O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 10
∾ É sempre mais escuro antes de amanhecer.


Notas iniciais do capítulo

Eu tardo, mas não falho!

Então, sejam novamente bem-vindos à carreta da desgraça. Escolham bem seus lugares, pois a ladeira continua descendo...



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Uma brisa fria adentrava pelas brechas da janela do quarto escuro, balançando as cortinas com leveza. Todo o silêncio parecia quebrado pelo lamurio do vento na rua, uivando ao encontrar os vãos das casas, como um fantasma perdido e vagando sozinho. Dentro do quarto, assim como no restante da casa, havia apenas o tom da respiração de sujeitos sonolentos. 

Juno ainda tinha o corpo quente do peso de Nicholas. Há alguns minutos, ele estava sobre ela, pressionando os corpos e sibilando de prazer. Agora, parecia ressonar baixinho, deitado de bruços, com o tronco exposto ao sopro frio da madrugada. 

Como esteve o dia e a noite inteira, ela continuava inerte. Embora tentasse compensar Nicholas de alguma forma, estava só atuando um papel para satisfazê-lo. E ainda que não fosse a primeira vez, ela se sentia culpada por não conseguir reagir.  

Enquanto todo o resto do mundo parecia dormir, a madrugada estendia-se diante da insônia de Juno. Estava tudo imerso em uma escuridão tão densa quanto os sentimentos que ardiam em seu peito. E, ao mesmo tempo que temia a escuridão, também estava presa nela. 

Ali havia o sentimento que crescia inevitável, que acontecia no escuro, longe da vista das outras pessoas. E em segredo, escondido da razão, continuava a arder como uma brasa transformando-se em uma fogueira, implorando para ser libertado, embora estive preso em tantos conflitos. 

Achou que conseguiria ignorar o suficiente até ser capaz de extinguir o desejo. Pensou que seria possível evitar o sentimento para retornar a sua realidade, esquecendo a vida dupla que havia construído. E apesar de estar sempre fugindo, não conseguia fugir de seus desejos. Como uma força da natureza, Juno não conseguia lutar contra o que sentia. 

Todo o seu ser, desde seus pensamentos até seus sentimentos, retornava até Nirav. Uma necessidade sufocante de reviver cada momento que vivenciaram juntos. Por isso, sua mente continuava reproduzindo cada detalhe daquela tragédia anunciada. 

Ainda estava naquela cachoeira, sentindo a água fria arrepiando sua pele, que logo seria aquecida pelo corpo dele. Conseguia sentir o seu beijo, o toque de suas mãos, o prazer que consumia seu ser. Era capaz de sentir a textura dos cachos de seus cabelos, escorregando pela ponta dos dedos. Ou então os fios de sua barba deslizando pelas unhas. Até mesmo o gosto de sua pele quando mordeu seu ombro. 

Cada lembrança tão vívida que era capaz de arrancar um suspiro dos lábios de Juno. Um suspiro que nem todos os esforços físicos de Nicholas foram capazes de conseguir. 

Por isso, ela fechava os olhos e se permitia reviver aquele sentimento. Retornava até Nirav e o envolvia em seus braços. Escutava o som do coração acelerado em seu peito. Sentia o cheiro de sua pele. Dizia a verdade a ele. Até que, no entanto, todas as lembranças de uma cachoeira voltavam a se transformar em uma mesa de bar com uma discussão provocada pela sua covardia. 

Então, mais uma vez, sentia-se desconectada da realidade, tentando fugir para dentro de si mesma, tal como fazia quando estava em casa, junto de sua mãe. A sensação que tanto tentava evitar, nunca a deixou de verdade, estava ali em Florencia. O único lugar em que se sentia livre, agora parecia ameaçado. E desconfiava que era ela mesma, a culpada. 

Seus atos impensados e impulsivos à arrastaram para o caos iminente que se criava, pouco a pouco tomando forma no horizonte. E, apesar de ter feito todo o caminho com seus próprios pés, já não sabia como retornar. Estava presa dentro de suas próprias escolhas e acabava atingindo outras pessoas ao seu redor. 

Havia arrastado Nirav junto consigo para dentro da bagunça, sem pensar em como isso o afetaria. Embora soubesse tudo o que poderia estar causando, não conseguia evitar os anseios que a levavam até ele e agora que precisava enfrentar as consequências dos seus atos, sentia-se uma covarde. 

A pior parte era a distância que se formava como uma sólida muralha entre os dois, projetando uma sombra tão espessa que parecia engolir cada um deles. Não podia culpá-lo por se sentir e agir de tal forma, afinal se havia alguma culpa, era toda sua. 

Não queria se afastar, muito menos agir como se ele fosse um completo estranho. Cada parte do seu coração parecia ruir ao se esquivar dele. Cada vez que fugia do seu olhar, sentia uma parte sua quebrar. Não queria evitá-lo, mas era tudo o que tinha para oferecer, mesmo que significasse a sua própria dor.  

Caso contrário, as consequências pareciam imensuráveis, pois quando olhava para o homem que dormia ao seu lado, sentia-o como um arame farpado, enroscado por todo o seu corpo. Era incapaz de escapar sem se cortar ou cortar quem estava ao redor. E era isso o que mais temia. 

Ainda que fosse cruel e covarde, a distância parecia o melhor por enquanto. Sabia que não conseguiria resistir ao que sentia, porém não podia amar Nirav no escuro. Queria dedicar a ele todos os sentimentos que guardava em seu peito, pois, de fato, o pertenciam. Entretanto, cada parte da existência desse segredo poderia resultar em um desastre. 

Lembrava-se de um breve término com Nicholas, no primeiro ano de relacionamento, por conta de suas inseguranças. E, embora tenha durado alguns meses, nunca pareceu um término apropriado. De alguma forma, Nicholas nunca a deixou. Sempre esteve lá, esperando por ela, sem intenção de deixá-la. 

E agora, talvez Juno estivesse pronta para tentar deixar Nicholas. Por Nirav, ela estava disposta a se cortar para se livrar do arame farpado. Por ele, sabia que valia a pena se cortar. Só precisava estar com ele e seria o suficiente para amenizar a dor dos cortes. 

Como um alarme, o toque do seu celular a despertou dos seus planos, fazendo seu coração acelerar. Notou–se esperando por alguma resposta de Nirav. Havia parado de responder suas mensagens, que já não eram muitas e eram apenas polidas. De qualquer forma, a menor possibilidade de ser ele, alimentava a coragem em seu âmago de fazer o que era certo. 

Com a saudade movimentando as borboletas em seu estômago, Juno sentia as mãos suarem quando pegou o celular. Pensava em como diria a ele o que estava prestes a fazer e tentava adivinhar como ele se sentiria ao saber. No entanto, a frustração veio como um tapa em seu rosto, pois de Nirav não havia nenhum sinal. Era apenas algumas mensagens no coletivo que tinha com as meninas. 

Um suspiro desapontado saltou de seus lábios enquanto as mensagens de Lou se amontoavam na caixa de entrada. Mesmo desiludida, decidiu abrir o grupo e checar o assunto. Já que não conseguiria dormir, talvez conversar pudesse ajudar. 

Parecia apenas mais uma das aventuras de Louise pelos bares da cidade, procurando um novo pretendente para se divertir. Estava em algum bar do outro lado da cidade e aparentava estar bastante bêbada. “Olhem quem eu encontrei perdido por aqui!”, dizia a mensagem junto da foto, que fez o coração de Juno parecer parar. 

Os cabelos estavam bagunçados. A barba estava desgrenhada. O semblante indicava embriaguez. Entretanto, sem nenhuma sombra de dúvida, era Nirav. Estava junto de Louise, ambos com as cabeças encostadas e exibindo línguas que quase se encontravam. Parecia ter sido ele próprio a registrar a foto, considerando os braços de Lou em torno de seu pescoço, abraçando-o com intimidade. 

Como uma dor física, dos pés à cabeça, o medo do que havia acontecido causava uma ruptura em seu corpo. Poderia ser só uma foto de colegas que se embebedaram juntos, mas era inocência demais ter tais esperanças. Ela não precisou ler as mensagens seguintes para saber a verdade. Mesmo assim, leu. 

A cada mensagem, Juno sentia o ar faltar em seus pulmões, sufocando-a com o choro engasgado. Estava paralisada, presa na foto e tudo o que não mostrava, porém não omitia. Também se sentia incapaz de piscar, pois perderia o controle das próprias lágrimas. 

Com uma pancada, o vento irrompeu pelas janelas, de repente. O susto pelo baque estrondoso arrancou-a do transe com violência. Com medo de que Nicholas acordasse, ela se levantou com cuidado, escapando na ponta dos pés. 

Diante da janela aberta, Juno permitia o vento arranhar seu corpo seminu e bagunçar seus cabelos. Como fumaça, toda a súbita coragem de tomar alguma decisão parecia dissipar no sopro frio do vento, bem diante de seus olhos. Não sentia frio, não sentia nada, exceto o vazio que se alastrava por seu âmago, sufocando em sua garganta, como se tivesse dedos longos o suficiente para estrangulá-la. 

Como um fantasma, vagava pela casa, fugindo do ar rarefeito do quarto para a varanda. Aos poucos, o chão sob seus pés parecia ceder, desmoronando junto com cada parte do seu ser. Todo aquele vazio… era o medo de perdê-lo ou a sensação de perdê-lo? 

Estava desolada, perdida, sufocando nos próprios sentimentos. Não tinha com quem falar. Ninguém sabia o que estava acontecendo. E não ousava a falar em voz alta a verdade que guardava. Estava inteiramente sozinha. 

E, apesar da mágoa causar a ruptura em seu ser, era a culpa que terminava de arruiná-lo. No fundo, Juno sentia a latência de uma verdade dura demais para encarar, mas impossível de ignorar. 

Se não tivesse sido tão covarde para dizer a verdade. Se não tivesse demorado tanto tempo para decidir fazer o que era certo. Tudo o que fez foi fugir, como sempre. E agora parecia tarde demais. Agora, todos os anseios que a levaram até ele, transformaram-se em receios que o afastava cada vez mais. 

Não conseguia suportar o peso de seus próprios sentimentos. Precisava de alguém para segurar seu corpo enquanto desmoronava. Porém, quem além da única pessoa que não podia ter? 

Observando a foto na tela de seu celular, Juno cogitou diversas vezes ligar para Nirav. Precisava escutar sua voz desmentindo toda aquela farsa, ouvir a sua risada ao revelar todo o mal entendido. Contudo, não tinha esse direito. Na verdade, não tinha nem direito a se sentir triste.  

Ignorando todas as consequências iminentes, Juno não hesitou em envolver Nirav em seus erros. Quando teve a chance de fazer o certo por ele, decidiu fugir para amenizar o peso em sua consciência. Preferiu insistir em convencer a si mesma de uma mentira a lutar pela verdade dos seus sentimentos. E ainda julgava estar no direito de se sentir traída.  

Por fim, terminou discando o número de sua própria mãe. Devia estar em desespero para recorrer a ela. Sabia que não encontraria nada além de indiferença. Também sequer sabia o que diria. Teria coragem de falar a verdade? Como diria? Simplesmente não sabia. Só manteve-se na linha pelo que pareceu uma eternidade. 

— Juno. — a voz cansada não demonstrou surpresa com sua ligação. Na verdade, parecia cansada demais para esperar o som da sua voz. — Está tarde. 

— Desculpe te acordar, eu só... — murmurou, sentindo seu queixo tremer pela vontade de chorar. — Eu não sei o que fazer, mãe. 

Olivia não respondeu, mantendo um silêncio polido, como se apenas fosse educada demais para desligar a ligação. Juno conseguia sentir toda a lacuna em sua relação com a mãe naquele silêncio.  

Era uma relação vaga, quase nula, sobrevivendo apenas pelas convenções sociais. Apesar de serem mãe e filha, elas não pareciam se conhecer o suficiente para escutar os lamentos e angústias uma da outra. 

— Eu causei tanto problema e agora não sei o que fazer para consertar. — Juno fungou o nariz, sentindo as lágrimas deslizarem por suas bochechas, contrariando todos os seus esforços para evitá-las. — Estou perdida em toda essa bagunça e tenho tanto medo do que pode acontecer. 

Novamente, silêncio. Juno não a culpava por não ter o que dizer, só percebeu que não encontraria acolhimento ali. Mesmo assim, por algum motivo, continuou falando em meio ao pranto: 

— Há tantas coisas que eu gostaria de contar a você, mas eu não consigo, então me desculpe. Eu só tenho medo de falar em voz alta e todo o caos vir à tona. Já não sou mais capaz de enfrentar meus próprios sentimentos. Cometi tantos erros que não sou capaz de confessar. E não sei como consertar. Na verdade, temo não ter conserto algum. Estou sempre fazendo tudo errado enquanto tento acertar. Eu tenho falhado com todo mundo e tudo o que consigo fazer é fugir. Eu estou sempre fugindo. E agora fugir já não parece o suficiente... Então, o que me resta a fazer? 

Não havia sentido em nada do que dissera. Quanto mais tentava explicar o que sentia, mais falhava em encontrar palavras. Precisava contar a verdade. E a verdade é que estava apaixonada por Nirav, porém já era tarde demais. 

— Você sempre pode voltar para casa. — disse sua mãe, finalmente. 

— E se eu não quiser voltar? 

— Então é o mesmo que continuar fugindo. 

A ligação não durou muito mais tempo. E tudo o que restava fazer era desmoronar. Então, Juno desmoronou. 

Estava tão cansada por estar perdida. Nunca parecia saber o que fazer, até não ter mais o que fazer. No fim, sequer sabia o porquê chorava, apenas deixava as lágrimas mancharem seu rosto. Chorava tanto por Nirav quanto por Olivia. Chorava tanto por Nicholas quanto por Louise. Só não chorava por si mesma. 

De repente, foi surpreendida por um par de braços envolvendo seu corpo em um abraço apertado. O susto calou seu choro, fazendo-a engolir as lágrimas. Sentir o corpo de Nicholas a fez estremecer de um jeito não tão agradável. 

— Com quem estava falando? — ele perguntou próximo ao seu ouvido. 

Imaginando a possibilidade de Nicholas ter escutado sua conversa, Juno sentiu a garganta secar. 

— Com minha mãe. — sua voz vacilou, seca e engasgada. Procurando apoio, ela segurou os braços que envolviam seu corpo. 

O corpo dele estava quente enquanto o seu, frio. Apesar de parecer acolhedor, não estava satisfeita com os toques, na verdade, era incomodativo. Estava se sentindo sufocada em seus braços e não conseguia se libertar. 

— Está tudo bem com ela? — seu tom de preocupação aliviou o receio dela. — Talvez devêssemos voltar... 

Juno não respondeu, apenas controlou o pranto que ameaçava a voltar, mordendo os lábios. Não iria chorar na frente dele. Não queria dar motivos para perguntas, pois não queria mais enfrentar o peso de suas respostas. 

— Não vejo a hora de voltar a ser somente nós dois. — ele beijou seus cabelos para depois roçar a ponta do nariz em seus cabelos. — E ter você só para mim. 

Nicholas continuava a pressionar seu corpo contra o dele, mantendo-a presa em seus braços. O esquerdo abraçava sua cintura enquanto o direito envolvia seu pescoço, apertando com força, tornando-a incapaz de sair do seu abraço. 

 Por um momento, Juno fechou os olhos, temendo de que ele fosse capaz de ler seus pensamentos. Então, já não restava mais resquício algum da coragem de tomar nenhuma decisão. Já não importava mais continuar enroscada no arame farpado.

 

 


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Notas finais do capítulo

Personagens, como entendê-los? Quando um finalmente decide fazer o que é certo, o outro já está no meio do erro.

Às vezes, eu me pego pensando em como meus personagens me surpreendem, tanto positiva quanto negativamente. Eu gosto tanto desses dois, mas agora tudo que envolve eles está tão bagunçado, mas tão bagunçado, que parece impossível algum dos dois sair ileso.

No início, é sempre brincadeira e diversão, até o conflito sair de dentro da casinha. Agora é só dor e sofrimento.



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