O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 14
∾ Eu estive esperando o amanhecer, mas toda a luz já se extinguiu.


Notas iniciais do capítulo

Bem, chegamos ao último capítulo dessa primeira fase, diante de um fim abrupto, com uma ruptura agressiva.

Então, o que sobra para nossos personagens?



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Por toda a casa havia um escuro tão denso quanto o silêncio, quebrado apenas por suspiros amuados pela dor. Dentro da penumbra, escondia-se o rapaz com o tronco nu, vestindo apenas uma calça de moletom amarrotada. Estava deitado sobre o sofá, onde tinha passado a noite, embora já acordado há um longo tempo. 

Não se lembrava de como havia chegado em casa ou quem havia o trazido. Não se lembrava de muita coisa, na verdade. Mesmo assim, ainda tinha a sensação de estar preso na noite anterior, revivendo um círculo de repetições que era incapaz de se lembrar. Era torturante. 

Observava pela janela o dia que não parecia ser dia. Estava tão nublado que ainda parecia não ter amanhecido, reforçando a sensação de prisão. Os únicos resquícios de evidência do dia eram as pessoas que passavam de um lado para o outro, conversando com outras ou apenas sozinhas, caminhando de encontro com seus afazeres diários. Aos poucos, uma chuva começou a despencar, encharcando as ruas e os desavisados. 

O cheiro do café recém passado impregnava a casa, trazendo, ao menos, uma fonte de conforto ao lar vazio e silencioso. Havia acordado, apesar da noite mal dormida, preparado seu café, lavado o rosto e tomado um banho. Mesmo assim, retornou ao sofá para se deitar enquanto observava a vida seguir enquanto se sentia estagnado.  

Ainda se sentindo preso na noite anterior, na casa de Lou em uma bendita festa qualquer,  Nirav estava cansado e o corpo reclamava da noite estranha, mal dormida e dolorosa. Sua cabeça doía, parecendo pesada demais para ser suportada. E seu rosto latejava, sensível ao toque depois do soco recebido.  

A agressão havia deixado uma marca das grandes. A mancha roxa estendia-se desde sua pálpebra superior até a bochecha, no lado esquerdo do rosto. Seu supercílio estava cortado, graças a aliança que seu agressor carregava no dedo anelar. Era difícil para manter o olho aberto, a pele repuxava e a dor beliscava. Nunca tinha recebido um murro tão bem colocado, com tanta força, ainda assim, não era, nem de longe, o que mais machucava Nirav. 

A noite anterior parecia um grande borrão, depois do soco que o nocauteou. Portanto, não conseguia lembrar de muitas coisas, além de dor, confusão e gritaria. A última coisa que se recordava era de abrir os olhos, encarar pessoas ao redor, perguntar por Juno e obter uma única resposta. "Ela partiu", dissera uma voz desconhecida e abafada, antes de Nirav tornar a fechar os olhos. 

Apesar da sensação amarga que sua saída brusca deixou, Nirav não conseguia culpar Juno por ter partido. Entendia a necessidade de se afastar para tentar impedir o pior. Era uma situação delicada e, por mais que desejasse ter Juno ao seu lado, sabia que ela precisava deixá-lo para controlar Nicholas. 

Claro que ainda se lembrava de tudo o que aconteceu antes. A conversa estranha na varanda, tentando selar o fim de algo que insistia em não acabar. A breve dança que tornava a aproximá-los, demonstrando o quão inútil era tentar se afastar. Os sussurros inacabados de Juno. Intromissão de Nicholas. A confusão. Sua confissão. Olhando agora, parecia um grande circo armado, prestes a desabar com a sua ajuda. 

Por um momento, também se lembrou de todo o resto envolvido. Lembrou-se de Louise, em especial. Sabia que ela havia escutado sua confissão, descoberto a verdade que tanto tentou omitir. Não conseguia imaginar o que ela estaria sentindo, se tentasse, imaginava ser como levar um soco também. E, dessa vez, do seu punho. Então, sentia-se não só preocupado, mas culpado. Principalmente, por ainda não conseguir pensar em outra coisa, senão Juno. 

No entanto, o celular mantinha-se ao seu lado, ainda inútil e silencioso. Apesar das várias ligações de seus amigos preocupados, o único contato que parecia importar já não respondia mais suas ligações. Já havia perdido a noção de quantas vezes tentou ligar para Juno, falhando em todas as tentativas, sem resposta alguma do outro lado. Mesmo assim, não conseguia evitar a necessidade de falar com ela. Precisava fazer vale a pena tudo o que aconteceu. Não podia ser fim, não ainda. 

Precisava dizer várias coisas, e, principalmente, também escutá-la. Porque, no fundo, sentia que ela queria confessar-lhe algo. Suas falas abruptamente interrompidas, suas palavras silenciadas, seu silêncio surpreendido. Havia ali, em todas aquelas nuances, a necessidade de dizer algo. E ele queria escutar a verdade de seus lábios, sem mais interrupções. Nem mesmo que fosse a última vez. 

Sendo assim, queria dizer tudo o que foi impedido dizer, mesmo que fosse apenas para pedir desculpas por colocá-la em uma situação tão delicada, expondo-a não só ao namorado, como todas as pessoas ao redor. Até mesmo pedir desculpas por insistir tanto, como alguém que ainda não entendeu o "não". Só não seria capaz de retirar o que disse antes. Havia entregado a verdade e jamais seria capaz de contradizê-la. Estava apaixonado por Juno. Diria quantas vezes fosse necessário e não tinha medo de Nicholas. 

Apesar das demais adversidades, Nirav sentia-se esperançoso. Mesmo quando nenhuma ligação sua foi atendida, nem quando seu número pareceu bloqueado e a foto de perfil dela no contato já estava nula. Tentou uma última vez e, ainda sem resposta, levantou-se determinado a encontrá-la. E foi quando precisou vestir alguma roupa mais apropriada ao frio que fazia do lado de fora que, encarou, no espelho, a marca em seu rosto mais uma vez. 

Não estava melhor do que a última vez que olhou, na verdade, parecia ainda mais escura, protuberante e feia. Era difícil encarar aquela marca sem se perder em sentimentos ambíguos e miseráveis. Havia raiva, indignação e humilhação. E dentro de tudo isso, ainda havia o medo de estar cometendo mais um erro. Um medo que o dizia para tentar esquecer tudo e desistir. O medo de já ser tarde demais. 

Olhando o lamentável reflexo a sua frente, tantas coisas vieram à tona em sua mente. Era possível ver a indignação de sua mãe ao ver seu rosto ferido e descobrir a verdade por trás da cicatriz que se formava. Ou fácil imaginar a decepção de seu pai, que sequer teria coragem de olhá-lo. Até conseguia enxergar em seu próprio semblante o de Leo, mesmo que ainda fosse incapaz de lembrar de seu rosto, sendo capaz de entender seus impulsos tão desesperados. E se as possíveis indignações e decepções de seus pais o puxavam para trás, a coragem de Leo o empurrava para frente. 

Tentando ignorar o lamentável reflexo a sua frente, Nirav ajeitou os cabelos e vestiu um casaco velho e marrom sobre a blusa branca, depois da primeira calça jeans que encontrou, provavelmente a mesma que usou na noite anterior. Não importava como estivesse vestido, nenhuma roupa iria mascarar a mancha em seu rosto ou a lacuna da sua dignidade. Além de tudo, precisava se apressar, por algum motivo, sentia que precisava se apressar. 

A chuva e o vento o receberam com agressividade, porém afetuosidade. O vento frio bagunçava seus cabelos, que começavam a se encharcar e escorrer por seu rosto com seus cachos indefinidos. Sua barba tentava impedir o frio de chegar ao seu rosto, falhando depois de pouco tempo, tornando-se tão fria e úmida quanto o mundo ao redor. E mesmo que, em instantes, estivesse encharcado e tremendo pelo frio, Nirav foi capaz de aproveitar esse breve momento porque, aos poucos, começou a perceber um incômodo, como se algo estivesse prestes a dar errado. 

Não demorou para cada passo parecer hesitante em seguir seu rumo, temendo arrastar-se para um destino inevitável. Logo, tudo pareceu como um aviso que fazia seu âmago retorcer, progressivamente. Desde o vento até a chuva, cada particularidade daquele dia sombrio servia como alerta de que estava tudo dando errado, que ele resolveu ignorar ao continuar seguindo o caminho até a casa que tanto conhecia. 

No entanto, quanto mais se aproximava, mais incerto se encontrava. A esperança, pouco a pouco, transformava-se em uma estranha insegurança. Sentia como um nó em torno de sua garganta que, a cada passo adiante, parecia apertá-la mais e mais.  Agora, o medo parecia quase palpável, de modo que Nirav já não sabia se tremia por frio ou por puro nervosismo. 

Ainda assim, não foi capaz de desistir, pois se virasse as costas, estaria jogando fora a chance de ter Juno. E sentia que já não estava dispondo de muitas outras. Estava cansado de tentar suprimir um sentimento que, apesar de tão recente, o fez sentir de formas que nunca havia sentido antes. E que, talvez, desconfiasse nunca sentir igual, outra vez. 

Não podia ser o fim. Tudo o que compartilharam deveria valer alguma coisa, não podia ser apenas um equívoco qualquer. Cada conversa, risada, silêncio e toque que experimentaram. Cada momento que desperdiçaram juntos, lado a lado. Tudo isso merecia valer alguma coisa. O sentimento tão instantâneo e tão avassalador. O brilho tão intenso do olhar. Cada parte disso precisava significar alguma coisa. Não seria justo não significar nada. 

Não merecia ser o fim, não ainda. E se tivesse que ser, pelo menos, esperasse para que ele a segurasse nos braços mais uma vez. Uma última vez, poder ouvir o som da sua risada, sentir o sabor do seu beijo, contemplar o brilho de seus olhos. E se assim tivesse de ser, se tivesse de acabar, que antes pudessem ter um último instante, mesmo que para se despedir. 

Porém, subitamente já estava diante daquela casa pequena, silenciosa, ainda adormecida. A casa que trazia tantas memórias que se misturavam uma a outra. Memórias que pertenciam a alguém que já não lembrava mais e alguém que jamais seria capaz de esquecer. E, de repente, ele já sabia a verdade. 

Quando a porta se abriu, correspondendo ao toque das juntas de seus dedos, revelando Abigail com seu roupão, o mundo pareceu emudecer e desvanecer ao seu redor. A voz dela era abafada, como se ele estivesse ficando surdo. E, apesar de ser incapaz de escutar o que ela estava dizendo, conseguia entender o que havia sido dito.  

De alguma forma, a verdade já estava dentro de si e ele só estava tentando ganhar tempo para inventar alguma mentira grande o suficiente para se convencer do contrário. 

Juno havia partido. Sem se despedir, como se ele não fosse importante, sem merecer nem mesmo o seu adeus, ela o deixou e partiu. 

— Eu sinto muito. — foi tudo o que escutou Abigail dizer, percebendo o quão vazia eram suas palavras, ditas apenas pela boa educação recebida. 

Os olhos dela ainda estava analisando o ferimento de seu rosto, assustada, procurando entender o que havia acontecido. Talvez ainda enxergasse a má influência que acreditava ser para o próprio filho. Nirav sentiu raiva daquele olhar, mas sabia que sua raiva era generalizada, destinada a outra pessoa e não à miserável senhora que o encarava. 

— Já não importa mais. — respondeu, fungando o nariz, proibindo-se de chorar na frente dela. 

Ela tentou se aproximar, tocar sua mão. Em seu semblante havia uma piedade forçada, construída apenas com educação. A mesma piedade que encontrou tantas outras vezes quando ainda era Leo, não Juno. 

— Vai ser melhor assim. — ela insistiu, mesmo depois que ele recusou seu toque, se afastando. — Você sabe que sim. 

Não adiantava permanecer ali. De nada adiantaria sentir raiva de Abigail, como se ela o estivesse punindo. Não podia culpá-la, porque, no fim, não estava tão errada em rejeitá-lo. Mais uma vez, como um padrão, ele estava envolvido com alguém de sua vida e tudo terminava em tragédia. Primeiro, Leo. Agora, Juno. 

Conforme caminhava para longe, sob os olhos da mulher, Nirav sentiu-se perdido em sua própria cidade, desaparecendo dentro da chuva e do frio. As ruas pareciam largas demais, grandes demais, vazias demais. Parecia estar sozinho, procurando algum lugar para se esconder. Uma visão deplorável, ele sabia, mas já não restava mais nada. Só raiva. 

Sentiu o gosto de cada sensação, cada momento, cada lembrança, cada sentimento, amargando até se tornar apenas raiva. As lágrimas que ardiam em seus olhos, camuflando-se nas gotas da chuva, eram raiva. Os lábios tremendo, pálidos por conta do frio, eram raiva. Cada parte sua, naquele momento, era raiva. 

Estava tão empenhado a se convencer daquela ilusão que foi incapaz de enxergar o que estava bem diante dos seus olhos. Estava tão apegado a um sentimento tão imaturo que se deixou levar por uma ideia fadada ao fracasso. A verdade sempre esteve ali, ele apenas resolveu ignorar até ser tarde demais. 

Queria tanto acreditar que ela apenas tinha partido para evitar o pior quando, no fundo, sempre soube que ela nunca ficaria. Não por ele. Nunca houve espaço para Nirav. E ele, estúpido, acreditou que conseguiria fazer uma relação baseada em um erro dar certo. No fim, Juno nunca o escolheria. Como pôde ter sido tão ingênuo em acreditar que poderia ser possível? 

A pior parte era perceber como tudo tinha sido em vão e como nada tinha valor algum. Cada palavra que havia saltado de seus lábios, não queriam dizer nada do que disseram. Cada toque que veio de suas mãos, não eram tão calorosos quanto ele imaginava. Cada sorriso que iluminou seu rosto, não eram tão sinceros assim. Cada brilho do seu olhar não era nada, além de distração. Tudo era, na verdade, apenas uma pantomima criada para diversão dela, que fugiu quando a brincadeira deu errado. 

Para que serviu o que sentiram pelo outro? Por que, então, se apaixonaram? Do que adiantava todo esse sentimento? O que significava? E como ele poderia imaginar que tudo terminaria assim, mesmo sendo tão óbvio? 

Deveria ser fácil seguir em frente. Era apenas um sentimento impulsivo, tão recente quanto imaturo. Tinha de ser capaz, só não conseguia. Simplesmente, não conseguia apagar o que sentia. Não conseguia deixar de amá-la como ela havia feito. Talvez, nunca conseguisse, de verdade, deixar de sentir.  

E o que ele faria com todo esse sentimento, agora? Do que adiantava, se não podia ser dela e também não podia ser seu? 

Com o celular em mãos, Nirav permitiu-se admirar a foto de Juno uma última vez, antes de apagar. Esperava ter um último relance antes de deixá-la ir. O último relance que lhe foi negado de forma tão rude. 

A chuva respingava na tela, escorrendo pela foto. Ele a tocou com a ponta dos dedos, ainda insistindo em lembranças para amenizar a dor, porém sentia-se assombrado pelo mínimo vislumbre de seu sorriso. Era tarde demais. Por fim, sem mais delongas, apagou a imagem, numa tentativa de também apagar Juno e tudo o que ela representava. 

Mais uma vez, se perguntou, o que faria com todo esse sentimento? Ainda tentava se convencer de que deveria significar algo, mas, então, por que ela o abandonou como se não significasse nada? 

Permitiu-se chorar. Era a primeira e seria a última vez que iria chorar por Juno. Se tivesse de doer, então que doesse agora, pois estava disposto a tentar extinguir o que sentia. Estava, agora, fadado a cair no esquecimento e ser superado como o erro que era. E quando suas lágrimas secassem, então já não teria mais espaço para Juno, nem mesmo em sua mais remota lembrança. 

A partir daquele momento, por mais dolorido e difícil que pudesse ser, estava disposto a destruir o sentimento. Seria capaz de deixar tudo para trás, embora, no fundo, Nirav desconfiasse que algo tão intenso e natural como o que sentia por Juno nunca deixava de existir, mesmo quando já não há mais motivo para existir. 


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Notas finais do capítulo

Bem, por enquanto, um fim triste e amargo. Porém, temporário. Como costumo dizer: agora que já caiu, do chão não passa, então só resta levantar.

Nada melhor do que um bom período de tempo para esfriar os nervos, acalmar as angústias e, claro, amadurecer os sentimentos. Posso dizer que, o que vem por aí, é bem esperançoso.

Agora, depois de uma fase tão intensa, tanto para o bem quanto para o mal, só nos resta a avançar para próxima fase. E eu espero vocês lá!



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