Ponto de Vista escrita por Mrs Ridgeway


Capítulo 7
06. Horizonte de eventos




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No fundo sabemos que o outro lado de todo medo é a liberdade. (Marilyn Ferguson, 1979).
O horizonte de eventos, ou ponto de não-retorno, é a fronteira teórica ao redor de um buraco negro, a partir da qual a força da gravidade é tão forte que nem mesmo a luz pode escapar.
A luz que cruza esse ponto nunca mais é vista.
Quem a observa, acima de tudo, acredita que nunca mais poderá enxerga-la.

 

 

Sexta-feira, 17h05

 

Além de Rose, existiam apenas dois garotos na sala de detenção. Ambos pareciam ser mais novos e aparentavam ter feito algo bem mais grave do que ela. Ainda assim, a ruiva sentou-se entre eles, na última fileira de cadeiras.

O inspetor lia um livro, distraído, com os pés apoiados na quina da mesa a sua frente. Ele fez um sinal positivo quando Rose retirou o caderno e uma caneta da mochila, porém, isso foi o máximo de atenção dedicada a garota. O homem voltou os olhos redondos para as páginas amareladas nas suas mãos.

Rose também não tinha nenhuma intenção de realizar um trabalho produtivo durante aquela detenção. A adolescente abriu o caderno numa folha limpa e deu início a um dos seus desenhos aleatórios de costume.

Ela sentia-se cansada. Os músculos do seu corpo aparentavam ter sidos moídos em um liquidificador e depois amassados com um batedor de pão. A ruiva nao costumava se sentir tão exausta após as aulas de educação física. Ter passado duas noites sem dormir de verdade com certeza deveria ter grande influência nisso.

Rose bocejou. O traço da sua figura saiu meio torto.

— Não. Agora não... – pediu a si mesma.

Aparentemente, o sono insistia em cobrar parcelas pesadas e com juros inflamados pela má qualidade dos últimos dias. A ruiva oscitou mais uma vez. Suas pálpebras pesaram.

Rose adormeceu.

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Sonho lúcido, episódio final

 

Era manhã de inverno. O vento frio açoitou o rosto da garota ruiva que estava encostada no poste de sinalização do ponto de ônibus. Rose cruzou os braços, mais por costume do que por outra coisa. Para a sua felicidade, dessa vez viera ao sonho agasalhada o suficiente para encarar o clima gélido.

Também encostado na coluna de ferro, Scorpius esperava ao lado da garota, de pernas cruzadas e com as mãos dentro do moletom verde.

— Não achei que você viria. – disse Rose.

— Não teria como deixar de vir. – ele respondeu. 

Ele era o seu ponto de vista. Rose não tinha esquecido. Assim como se também reconhecia a memória para o qual fora transportada. Ela olhou ao redor mais uma vez, com medo do que teria que enfrentar dali para frente.

Menos de dois metros a diante, duas figuras saíram de uma casa amarela. A mãe dela as acompanhou até o pequeno portão de madeira.

— Rosie, não se esqueça de entregar o embrulho que eu te pedi ao Neville, por favor. – Hermione pediu.

— Tá bom, mamãe. – a jovem Rose respondeu. – Até mais tarde.

— Até mais tarde, mamãe! – O pequeno garoto ruivinho também exclamou.

Hermione sorriu e o beijou na testa. A mãe permaneceu por alguns segundos no portão a observar os filhos caminharem até o ponto de ônibus. Empolgado, o menino dava pequenos pulinhos enquanto andava ao lado da irmã, sacodindo a sua lancheira nova do homem de ferro.

— Hugo, você vai derramar o suco que está aí dentro. – avisou Rose.

— Ops. – ele fez uma careta divertida. – Desculpe.

A Rose pré-adolescente sorriu ao pegar cuidadosamente a lancheira do irmão. O menininho aproveitou a mão livre para segurar o casaco da ruiva. Sua luva era tão pequena que sumia no meio do tecido grosso da roupa de Rose.

Os dois pararam ao lado do casal de adolescentes que os observava. Não podiam vê-los. A Rose mais velha, no entanto, aproveitou o momento para analisar cada pedacinho do pequeno Hugo que estava no seu ângulo de visão.

Sons de vozes animadas ecoaram no silêncio da manhã.

— Scorp, eu não acredito que você fez isso! – uma voz feminina reclamou em meio a risos.

A ruiva mais velha viu o jovem Scorpius se aproximar. Ele já era alto e começava a apresentar um porte atlético, graças a recém entrada no time de rugby. Malfoy estava acompanhado por uma garota bonita de olhos puxados e cabelos bem pretos cortados rentes ao pescoço. Os dois conversavam animados.

Rose também viu quando a menina sorriu para a sua versão mais nova.

— Bom dia, Rose. – cumprimentou Jia Li Chang. Ela abaixou-se. – Bom dia para você também, Huguinho.

A menina beijou a bochecha de Hugo, que ficou vermelho no mesmo instante. Os outros pré-adolescentes riram da cena.

— Você vai deixá-lo sem falar por uma semana novamente, Li. – disse a Rose mais nova.

— É que ele é tão fofinho.

A ruiva rolou os olhos, a achar graça do que a amiga fazia todas as manhãs. O jovem Scorpius aproximou-se da jovem Rose. Ele roçou o ombro de propósito, provocativo.

— Bom dia, Rosie.

— Bom dia, Scor.

A provocação fora devolvida da mesma forma, com o ombro. Os dois sorriram um para o outro.

— Rosie, você não acredita no que o Scorpius fez ontem... – Li desatou a contar a história, tagarela.

O Malfoy mais velho aproveitou o momento para chamar a atenção da companheira. O loiro apontou para uma cena não tão longe dali. Metros a diante, dois motoristas discutiam em frente aos seus automóveis.

Um dos homens, o de farda, gritava algo parado à porta da sua caminhonete. No sedan prateado, o outro cara vestido em um terno preto revidava os berros. Ambos motoristas indicavam alguns amassados que estava nas laterais dos veículos.

O casal não conseguia escutar as palavras da briga de trânsito por causa dos uivos do vento, mas, sabiam que provavelmente eram frases nada educadas. Os dois homens estavam vermelhos e visivelmente alterados pela cólera.

A Rose mais velha também observou que a sua versão pré-adolescente parecia bem mais interessada em prestar atenção na briga dos vizinhos do que em toda a fofoca que a melhor amiga contava.

E de fato. A Rose viajante sabia que, na vida real, pouco se lembrava da conversa que tivera com Li naquele dia. Deveria tê-la admirado por mais tempo.

Por mais alguns minutos, que fosse...

O ônibus escolar apontou no fim da rua. O motorista do colégio acelerou um pouco, atravessando os homens que discutiam no meio da via, e parou mais adiante, em frente aos garotos que o aguardava.

Li foi a primeira a entrar no ônibus, seguida pela jovem Rose com a lancheira do irmão. O Scorpius mais novo ajudou o pequeno Hugo a subir o degrau alto e se enfiou no ônibus logo depois.

A dupla de observadores seguiu as suas versões mais novas e também transpuseram a porta da condução amarela.

— Ei! – James acenou do fim do ônibus. Estava acompanhado por Albus e mais alguns amigos.

— Vamos para lá? – o jovem Scorpius chamou a garota.

Rose hesitou. Não queria deixar Hugo sozinho. Ele ainda era muito pequeno para viajar desacompanhado em um dos bancos soltos e o balanço excessivo do fundo da condução o fazia passar mal.

Ao perceber a aflição da amiga, Jia Li retornou.

— Eu fico com ele, Rose. Pode ir. – a menina disse.

— Não quero te dar trabalho... – a jovem ruiva negou depressa.

Mas Li já havia se sentado com Hugo nos assentos disponíveis por perto.

— Vamos olhar os esquilos pela janela, não é, Huguinho?

O ruivinho balançou a cabeça animado, aninhado no colo da morena. A Rose pré-adolescente sorriu de canto.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Ok. – ela depositou um beijo molhado na bochecha de Hugo. – Obrigada, Li.

— De nadinha.

Enquanto a Rose e o Scorpius de treze anos seguiam para o fundo do ônibus, Li apontou com entusiasmo para uma macieira do lado de fora. Ela e Hugo soltaram gargalhadas animadas.

 


...

 

Tudo aconteceu muito rápido. O grupo de jovens riam e conversavam nos bancos do fundo quando, do lado de fora, o carro prateado avançou na frente do ônibus pela primeira vez. A Rose mais velha, em pé no meio do corredor, também viu quando o caminhão buzinou em seguida.

Ele continuou buzinando. O homem fardado tentou ultrapassar o ônibus escolar, sem sucesso. A via onde estavam era muito estreita para tamanha aventura e outros veículos também seguiam o fluxo do trânsito. O motorista da condução revidou as buzinadas. O casal expectador o escutou gritar algo sobre crianças para o lado de fora, irritado.

O dono do caminhão, no entanto, aparentava estar obstinado demais para se importar com isso. Ele tentou a ultrapassagem outra vez, agora bem mais incisivo. O Malfoy mais velho apontou para frente e a ruiva que o acompanhava viu que o sedan prateado continuava por ali. Era isso que estava irritando o homem da caminhonete ao lado.

Dentro do ônibus certa agitação deu-se início. Algumas crianças começaram a chorar, assustadas. Rose viu a sua versão mais nova se esticar por cima dos primos. Apreensiva, ela procurava Hugo com os olhos.

Mais a diante, Li encostara o vidro da janela em busca de alguma segurança e permanecia abraçada fortemente ao menininho. Os dois fecharam os olhos no momento que o ônibus balançou num solavanco muito forte.

Quando a Rose mais nova decidiu se levantar já era tarde demais.

A tragédia se sucedeu.

Numa última tentativa de alcançar o carro prateado, o caminhão forçou novamente a passagem. O sedan acelerou e jogou-se bem em frente ao ônibus escolar. Para não bater no automóvel, a condução freou rapidamente. O motorista segurava firme no volante a tentar guina-lo para o acostamento minúsculo. Mas, mesmo com tanto esforço, o condutor não conseguira ser rápido o suficiente.

A caminhonete se descontrolou no chão molhado pelo gelo do inverno e afundou-se em cheio na lateral do ônibus escolar. Bem na direção onde Li estava sentada com Hugo. O som da batida foi ensurdecedor. Gritos e mais gritos ecoaram dentro do veículo.

As versões mais velhas do Malfoy e da Rose se seguraram nos ferros do ônibus, que deslizava pela pista, arrastando mais alguns outros carros consigo. O cheiro de fumaça e de borracha queimada espalhou-se pelo ar.

No momento que o ônibus parou o arraste, a maior parte dos alunos maiores se levantou. Aos poucos alguns tentaram consolar as crianças menores que choravam machucadas ou só aturdidas. Os outros olhavam fixamente para as ferragens expostas pela batida. Todos pareciam ter medo do que estavam vendo.

Ali, Rose revisitou a cena que mais lhe causou dor na vida. Ela viu Hugo e Li de olhos fechados. Cobertos de sangue, os dois jaziam imóveis no assento. Seu pequeno irmão e a sua melhor amiga estavam mortos.

A Rose mais nova soltou um grito horripilante. A Rose mais velha apenas desejou acordar no mesmo instante.

 

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Sexta-feira, 18h43

 

Hermione bateu os pés descalços sequencialmente no chão. Ela encarou o grande relógio da cozinha. Havia se passado mais do que o permitido do horário. A filha há muito deveria estar em casa.

— Eu vou ligar para a Rose. – avisou ao marido.

A mulher estava com o celular na mão quando Ronald, que trocava o sifão da cozinha, retirou o rosto de debaixo da pia.

— Mione... – ele disse com cautela.

Hermione suspirou. Relutante, pôs o aparelho novamente em cima da mesa.

— OK, não vou ligar.

Não queria parecer desestabilizada como no dia que fora buscar Rose às pressas na festa de despedida que James organizara. Mas era difícil se segurar.

Muito difícil.

Ron limpou a mão no pano que estava preso no seu short. Ele se aproximou da mulher e a abraçou afetuosamente pelas costas.

— Já conversamos sobre isso... – sussurrou em seu ouvido.

— Já...

— Não precisamos viver com medo.

— Não...

— A Rose vai entrar por aquela porta em breve.

— Vai sim. – Hermione repetiu. Mais para si mesmo do que para o marido.

O ruivo a beijou na têmpora.

— E nós pediremos pizza para jantar. – Ron completou. – Eu estou cheio de fome.

Mione sorriu. Ela virou-se para encara o marido.

— Eu vi que você montou o telescópio novo no telhado outra vez... – falou com os olhos semicerrados. – Também conversamos sobre isso, Ronald.

Ron coçou a testa. Sabia qual era a reclamação que viria por aí.

— A Rose não dorme há quase três dias. Não é bom para a saúde dela que isso aconteça. – a mulher reclamou.

— Eu sei... – o ruivo assentiu. – Mas... A Rosie me pediu...

— "A Rosie me pediu."— Hermione o imitou com deboche.

— Ah qual é, Mione?! É uma das melhores semanas do ano para observação estelar!

— O problema é que o GCSE está prestes a chegar, Ron. Ela precisa manter o foco!

Hermione ameaçou se afastar com o semblante irritado. O ruivo, contudo, a segurou mais forte.

— Ei, estamos falando da Rosie... – ele distribuiu uma sequência de beijos no pescoço da esposa. – Filha da mulher mais inteligente da Inglaterra... – outra sequência... – Esse GCSE já está no papo!

Mione riu outra vez. Ela jogou os braços ao redor do pescoço de Ron.

— Deveríamos aproveitar melhor esse momento sozinhos, não? – sugeriu.

— Eu gosto dessa ideia.

Ron fez menção de beija-la, porém a maçaneta da entrada entoou um barulho característico. A porta foi aberta lentamente.

— No entanto é melhor deixar para mais tarde. – ele completou com um sorriso e um selinho.

Pai e mãe se viraram em direção a sala de jantar. Ambos respiraram aliviados quando viram a filha enfim atravessar inteira o batente da porta.

— Olá, Rosie. – saudou Hermione.

— O-olá... – a voz da garota saiu falhada.

— Já podemos pedir a pizza? – Ron perguntou em tom de brincadeira.

O sorriso de Rose foi vazio. Quase inexistente. A ruiva deixou a mochila escorregar pelos seus ombros e cair no chão com um baque.

Hermione foi a primeira a perceber que existia algo de errado.

— Rose...?

A garota abaixou a cabeça. Estava chorando. Copiosamente. O som dos seus soluços chegaram a cozinha. Em alerta, Ron e Hermione correram em direção a filha.

 

 


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Notas finais do capítulo

Já gostaria de me desculpar se por acaso esse capítulo tenha ativado gatilhos em alguém. Eu sei que é um tema sensível para muitos, mas era importante ser abordado.

Nos vemos amanhã com o final ♥