O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 4
∾ Você sabe o que eu sinto, você também sente.


Notas iniciais do capítulo

Primeiramente, bem-vindos de volta!

Bem, em segundo, espero que tenham sentido saudades do rapaz Nirav, pois ele está de volta!

Espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/793402/chapter/4

O dia estava agitado em Florencia, a semana acabava de começar e a vida na cidade tornava a florescer sob um sol brilhante e impetuoso no contínuo céu azul. 

Apesar de ser época de férias para a maioria dos universitários, a rotina seguia normal para o restante da cidade. Comércios abriam suas portas, departamentos tiravam a poeira de seus escritórios, carros tumultuavam as ruas e um fluxo crescente de pessoas ia e vinha trombando nas calçadas. 

Dentro desse movimento, Nirav traçava seu rumo, cortando por entre a multidão de corpos que invadiam a calçada, fazendo-a parecer ainda menor. Florencia não tinha uma grande população, mas durante a semana todas as pessoas da cidade pareciam sair de casa. E para uma cidade pequena, aquela multidão parecia quase ilógica. 

Já há alguns dias, Nirav estava na jornada de tornar sua casa novamente habitável. Não era uma pessoa desorganizada, visto que foi a primeira lição que aprendeu quando decidiu morar sozinho. Entretanto, o último período da faculdade somado a estágios e trabalhos informais, afetaram sua capacidade de manter as coisas no lugar. E a necessidade também se fazia por sua mãe estar planejando visitá-lo no fim do mês, por conta de sua formatura. 

Portanto, em vez de aproveitar o início de suas férias e o fim de sua faculdade, passou os dias cuidando da casa. Repôs a compra do mês, comprou produtos de limpeza, retirou a maior parte da bagunça dos cômodos, assim como colocou todas as roupas para lavar e secar. No fim, estava tão exausto que não conseguia fazer mais nada além de ficar estirado na cama por um longo período. Mesmo assim, sua jornada não havia chegado ao fim. Decidiu comprar roupa de cama nova, alguns tapetes e até mesmo plantas para decorar a casa. E era por isso que estava enfiado no meio do furdunço nas ruas de Florencia. 

Já fazia alguns meses desde a última visita de sua mãe, então queria deixá-la não só confortável, mas fazê-la se sentir em casa. Ela constantemente reclamava de como sua casa era vazia, parecendo um alojamento provisório e precário. Era uma mulher que gostava de casa viva com decoração, cores e plantas. Ele devia isso a ela, era o mínimo, depois de quase cinco anos vivendo com o básico. Talvez esse cuidado a fizesse ir mais vezes visitá-lo, apesar de saber que sua singela casa não era o real motivo da distância de Adhira. 

Nirav estava acostumado a ver a mãe ocupada, quase nunca tinha tempo para si mesma, sempre se doando toda à família e ao serviço. Era Adhira o alicerce daquela família que sempre pareceu tão inconsistente. 

Sua família nunca pareceu ter um ponto fixo, um lugar para chamar de lar. Desde quando ainda não era nascido, seu avô e sua mãe estavam sempre em constante mudança, de cidade em cidade, tentando se estabilizar. Embora um grande artista e tecelão, Samar sentiu as represálias de ser um imigrante e nunca parecia bem-vindo em algum lugar por muito tempo. Isso continuou a refletir em sua mãe, que desde muito cedo teve de se desdobrar para tentar ajudar o próprio pai. 

Para tentar encontrar alguma segurança, Adhira se casou cedo e acabou engravidando. Por um tempo, a chegada de Nirav pareceu estabelecer um marco naquela família, contudo não durou muito. August, seu pai, era mais um fardo do que amparo. No fim das contas, Adhira não era só sua mãe, mas também seu pai. 

Quando a idade avançada de seu avô deu sinais mais graves, precisaram se estabilizar em alguma cidade. Nirav tinha catorze anos quando sentiu, pela primeira vez, o que era criar raízes sólidas. Até então, sua vida era uma constante oscilação. Novas escolas, novas pessoas, sempre mudando em todas as direções. Porém, se essa solidez deveria ter trazido prosperidade para sua família, Nirav não sabia dizer com precisão. Mesmo assim, com a ajuda de sua mãe, conseguiu traçar seu próprio horizonte. E como bom nômade que era, teve de se mudar para Florencia. 

A cidade trouxe o equilíbrio que sua família tanto falhou em procurar. Em Florencia, Nirav encontrou lar. Todo o seu medo de ser um sujeito instável em uma vida inconsistente pareceu desaparecer. Aquele lugar era sua casa, como um sonho que havia se tornado realidade. Por isso, era importante fazer com que sua mãe sentisse o mesmo. 

O bazar de artigos para casa era um lugar antigo, com um cheiro forte de incenso e poucas janelas. Tinha dois ventiladores de teto barulhentos, mas bem eficientes. Durante a espera para o atendente separar seus pedidos para a entrega em domicílio, Nirav procurou um ponto estratégico para conseguir receber vento de ambos. 

Durante a tarde, o calor era sempre mais forte. Com a movimentação que estava nas ruas, o vapor parecia ser ainda mais intenso, subindo pelas paredes e sufocando os transeuntes. Mesmo vestindo roupas frescas, um short azul escuro de tecido leve e uma camiseta branca, Nirav sentia o calor incomodar sua pele. E a tentativa de tomar banho antes de sair para se refrescar parecia em vão, o mais provável era ter de tomar outro banho quando chegasse em casa. 

Não demorou muito para que o atendente retornasse com sua nota provisória de entrega. Era um homem mais velho e baixinho, com óculos na ponta do nariz. 

— Pode ser que a entrega demore até amanhã. Estamos um pouco sobrecarregados de pedidos. — ele explicou, recebendo o pagamento de Nirav. 

— Sem problemas. — com um sorriso simpático no rosto, se despediu. — Obrigado! 

Então só restava comprar as novas roupas de cama. No bazar, separou três tapetes, sendo dois grandes para a sala e quarto e um pequeno para a entrada. Também comprou algumas plantas artificiais. Já imaginava que sua mãe iria implicar, mas não tinha dinheiro para comprar plantas verdadeiras e nem tempo para cuidar delas. 

Na verdade, estava gastando o pouco que tinha restado do seu último trabalho casual. Como ainda não tinha emprego fixo e os estágios da faculdade acabaram junto com sua grade, Nirav precisava descolar biscates e serviços informais para conseguir manter a casa. Afinal, sua mãe já se sobrecarregava para ajudar pagando as parcelas do financiamento do lugar. Por consequência, Nirav estava sempre correndo atrás de todo tipo de oportunidades. O que, apesar de parecer cansativo, rendeu boas recomendações para possíveis entrevistas de emprego futuras. 

O sol permanecia espetaculoso no céu, brilhando como só ele podia brilhar, tornando difícil qualquer tentativa de olhar para cima. Sob sua luz as ruas ainda estavam bem agitadas, embora o fluxo pareceu diminuir depois do horário de almoço. Ainda circulando junto das pessoas, Nirav sempre encontrava um ou dois rostos conhecidos em seu caminho. E entre um encontro e outro, pegou-se imaginando se reencontraria uma determinada jovem de olhos expressivos e risada fácil. 

Quando decidiu ir naquele luau, imaginou que estaria apenas conhecendo uma outra pessoa como qualquer outra. E, no entanto, ao conhecer Juno, percebeu o quão errado estava. 

Juno era, de fato, uma garota comum, mas tudo o que seria banal em outra garota, tornava-se marcante nela. Era como o sol no céu. Difícil de olhar, mas impossível de ignorar. Tudo em Juno era verão. O seu olhar enérgico, o jeito extrovertido de se comportar, as mãos que estavam sempre gesticulando, o sorriso exagerado exibindo os dentes e o som de sua risada calorosa. Cada detalhe dela ficou marcado em Nirav e, por isso, não conseguia esquecê-la. 

Naquela madrugada, quando chegou exausto em casa, precisou tomar banho frio para conseguir dormir. Seu corpo estava eletrizado, ardendo do calor que irradiava do toque e do corpo dela. Não conseguia parar de pensar em como ela dançava. Como aquele corpo se mexia, seguindo cada ritmo da música, envolvendo-se nele e deslizando por suas mãos até a ponta de seus dedos. Estava tão hipnotizado naquela figura que não conseguia descrever a sensação, mas se ousasse tentar, parecia como segurar uma tempestade, se isso fosse possível. 

Sentiu-se um tanto tolo por não ter pedido seu contato ou marcado alguma outra atividade. Na verdade, só não queria ultrapassar os limites, pois Juno namorava. Nicholas era o nome dele, pelo que Theo tinha comentado, e eles estavam juntos há dois anos. Entretanto, de qualquer forma, ele não conseguia ignorar a atração que compartilharam. O que fazia Nirav se questionar sobre o que teria acontecido se tivessem se conhecido anos atrás. 

Sem respostas para suas fantasias equivocas, ele precisou se apressar. A tarde avançava sem esperar por seus devaneios, ele ainda precisava terminar as tarefas que planejou e a loja que procurava estava a duas quadras de distância. 

Só por estar apressado, a quantidade de carros no cruzamento pareceu aumentar, obrigando-o a esperar impacientemente para atravessar. Só depois do que pareceu uma eternidade, alcançou o outro lado da rua, diante da portaria de um sebo antigo de livros usados. E toda a sua pressa pareceu dissipar no ar como vapor. 

Como uma brincadeira do destino, Juno estava lá dentro. Sua vista seguiu a silhueta que transitava pelos corredores, entre as estantes, distraída pelos vários títulos. No primeiro instante, Nirav pensou estar apenas enganado com outra pessoa, mas ela era inconfundível. 

Os cabelos estavam presos pela metade de forma despojada, caindo por seu rosto e seus ombros. Parecia ainda mais casual com a regata preta, larga e cavada, por cima de um short jeans rasgado e com chinelos desbotados. Tinha o dedo indicador pressionando os lábios ao ler alguma sinopse. Apenas o vislumbre de sua presença, fez Nirav ignorar suas tarefas e entrar naquele sebo. 

O ambiente estava abafado, algumas outras pessoas também circulavam pelos corredores. Um aroma inebriante preenchia o local e Nirav percebeu que gostava daquele cheiro. Entrou sorrateiro, sem chamar atenção. Por trás de uma prateleira, passou os dedos nos livros dispostos, a espiando através do vão dos patamares. Um sorriso zombeteiro pendeu em seus lábios. 

Ela parecia distraída garimpando os livros, mas pareceu perceber que estava sendo observada. Olhou de um lado para outro, focando no homem atrás do balcão, que parecia ignorar todos os clientes. Sem nada encontrar, retornou ao livro em suas mãos, ela o trocou por outro na prateleira. 

— Lembro de ter lido esse na escola, mas... — ela comentou sozinha, analisando a capa do livro, girando-o entre as mãos. 

— Está falando sozinha, é? — com a voz baixa, ele murmurou ao passar pela estante que ela estava. 

Juno pareceu reconhecer sua voz, pois deu uma risadinha ao escutar o comentário, mas quando o procurou ao redor, ele não estava em lugar nenhum. Nirav deu apenas um indício de sua presença através das brechas das prateleiras, instigando Juno a procurá-lo. E ela o fez com o sorriso estampado nos lábios. 

Ela se aproximava e ele se esquivava, passava para o corredor adiante, fugindo e escondendo-se dela. Conseguia escutá-la contendo sua risada ao persegui-lo. Em um momento, quase se encontraram para valer. Conseguiram ver o rosto um do outro, mas Nirav fugiu antes que Juno pudesse alcançá-lo. 

Como dois jovens arteiros, eles investiram naquele jogo de esconder. Nirav despistava Juno entre os corredores, camuflando-se entre as estantes e atentando-se pelas brechas dos suportes com livros. Juno o procurava pelos mesmos vãos, cortando desvios para tentar pegá-lo de surpresa, mesmo sem sucesso. Continuaram com a brincadeira até os corpos se chocarem em um corredor, de surpresa, fazendo-os rir. 

A aproximação entre os corpos foi tão íntima e súbita que Juno acabou derrubando alguns livros no chão. As pessoas ao redor os encararam com desgosto, principalmente o dono da loja, reclamando atrás do balcão. 

— Você vem sempre aqui? — ela perguntou brincando enquanto ele ajudava a colocar os livros no lugar. 

— Depois disso, provavelmente nunca mais. — a risada escapou sem querer dos lábios dela, fazendo-o rir também. 

Eles se afastaram da estante, mas permaneceram próximos um do outro. 

— Eu estava pensando em você agora mesmo. 

Enquanto Juno falava ao fazer contato visual, Nirav reparou um determinado brilho em seus olhos, como se suas pupilas estivessem se dilatando só de olhar para ele. 

— Engraçado... eu também estava pensando em você. — por estar preso naquele olhar, sua voz saiu mais baixa e ele não soube se ela conseguiu escutar o que estava dizendo. 

— Você sumiu depois do luau. 

— Ah, estive ocupado esses dias. Minha mãe está vindo para a cidade. — falar de sua mãe o puxou de volta para a realidade, retirando-o daquele breve transe. — Sabe como é, deixar a casa apresentável. 

— É, eu posso imaginar. — ela disse, arqueando as sobrancelhas de um jeito divertido. 

— E eu achei que você já teria ido embora. — mentiu apenas para puxar assunto, as garotas comentaram que ela ficaria durante as férias. 

— Na verdade, vou ficar as férias inteira. Então, vai ter que me aturar um pouco mais. 

— E você fala como se fosse difícil. 

— Não deveria falar o que não sabe! 

Sorrindo, ele ajeitou os cabelos e passou os dedos pela barba. 

— Não esperava te encontrar aqui, mas é bom ver você. 

Ela adiantou-se. 

— Você está muito ocupado? 

— Hm, não. Não exatamente. — as roupas de cama podiam esperar, afinal. 

— Quer dar uma volta? — o sorriso nos lábios dela era um convite inegável. 

Terminaram de ajeitar os livros em seus devidos lugares e partiram juntos. O dono do sebo pareceu aliviado em se livrar daquela perturbação. 

Lado a lado, passeavam pelas ruas ainda movimentadas. O horário de pico do fim do dia se aproximava e mais pessoas apressadas para chegar em casa circulavam entre eles. Para evitar toda aquela correria, seguiram em direção a praça do centro da cidade. Provavelmente também estaria movimentada, mas sem a pressa e a necessidade de se manter em movimento. 

Durante o trajeto até lá, Juno voltou a puxar assunto: 

— Pensei que morava com sua mãe.  

— Morava antes de me mudar para cá por conta da faculdade. — explicou, colocando as mãos no bolso do short. — Não era muito prático ir e vir de lá para cá. E ela também tem a família dela lá, além de cuidar do meu avô. 

Samar conseguiu casar-se novamente, antes de Nirav nascer, arrumando irmãos para acompanhar sua mãe. Entretanto, em sua atual situação, Adhira parecia a única filha disposta a cuidar do pai cansado. 

— O que há com ele? 

— Idade avançada. A vida sempre cobra os anos vividos. — Nirav balançou os ombros, procurando alguma resposta. — Ele é forte, já passou por muita coisa. Saiu do país dele com minha mãe ainda criança, nunca conseguia ficar por muito tempo no mesmo lugar, teve de lutar para conseguir conquistar seu espaço e construir sua família... 

— Nossa, quanta coisa ele deve ter visto, quanta história ele deve ter para contar, todas essas experiências para compartilhar... 

— De fato. Ele sempre me contou coisas incríveis, aprendi muita coisa com ele. — o assunto o fazia pensar em seu avô, já fazia bastante tempo desde que tinha o visitado pela última vez. — Infelizmente, agora ele está bem cansado e com a memória falha. 

— Eu sinto muito. — ela disse com sinceridade, como se entendesse aquelas palavras de modo pessoal. — Não deve ter sido fácil para você deixar os dois. 

— Eu quase desisti de vir. Minha mãe me fez mudar de ideia, afinal eu ganhei uma bolsa de estudo disputada e não teria outra chance como essa. 

— Dilemas que a vida nos impõe. 

Eles alcançaram a praça e se sentaram por um momento, apreciando a companhia um do outro. Era um lugar simples, com algumas árvores que criavam sombras refrescantes. Alguns táxis estavam estacionados ao redor, outros acabavam de chegar ou sair. Outras pessoas, assim como eles, procuravam um refúgio naqueles bancos e sombras. 

Dali era possível ver a antiga estação de trem, há muito tempo desativada. E também escutar o barulho do rio que cortava a cidade. 

— E você? — Nirav sondou, fitando-a. — Como conheceu a cidade? 

Juno se ajeitou no banco, sentando-se sobre uma das pernas para poder ficar de frente a ele. 

— Você não vai acreditar. É quase uma novela! 

— Vamos ver se a faculdade de cinema está valendo a pena. — comentou, fazendo-a rir. 

— Bem, minha avó teve duas filhas em seu casamento, mas a relação não era das melhores. Depois de várias traições, meu avô foi despachado de casa apenas com a roupa do corpo. Acontece que ele se recusou a sair de mãos vazias. Então, raptou a minha tia, que era adolescente na época. — ela teve de interromper a história para rir do semblante chocado de Nirav. — Teria raptado minha mãe também, mas ela teve de sair de casa alguns momentos antes para resolver algumas coisas. 

— Sem chance! 

Ela riu, dando de ombros. 

— Trinta anos depois, por conta de redes sociais e uma foto antiga, elas se reencontraram. E aqui estou eu, me divertindo às custas desse desastre. — concluiu, apoiando o cotovelo esquerdo no encosto do banco e mexendo sem seus próprios cabelos. 

— Não é possível... — Nirav meneou com a cabeça, rindo de nervoso. — Está mesmo falando sério? 

— Sim! Eu não teria tanta criatividade para inventar uma história como essa! 

Eles riram, apesar de parecer errado, e se entreolharam. Novamente, o brilho em seus olhos reapareceu. Sua respiração vacilou diante daquele olhar. 

— Já parou para pensar que se não fosse uma bolsa de estudos e um reencontro familiar, nunca teríamos nos encontrado? 

Juno sorriu, admirando–o. O sol parecia brilhar em seu rosto, iluminando cada detalhe de sua pele. Ele sentia que podia perder a si mesmo em uma visão como aquela. 

— Sabe o que é engraçado? — ela começou levando a mão direita até o espaço vazio entre eles, seus dedos quase tocaram a perna dele. — Eu sinto que eu já conheço você. Como se já conhecesse você desde sempre, como se nós já... 

— Eu me lembraria. 

— É, eu também. 

Um pequeno silêncio pousou entre eles, impulsionando-os a continuarem o passeio. Não era um silêncio ruim, muito menos constrangedor, era até confortável. Não precisava estar falando o tempo todo para aproveitar a companhia dela. Apenas de estar ao seu lado já parecia suficiente. 

Juno adiantou-se até a estação de trem, chamando por ele. Apesar de estar em situação de abandono, o lugar ainda tinha seu charme. Era amplo, com vários bancos dispostos pela plataforma. A construção era em tijolos vermelhos, já quebradiços pelo toque do tempo. A melhor parte eram os trilhos que ainda reluziam à luz do sol, disfarçados entre os cascalhos de pedra por todo o redor. 

— Já esteve aqui? — perguntou ao vê-la entusiasmada com o lugar. Escorou-se na coluna ao seu lado, podendo contemplar o lugar. 

— Da outra vez que estive na cidade. — Juno desceu para a parte dos trilhos, chutando alguns cascalhos. — Queria ter tido a chance de andar de trem. Devia ser incrível! 

Ele sorriu admirando tanto ela quanto as fantasias dela. Seu corpo esguio parecia beber da luz do sol. Podia ficar ali apenas a contemplar a vista que Juno proporcionava aos seus olhos, mas decidiu acompanhá-la em uma breve caminhada pelos trilhos. 

— A linha está desativada há muito tempo, mas, pelo que me lembro, tinha um projeto de reconstruir o trem para passeios turísticos. 

— Sério? O que aconteceu com o projeto? 

— Acho que nunca saiu do papel. — respondeu, percebendo a frustração dela. 

— Por onde esses trilhos passam? — ela divagou, contemplando ao redor. 

— Bem, levam para fora da cidade. Passam pelo interior antes, até fora do perímetro urbano. Maior parte é vegetação e o rio. 

— Oh, então devem passar por onde estive de bicicleta com as meninas! — ela arqueou as sobrancelhas e, em seguida, suspirou. — Nunca pedalei tanto! Fazia anos que eu não montava em uma bicicleta, minhas pernas ainda estão acabadas! 

Ele riu ao prestar atenção em seu comportamento. Ela sempre tão expressiva. Era tão fácil ler seus sentimentos esboçados em suas caras e bocas. 

— Foram até onde? 

Juno descreveu o lugar. Era uma rota conhecida, no interior da cidade, na parte da estrada de chão. Muitas vezes passou por lá com seus amigos para passeios também. Algumas vezes de bicicleta, outras caminhando. Na verdade, era um trajeto comum para passeios no geral. 

— Acho que invadimos alguma propriedade privada, mas não foi nada demais. — retornaram para a sombra da plataforma, sentando-se em um dos bancos dispostos. — Você teria gostado de lá. 

— Não foram na cachoeira? — geralmente, passavam por lá tendo o objetivo a cachoeira. 

Ela o encarou com olhos bem abertos. 

— Tem uma cachoeira?! — seu semblante o fez rir. 

— Sim. É um pouco mais distante de onde vocês foram, em uma trilha estreita próxima a vegetação. 

— Ninguém me falou de cachoeira alguma! — ela estava realmente frustrada. 

Dando de ombros, ele sugeriu: 

— Se você quiser, nós podemos ir até lá. É um pouco longe, mas você ia adorar. 

— Está tentando me atrair para o meio do mato com você? — Juno exibiu um olhar desconfiada, provocando-o. 

— Eu? Não! — meneou avidamente, escutando-a rir. Estava encantado por aquela risada. — Podemos convidar o resto de pessoal para ir também. 

— Depois que esconderam isso de mim? — bufou. 

— Certo, elas merecem. 

Com o fim da tarde se aproximando, eles retomaram o rumo de volta para o centro da cidade. As ruas já estavam mais vazias, permitindo que eles andassem lado a lado, sem pressa e interrupções. O clima também estava mais ameno, com o pôr-do-sol se aproximando, mas ainda estava bem abafado. 

Juno prendeu os cabelos em um único nó, que não resistiu muito tempo, desmanchando-se pelo impacto de seus passos. 

— Você falou de sua mãe e seu avô, mas não falou de seu pai. — Juno indagou de repente. 

Nirav ponderou por um momento, respirando fundo. 

— Meu pai foi embora quando eu tinha quinze anos. — respondeu sem demais rodeios. 

— Nossa, eu sinto muito. — reduzindo os passos, ela o olhou. Pararam na esquina de um departamento. Por um instante, ela tocou o pulso dele, tentando transmitir conforto. — Mas vocês ainda têm algum tipo de contato? 

— Raramente. — balançou a cabeça, prosseguindo. — Nosso relacionamento nunca foi muito bom. Ele tem uma visão de mundo muito diferente da minha. E expectativas para minha vida que eu também não compartilho. 

— Trabalho, casamento, essas coisas? 

— Também, mas desconfio que ele só não gosta da pessoa que eu sou. 

— Não imagino isso sendo viável. — murmurou, arrancando um sorriso dele e ficando satisfeita com isso. 

Em seguida, deu brecha para ele continuar. 

— Ele sempre quis que eu fosse como ele. Diz que eu não tenho ambição nenhuma, que vou ficar preso nessa cidade medíocre, mas é ele quem tem ambições demais, um verdadeiro oportunista. O que afetou também a relação dele com a minha mãe. Além de péssimo pai, também era um péssimo marido. 

Nirav não tinha vergonha de admitir quem era seu pai e o motivo de desgostar dele. Quando lembrava tudo o que August fez com sua mãe, a ira em seu peito ardia como uma brasa. 

Parecendo notar sua fúria, o que antes era um toque em seu pulso transformou-se em um aperto de mãos. Os dedos de Juno seguraram os seus com firmeza. Mais do que suficiente para Nirav sentir um turbilhão de emoções.  Seu peito já não estava mais inquieto pelo rancor para com seu pai, mas pela euforia do toque de Juno. 

— Não consigo imaginar como deve ter sido difícil. — ela parecia frustrada por não ter as palavras certas para confortá-lo, sem saber o quão efetivo era seu toque. — É uma pena que ele não tenha visto a pessoa incrível que você é. 

Por um momento, ele brincou com os dedos dela antes de soltar sua mão. Um sorriso pendeu em seus lábios. 

— Como sabe que eu sou essa pessoa incrível? — questionou, retomando subitamente os passos apressados. Ela teve de quase correr para alcançá-lo. 

— É só intuitivo. 

— E quanto ao seu pai? 

Juno fez uma careta confusa. 

— Que pai? — ela deu um riso nasal. — Nunca conheci meu pai. Aparentemente, ele achava que paternidade era só uma escolha e não estava muito interessado na tarefa. 

— E você nunca quis ir atrás dele? 

— Não. — deu de ombros, indiferente. — Ele me rejeitou, por que iria querer me ver? 

— Entendo. — as palavras dela conseguiam descrever sentimentos que também tinha para com seu próprio pai. 

— Já pensei na possibilidade, mas nunca me convenci. Toda vez que penso sobre isso, chego à conclusão de que não faria a mínima diferença. Construí uma vida inteira sem ele. Não precisei dele antes e não preciso agora. 

Evitando a ameaça de um silêncio pesaroso, Juno cutucou Nirav com o cotovelo.  

— Viu, não é só você que tem privilégio de ter um péssimo pai! 

— Olha, pelo menos eu tive um! — brincou, cutucando-a de volta. 

Juno esboçou uma feição de ofensa, com os lábios abertos em incredulidade. 

— Nossa, minha intuição estava errada sobre você! Você é uma péssima pessoa! 

— Meu pai não estava tão errado assim, não é mesmo? 

Com uma risada exagerada, ela o empurrou com o ombro. Ele aproveitou para atravessar a rua, deixando-a sozinha. 

Por um momento, seguiram a mesma direção, mas cada um em seu lado da calçada. Trocavam olhares através da rua, dando risadas e fazendo brincadeiras, até que as ruas pareceram divergir, separando os destinos. 

O sol já estava se despedindo, dando uma última amostra de sua luz em um céu que começava a escurecer. E as pessoas que já abandonavam as ruas, deixavam a cidade mais silenciosa e vazia. 

— Nos vemos por aí? — Nirav gritou para o outro lado da rua. 

— Bem, você me deve um passeio de bicicleta! 

Ele riu desconcertado, passando a mão pela barba. 

— Droga, achei que tinha esquecido! 

— Nunca duvide da memória de uma mulher! 

Nirav observou Juno dar as costas e seguir seu próprio caminho. Ela ainda girou sobre os próprios calcanhares para acenar a ele uma última vez. 

Conforme ela se afastava, Nirav sentia uma inquietação crescer em seu âmago. Percebeu-se perdido em um beco sem saída, sem saber o que fazer para sair dele. Entretanto, não havia mais volta. 

Qualquer que fosse aquele sentimento, não estava pedindo licença e nada parecia capaz de freá-lo. Nirav sentia-se prestes a cometer um grande erro. 

Ele suspirou profundamente, coçando os cabelos, tentando entender o que estava acontecendo. E só então se lembrou das roupas de cama que ainda precisava comprar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bem, primeiro ponto de vista do Nirav e eu amei escrevê-lo. Foi bem interessante se aprofundar na história dele e de sua família. Ele e a Juno passam por situações paralelas, mesmo sem saber.

O que posso dizer mais... há muitas coisas nas entrelinhas!

Espero que vocês tenham gostado. Até o próximo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Caminho das Estações" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.