosão que consegue impedir a rajada de gelo! A palma da minha mão começa a doer, mas eu ignoro e continuo a correr na direção da terceira ponta.

"O fogo!" – O encapuzado grita – "Ela controla... o fogo!"

Não sei o que esse cara está falando, e nem me importo agora! Coloco o talismã na terceira ponta e corro para colocar o quarto. Vejo que Flann está conseguindo manter a criatura ocupada! Chego na quarta ponta e coloco o talismã, sentindo um choque mais forte do que os anteriores. Só falta o último! Corro na direção da última ponta, até que caio com tudo no chão. Algo... algo agarrou a minha perna!

"ISSO!" – Aquele encapuzado louco grita – "ISSO! É ÓTIMO‼! O SOL ESTAVA MAIS PERTO DO QUE ACHÁVAMOS‼!"

Olho pra trás, uma mão está saindo de uma abertura dentro do círculo, e está segurando minha perna! A abertura cresce mais e mais, e vejo que outro monstro está saindo de lá de dentro, um igual a outra serpente! Sua boca horrenda se abre lentamente. Olho adiante, falta tão pouco pra chegar até o último círculo! Começo a me arrastar com todas as minhas forças, mas a criatura me puxa. Olho pra trás, e vejo sua boca aberta, com aquele olho me encarando bem fundo.

"Me... larga!" – Começo a chutar a mão da criatura, mas ela só aproxima sua boca cada vez mais – "ME LARGA‼" – Chuto mais forte e sinto a sola de meu pé começar a esquentar – "ME. SOLTA‼!" – Em um chute, uma explosão é liberada da sola do meu pé, uma explosão forte o bastante para fazer a cabeça desse monstro sumir.

O corpo do monstro começa a se desfazer e cair dentro da abertura no círculo. Sem tempo pra pensar, me arrasto, agarro o talismã e coloco na última ponta da estrela. Um choque ainda mais forte percorre meu corpo todo, sinto uma dor imensa. Percebo que a criatura que Flann estava enfrentando parou de lutar e agora está se contorcendo por completo no chão. Flann olha em minha direção e corre até mim, me estendendo a mão para me levantar, soltando sua capa e capuz e me cobrindo... Olho pra trás, e percebo que a toalha havia caído nesse último arrasto.

"...obrigada." – Sussurro, mas acho que Flann não me ouviu.

"O círculo! Ele não pode se fechar‼" – Aquele mesmo encapuzado que havia tentado me impedir começa a correr na direção do círculo mágico.

Um outro encapuzado respira fundo e então cospe uma grande onda de água cheia de lama na direção do outro, o fazendo cair no chão e ficar preso.

"Kaeru!" – Uma outra encapuzada diz – "O que você pensa que está fazendo?!" – Essa encapuzada corre para ajudar o seu companheiro caído.

"Kaeru?!" – Digo, surpresa.

"O sol... íamos encontrar o sol..." – O encapuzado no chão diz, repetindo e repetindo. Do que ele está falando...? Olho pro círculo mágico, e percebo que a abertura está fechando, e o círculo está se desfazendo.

"Amaru." – Kaeru diz – "Você ainda pode parar isso. É loucura." – Amaru...?

"...não." – Amaru responde – "Você pode parar isso. Eu não desisti ainda, sua covarde." – Amaru agarra seu companheiro caído e puxa algo brilhante do bolso. Olho direito, e percebo que é uma rosa brilhante. Ela começa a correr em direção à um dos cantos dessa sala. Flann imediatamente puxa uma faca escondida em seu vestido.

"Pare." – Kaeru diz, levantando a mão para a Flann.

"...se eles escaparem..." – Flann diz.

"Eu sei. Eu vou arcar com as consequências." – Kaeru diz.

Amaru amassa aquela rosa, visivelmente sangrando, e então a assopra. As pétalas brilham ainda mais e formam um círculo à frente dela, formando uma espécie de portal rosado e brilhante. Amaru dá uma última olhada na direção de Kaeru antes de atravessar pelo portal, que se fecha logo em seguida. Nós três soltamos um suspiro.

Ouço um barulho. Procuro de onde vem e vejo que é do corpo daquele bakunawa que parou de se mover. Flann começa a andar em direção ao corpo daquele bicho. Eu a sigo. No meio do caminho, Kaeru entra em minha frente.

"Dora, eu... espero que você possa me desculpar pelo o que aconteceu aqui." – Ela diz, com uma voz suave, e encarando o chão.

"A-ah, tudo bem, pelo visto você e a Flann estão do mesmo lado." – Digo, fechando mais o manto em que Flann me cobriu – "Eu queria saber se—"

Kaeru levanta a cabeça, me encarando. Seus olhos, antes amarelados, agora estão da cor vermelho escarlate – "Me faça um favor." – Ela me encara, e de repente tudo começa a sumir, tudo a não ser ela – "Será que você poderia esquecer tudo o que aconteceu aqui e ir pra casa?" – Ela diz, e sinto uma grande dor de cabeça.

"E-eu..." – Tento dizer algo, mas a dor está me atrapalhando. Forço as palavras pra fora – "Posso... até tentar esquecer o que houve aqui, mas... ainda não vou voltar pra casa."

Kaeru fica com uma expressão de surpresa, e minha dor de cabeça cessa imediatamente – "...como?"

"Ah. Esqueci de te avisar, Kaeru..." – Flann diz, abaixada perto do bakunawa – "Isso não funciona com ela."

Kaeru se vira pra Flann – "Não funciona?! Mas isso funciona com todo mundo!"

"E com ela não. Por isso ela está comigo." – Flann diz, enquanto abre a boca do bichão. Eca.

Kaeru volta a olhar pra mim, com seus olhos amarelos dessa vez. Ela me inspeciona de cima a baixo, e então se vira pra Flann – "Zalmon disse que ela disparou fogo, mas ela não parece um dos Fajra. Nem um pouco, pra ser sincera..."

"Você já viu um Fajra por acaso?" – Flann pergunta.

"...não." – Kaeru responde.

"Foi o que eu pensei. Olha, não sei porque o seu chefe disse que o poder da Starlight é fogo, por que não é. Ainda estou pensando no que é mas—"

"Espera, Starlight?" – Kaeru pergunta e eu imediatamente engulo seco. Ela se vira pra mim, com uma expressão zangada – "Você me disse que seu nome era Dora!"

"Eu não disse nada!" – Digo – "Eu não consegui dizer nada! Toda vez que eu tentava falar o que estava acontecendo, você me interrompia!"

"Te interrompia?!" – Kaeru fica em silêncio um pouco e parece se acalmar – "Huh. Acho que interrompi mesmo. Pode me desculpar...?" – Ela diz, abrindo um sorrisinho.

Suspiro. – "Claro, não t—"

"Ótimo, porque você vai ficar me devendo cinco moedas de prata pelo banho." - Ela vira de costas e caminha na direção de Flann. Huh...

Sigo Kaeru até onde Flann está, e ela acaba se levantando e se virando pra gente.

"E então?" – Kaeru diz – "O grupo fez o ritual errado?"

"Não há falhas na pele, ou marcações arcanas. Ele conseguiu se materializar por completo, e seu comportamento não estava fora do comum." – Flann diz, cruzando os braços – "Acredito que tenha sido uma causa externa."

"Causa externa...?" – Pergunto, e ambas olham pra mim – "Desculpe, eu só estou confusa... Aquele círculo mágico, essa criatura... pensei que os usui eram os únicos capazes de gerar um monstro assim."

"Por que ela sabe disso?" – Kaeru pergunta – "Ela não é uma—"

"Caçadora. Eu sei." – Flann explica – "Não ainda." – Ela dá um passo adiante, se aproximando de mim – "Usui são uma das possíveis causas do surgimento desses monstros. Alguns grupos de má índole podem concentrar suas forças pra corromper a mana de uma região e criar uma criatura dessas."

"O que?! Por que alguém faria isso?!" – Pergunto, indignada.

"O mundo não é mil maravilhas, Star. Sua pequena aventurazinha pra fora da sua vila vai te mostrar isso." – Flann responde.

Percebo que Kaeru está com um talismã em mãos, escrevendo nele com a ponta de seu dedo e deixando cair no bakunawa, que começa a queimar, assim como os usui.

"...pode não ser mil maravilhas. Mas, eu acredito que eu possa ajudar onde eu posso. Assim como você!" – Digo, e Flann arregala os olhos – "Hoje eu aprendi uma coisa nova sobre mim! Eu posso soltar meu poder pelos pés!" – Começo a levantar o pé mas percebo que o manto vai mostrar mais do que eu gostaria se eu o fizesse – "E-e ainda mais! Consegui soltar o meu poder pela mão sem muito esforço! Se bem que ainda dói um pouco..." – Começo a olhar pra minha mão e me concentro pra fazê-la brilhar e soltar faíscas - "Eu sei que eu posso não saber de muita coisa, mas eu ainda posso ajud--" 

Em um instante, o bakunawa em chamas se levanta com um berro, e com dois golpes precisos manda Kaeru e Flann voando para longe, sem que consigam reagir. Ele salta na minha direção, com a boca aberta e dentro, seu olho me encarando bem fundo. Em reação, aponto a palma da minha mão pra ele e começo a me concentrar. Antes que eu possa causar a explosão, o monstro é atingido por algo vermelho brilhante, e é arremessado para o lado, bem na parede dessa grande sala. Quando ele cai, as chamas o consomem por completo e ele desaparece. Olho na direção de onde veio aquele algo vermelho, e vejo Flann de pé segurando um arco escarlate. O arco desaparece lentamente e Flann quase cai de joelhos no chão, parecendo ter problemas pra se aguentar de pé. Imediatamente corro até ela.

"Flann, tá tudo bem?!" – Pergunto, ajudando-a a ficar de pé. Ela se estabiliza e se solta de mim, acenando com a cabeça.

"Estou bem." – Ela olha adiante.

Sigo seu olhar e vemos Kaeru se levantando, caminhando até nós. Ela coloca a mão no ombro de Flann.

"Flann, você vai ficar bem?" – Kaeru pergunta, e Flann concorda. Flann parece... estranha. Ela fica encarando o chão. Kaeru me puxa de leve pra longe de Flann – "Acredito que ela precisa de um tempinho. Vou te levar pra onde deixei suas roupas."

Kaeru me guia pras escadas de onde vim, e eu constantemente olho pra trás pra ver como Flann está. Vejo ela se sentar no chão com as pernas cruzadas antes dela sair do meu campo de visão quando eu subo as escadas. Kaeru e eu seguimos pelo corredor e de volta até a recepção.

"Oh!" – Kaeru diz, e eu acabo esbarrando de leve nela quando ela para de repente – "Boa tarde! Como posso ajudá-los?" – Clientes?

"Boa tarde, estamos procurando pela minha amiga, ela veio aqui mais cedo..." – Reconheço a voz imediatamente.

Dou um passo pro lado, entrando na recepção e vejo Ori e Doran na frente da mesa. Na verdade, vejo só suas cabeças.

"Ori?! Doran!" – Digo, e imediatamente dou a volta na mesa.

"Star!" – Ori diz e se aproxima. Eu abro os braços pra abraçá-lo, e ele imediatamente pula pra trás – "AH! Você tá pelada!" – Ele cobre os olhos num instante.

"Ah!" – Seguro o manto com força pra me cobrir por completo, sinto minhas bochechas ficarem quentes – "Desculpe! Kaeru!" – A chamo e ela sorri pra mim, mas sinto que ela tá gostando da minha vergonha – "Minhas roupas!"

Kaeru se abaixa na mesa e então se levanta com minhas roupas dobradas, junto com minhas botas logo em cima. Eu imediatamente pego e Kaeru aponta pra porta a sua esquerda. Eu corro pra lá, entrando no corredor e começo a me vestir rapidamente. Solto um suspiro de alívio ao ver que o vestidinho que minha vó costurou ainda serve. Me viro pra entrar novamente na recepção mas topo com Doran batendo a cabeça bem na minha virilha.

Ele geme de dor e levanta a cabeça, e vejo seus olhos assustados – "Opa." – Ele vira de costas e anda rapidamente pra perto de Ori. Estranho.

Me aproximo dos dois – "Pronto. Melhor, não?" – Digo, e Ori concorda com a cabeça.

"Você demorou um bocado, e o Doran disse que se você demora tanto, geralmente te chutam pra fora." – Ori diz.

"Ah, eu demorei por que—" – Sinto um gelado na minha espinha enquanto falo. Levanto a cabeça e olho pra Kaeru, que está me encarando com seus olhos escarlate. Volto a olhar pro Ori e pro Doran – "Porque... a água tava bem quentinha e gostosa." – Solto uma risada nervosa.

Doran dá uma risada também – "Acho que era porque a inhaca tava difícil de tirar, né?"

"N-não foi nada disso!" – Digo, sentindo minhas bochechas ficarem quentes.

Todos começam a rir, e eu só consigo ficar em silêncio. Que raiva...

[...]

Depois da sessão de gargalhadas, me despeço de Kaeru, saindo da casa de banho junto ao Ori e Doran. Percebo que o céu já está alaranjado. Os dois vão em minha frente, eu sigo logo atrás. Andamos até voltarmos a onde estávamos, no banco frente ao bar. Ori se senta no meio do banco e dá alguns tapinhas em seu lado, pedindo pra que eu sente também. Eu o faço, me sentando ao seu lado e Doran se sentando do outro. Ficamos em silêncio, Ori balança as pernas inquieto, e Doran boceja e se espreguiça. Olho pela rua, vendo algumas pessoas passarem. Kaeru não parecia nenhuma delas... me viro pro Ori.

"Ori, eu—" – Começo a falar e Ori imediatamente olha pra mim me encarando com os olhos bem abertos. Certo... - "Eu nunca vi alguém como a Kaeru. O que exatamente ela é?"

"Kaeru?" – Ori pergunta.

"A moça da casa de banho." – Respondo.

"Ah! Eu achei que ela é bem... normal? Acho que todos os humanos são assim." – Ele responde.

"Ori, ela não é humana." – Digo – "Ela tem... pernas de sapo."

"Eu sou uma criança, eu não vi as pernas dela por cima do balcão!" – Ele faz biquinho. Fofo.

Doran grunhe alto de repente – "Vocês têm olhos por acaso?!" – Ele diz, meio irritado – "A garota não tem nariz e vocês ficam aí se perguntando se ela é um sapo ou não?!"

Nós dois encaramos o Doran, que está cutucando os dentes com a unha.

"...Doran?" – Ori diz, e Doran olha pra ele – "Ela tinha nariz sim, cara."

"Não tinha não." – Doran retruca.

"Ela tinha sim." – Ori responde e eu concordo com a cabeça.

"Gente, ela não tinha nariz!" – Doran protesta.

"Se ela não tinha nariz, como ela respirava?" – Ori questiona.

"Pela boca, sei lá!" – Doran responde.

Não aguento e começo a soltar umas leves risadas que eu estava segurando até agora – "Gente, ela tinha nariz sim!" – Digo.

"Três contra um." – Flann diz de repente, me fazendo quase pular do banco. Eu olho pra trás e ela está de pé nos encarando – "Doran, procure um médico. A visão dos ratatoskr é ruim, mas não tão ruim." – Ela se aproxima de Doran e dá uma leve puxada na borda de seu capuz - "Ou talvez seja isso que está te atrapalhando."

Doran joga a cabeça pra trás tentando se afastar de Flann, e ele força o capuz um pouco mais pra baixo – "Como você sabia que eu era um ratatoskr?!"

"Você acha que seu capuz protege seu rosto, mas com o ângulo certo..." – Ela se inclina e cutuca a ponta do nariz de Doran com o dedo – "Esse seu nariz rosado aparece." - Ouço Doran grunhir alto em resposta.

"Não encosta no meu nariz..." – Ouço Doran dizer baixinho. Então Doran é um ratatoskr... Me pergunto o que Kaeru é...

Flann se levanta e olha pra mim com um leve sorriso. Ela se aproxima e coloca uma mão na cintura – "Acho que você esqueceu de algo."

"Hm?" – Inclino a cabeça. Do que ela tá falando? Começo a apalpar a mim mesma, eu estou com tudo aqui. As roupas, o laço de cabelo que ainda tenho que amarrar... Ah não – "A bolsa de dinheiro! Eu esqueci o dinheiro!" – Me levanto imediatamente e vou em direção a casa de banho.

Flann me agarra pelo braço e eu olho pra ela – "Calma lá agitadinha." – Ela diz, e puxa meu saquinho de moedas de dentro do vestido – "Tá bem aqui."

Ela me entrega, e eu fico sem palavras. Abro um sorriso, olho pra ela e dou um abraço bem forte – "Obrigada, obrigada, obrigada!"

"Não sabia que você era gananciosa." – Flann responde dando uns tapinhas em minhas costas.

Me afasto – "Não é isso, é que... minha vó trabalhou muito pra ganhar isso. Ela me disse pra gastar com juízo mas..." – Penso no que Doran disse pra mim – "Talvez eu nem mereça ter."

"...Star. Sua vó trabalhou pra te dar uma chance de ver o mundo que sempre quis, e você ainda acredita que não merece?" – Flann dá um sorriso – "Pelo que me contaram na sua vila, você sempre ajudou sua vó. E ter esse nível de humildade..." – Ela solta uma leve risada – "Você é uma boa garota. Fique tranquila. Isso é um presente."

Sinto meu coração se aquecer, e não posso evitar de esboçar um sorriso – "Obrigada, Flann."

"Disponha. É pra isso que amigas servem." – Ela dá uma piscadinha e eu sinto minhas bochechas ficarem mais quentes, meu coração bate um pouco mais rápido – "Está ficando tarde."

"Tem uma estalagem logo no meio da rua." – Doran diz, e olhamos pra ele. Ele aponta pra estrada principal da vila – "Eu não vou pagar dessa vez."

"Tudo bem." – Flann responde – "A Star paga."

"Eu o que?!" – Retruco imediatamente.

"Você é a que mais tem dinheiro aqui." – Ela diz, com um sorrisinho.

Acabo grunhindo, mas não posso negar, é verdade – "Você tem razão, pode deixar que eu pago."

"Posso comprar doces?" – Ori pergunta, com olhos pidões.

"Claro, a Star paga." – Flann diz.

"Esp—"

"Eu preciso de um chapéu, esse capuz me incomoda." – Doran me interrompe, segurando o capuz.

"A Star pode pagar por isso." – Flann continua.

"Mas eu n—"

"Vocês estão com fome? Acredito que a Star possa cobrir pela comida também." – Flann diz e se vira pra mim com um sorriso no rosto.

Ori acaba gargalhando, logo depois Doran. Flann esconde a risada dela com a mão. Eu... eu tô completamente perdida.

[...]

Doran nos guia até a estalagem, e dentro vejo bem mais gente do que no resto da cidade. O cheiro de álcool é bem forte, preciso até tapar o meu nariz. O pessoal conversa bastante também, mas é tanta gente falando que não consigo entender nada. Chegamos até o estalajadeiro, um grande Ya-o-gah está limpando os copos. Por mais que eu tenha visto imagens nos livros que lia, ainda é bem amedrontador ver um grande urso de pé. Doran toma a frente do grupo e fica na ponta dos pés frente ao balcão.

"Quatro quartos!" – Ele levanta a mão, colocando quatro dedos finos pra cima.

O estalajadeiro fica em silêncio por um momento – "...Dois." – Ele diz, com uma voz grossa e pesada.

"Dois?!" – Doran se vira pra nós – "Parece que vocês vão ter dormir em outro lugar, sinto muito." – Ele dá de ombros.

"Mas, podemos dividir os quartos!" – Digo, e olho pro estalajadeiro – "Não podemos?" – Ele concorda com a cabeça – "Podemos!"

"Eu não vou dividir meu quarto com ninguém!" – Doran reclama.

"Então durma você fora." – Flann retruca.

"Gente, gente." – Ori se manifesta – "Eu tô cansado, Doran tá cansado, tá todo mundo cansado. Que tal assim: Eu e o Doran ficamos em um quarto, Star e Flann ficam no outro." – Acabo corando quando Ori diz isso.

"Eu não vou dormir contigo Ori! Tu ronca muito!" – Doran aponta o dedo pro Ori.

"Eu ronco?! E tu que anda enquanto dorme??" – Ori retruca, também apontando o dedo.

Flann se aproxima de mim e cochicha – "Pra duas crianças, esses dois parecem um casal de velhos." – Acabo concordando com a cabeça. É verdade. Ela dá um passo adiante e coloca as mãos na cabeça dos dois – "Crianças. Por que não fazem as pazes, e dormem no mesmo quarto como bons amigos?" – Ela diz, se abaixando e ficando na altura dos dois. Ela ficou de costas pra mim, então não consigo ver a expressão no rosto dela, mas Ori e Doran parecem surpresos. Eles ficam quieto por um momento.

"...tá bom." – Eles dizem ao mesmo tempo, olhando pra baixo. Flann logo se levanta.

"Dois quartos, por favor." – Flann diz pro estalajadeiro.

"...vinte moedas de prata." – O estalajadeiro diz.

"Vinte?!" – Doran reclama – "Isso é—" – Flann coloca a mão na frente de Doran, e ele se cala.

Flann puxa um saquinho de moedas de dentro do vestido, e começo a questionar quanta coisa ela carrega lá dentro. Ela entrega o saquinho pro estalajadeiro, ele abre, olha dentro, e depois guarda o saquinho no bolso. Ele pega duas chaves de baixo do balcão e entrega à Flann, que se vira pra nós e aponta com a cabeça pras escadas levando ao segundo andar. Nós a seguimos até o segundo andar, e vejo umas três portas até o fim dessa sacada. Flann para e entrega uma das chaves ao Ori, que puxa Doran pra segui-lo até uma das portas. Eles logo entram. Flann então abre a porta perto de nós duas, e me deixa entrar primeiro.

Dentro, um quarto simples, de madeira, com uma janela no meio e duas camas em cada lado do quarto. Dois criados-mudos, com dois vasos com flores amarelas e um lampião, um grande tapete circular no meio, e... mais nada. É isso. Um simples quarto.

"Eu gostei." – Digo, e vou até uma das camas. Me sento nela, é confortável.

Flann fecha a porta e se senta na outra cama. Ela solta o laço do cabelo, e sinto meu coração bater um pouco mais rápido. Ela de cabelos soltos... é linda. Ela leva sua mão até o pescoço, passando a mão nele enquanto mexe a cabeça.

"Dia agitado..." – Ela diz, suspirando – "Duas caçadas."

"Isso... não é o comum?" – Pergunto, enquanto tiro minhas botas.

"Comum? Comum são os usui aparecendo uma ou duas vezes por semana. Duas criaturas tão fortes assim... tem algo errado com a mana do ambiente. Algo está a corrompendo facilmente." – Ela diz, tirando suas sandálias.

"...você tem ideia do que seja?" – Pergunto.

Flann fica em silêncio por um momento – "...não. Ainda não. Mas eu vou encontrar o motivo." – Ela diz, e vejo que ela cerra os punhos.

"Eu posso ajudar." – Digo, abrindo um leve sorriso.

Flann olha pra mim, e também sorri – "Você ainda vai precisar treinar bastante."

"E você vai me ensinar, não vai?" – Pergunto, e ela concorda com a cabeça - "Isso!" – Digo levantando as mãos pra cima em comemoração. Me deito na cama, e solto um suspiro de alívio – "Eu vou ser uma caçadora..." – Cochicho pra mim mesma.

"Bom, melhor descansarmos." – Ela diz. Eu levanto a cabeça, e vejo que ela pegou o lampião, e logo apaga sua luz.

Me ajeito na cama, me cobrindo com o cobertor. Me viro pra Flann, e consigo ver de leve que ela também está deitada, virada em minha direção.

"...Flann?" – Digo, e ela só grunhe em resposta – "Posso fazer uma pergunta?"

"...você já fez." – Ela responde.

"Hahah..." – Digo sarcasticamente – "Você... tem alguém especial na sua vida?"

Vejo que ela abre os olhos, o verde de seus olhos consegue brilhar na escuridão – "...que tipo de pergunta é essa?"

"É uma pergunta..." – Tento esconder meu rosto com o cobertor – "É estranho, eu sei..."

Ela suspira – "...você quer dizer amigos, família...?"

"Não..." – Sinto minhas bochechas ficarem quentes, meu coração começa a acelerar.

"...eu tenho alguém, sim." – Ela diz, e eu prendo a respiração em reflexo. Então ela tem alguém... - "É um garoto, mora lá na minha vila natal..." – Ela suspira – "Não nos falamos desde que eu comecei a caçar monstros."

"... e isso é há quanto tempo?" – Pergunto.

"...já parei de contar os anos." – Ela se vira pro teto – "E você, Starlight?" – Ela pergunta, e eu agarro o cobertor mais forte – "Quem é a pessoa especial na sua vida?"

"Ah!" – Solto uma risada nervosa – "V-você sabe, tem minha avó, Sully, o meu amigo de infância, a Momoka, o Frederick é conhecido da família desde pequena... Tem bastante gente!" – Solto mais uma risada nervosa.

"Star, você entendeu." – Ela se vira pra mim, e mesmo não vendo, eu sinto que ela está com aquele sorrisinho dela – "Quem?"

"...eu..." – Suspiro – "Não tem ninguém... não encontrei a pessoa certa, eu acho..." – Fico em silêncio por um momento – "...eu geralmente não penso muito nisso, mas... acho que nunca fui amada desse jeito por ninguém. E não... não acho que eu tenha chegado a sentir isso por alguém."

"Entendo." – Flann diz – "Não se preocupe tanto com isso. Você é bonita, engraçada e determinada. Vai aparecer alguém." – Ela solta uma leve risada – "A mulher certa vai aparecer na sua vida."

"...obrigad— Espera, como você sabe que eu—"

"Boa noite, Star." – Ela se vira de costas, e eu fico completamente corada. Como... como ela sabe?!

O silêncio toma conta do quarto. Eu também me viro de costas, pra parede. Sinto meu coração batendo forte, e também sinto um... pesar. Tiro o travesseiro da cabeça e o abraço forte. Mesmo com Flann logo ali no mesmo quarto, eu me sinto... sozinha. Sinto meu corpo ficar cansado, até que lentamente todos os pensamentos vão embora...  

 

 


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