Correio Elegante escrita por Sirena


Capítulo 9
Hércules


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a Isah Doll e Joshua de Vine pelos comentários ❤️



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Hércules é um filme bom.

É isso.

As piadas são ótimas! Eu adorei assistir e como tudo da Disney, as músicas ficaram na minha cabeça. Vencer Distâncias principalmente.

— Foi divertido. – comentei enquanto desligava meu computador.

Meu pai apenas concordou com a cabeça, mas, ele já estava caindo no sono tinha uns trinta minutos.

Suspirei começando a ajeitar as coisas na cama, levei o balde de pipoca e os copos de refrigerante para a cozinha, coloquei o computador em cima da mesa, peguei meu travesseiro e minha coberta e levei para minha cama.

Meu pai não se mexeu, cansado. Depois que minha mãe voltou para Madri, ele pareceu ter envelhecido vinte anos em poucas semanas. Era assustador! Estava  bem mais magro e com olheiras, as sombras no rosto dele estavam destacadas, de uma maneira assustadora. Parecia um personagem saído de um filme do Tim Burton.

Mas, pelo menos ele já tinha voltado a trabalhar. Eu tinha ficado realmente preocupado quando na primeira semana ele não queria nem sair da cama, na segunda, toda noite se embebedava e acordava de ressaca. Na terceira, a despensa ficou vazia. Mas, agora, ele finalmente tinha voltado a trabalhar, fazia algum tempo que não bebia e tínhamos comida nos armários.

Eu preparava o almoço e jantar, organizava o que podia. É claro que estava preocupado e sabia que ele não vinha comendo direito, mas... Bom, em comparação, ele estava decididamente melhor, então estava tampando meus próprios olhos para isso.

Mais algumas semanas e tudo estaria melhor. Eu tinha certeza.

Talvez.

***

“Ok, eu assisti. Primeiro em português com meu pai e depois vi sozinho em espanhol e estou simplesmente apaixonado pela voz do Ferrán González em No Importa la Distancia. De verdade! Não Direi Que é Paixão é muito melhor em português, mas o solo do Hércules, ah, eu pesquisei depois no Youtube e achei uma versão do Ricky Martin de No Importa La Distancia também e não lembro da última vez que uma voz fez tão bem aos meus ouvidos.

Llegarte a mi meta é a versão latina e pelo que vi tá mais famosinha, mas, não me agradou tanto.

A dublagem brasileira no geral me agradou bem mais que a da Espanha, mas, isso eu já imaginava, sou mais acostumado a assistir as coisas em português, então parece estranho quando escuto em espanhol, mesmo eu sendo bom e tal, acho que ao contrário do que todo mundo pensa, eu não sou assim tão acostumado e nem tão bom em espanol. Enfim, eu adorei o filme. É maravilhoso, entendo porque é seu favorito.”

***

O Pedro estava escrevendo no caderno, enquanto Paulo, Biel, Gabi e eu jogávamos Uno.

— Por que você não joga também? – o Gabriel perguntou, olhando-o irritado, enquanto a Gabriela lançava uma carta de +4.

— Por que a gente ainda tenta jogar com a Gabi? – perguntei, suspirando alto, enquanto lançava uma +4 que tinha comigo. — Ela sempre ganha mesmo.

— Isso porque ela sempre trapaceia. – o Paulo opinou também lançando outra +4.

— Mano, vocês querem me fuder, hein? – o Biel bufou, comprando as doze cartas. — Vai ter volta, vai ter!

— Quando a gente vai no cinema mesmo, Paulo? - perguntei, hesitante.

— Domingo, se tiver bom pra você.

— O que vocês vão ver? -  a Gabi questionou, jogando uma carta de bloqueio. O Paulo bufou, olhando pro teto.

— Piratas do Caribe. - respondi, lançando um nove e contendo um suspiro. — Eu queria ver um filme de terror, mas o Paulo é medroso.

— Uh, eu posso ir também? - o Biel me perguntou, animado, enquanto lançava um nove amarelo por cima do meu.

— Claro. - sorri, na minha frente o Paulo revirou os olhos.

— Também vou. - a Gabriela sorriu, jogando uma série de cartas de número 3.  — Seria legal se a Adriana e a Mari também fossem. Elas são divertidas.

— Por que sempre que eu vou fazer rolê pra qualquer lugar, as pessoas querem que eu chame a Adriana pra ir junto? 'Cês gostam mais dela do que de mim né? - o Paulo bufou, semicerrando os olhos enquanto nos encarava um por um.

— Óbvio. Você é chato. - dei de ombros, tentando não rir enquanto ele me olhava de um jeito irritado. — Tem certeza que não quer jogar de próximo Pedro? – perguntei, desviando minha atenção.

— Tenho. To acabando a lição de redação.

— Hã... Só pra saber... Que lição? – a Gabriela questionou, tirando pela a atenção do jogo e abaixando as cartas.

Gabriela era uma garota que me assustava um pouco quando se tratava de jogar. Ela era tão determinada, tão competitiva, tão bizarra, que quando começávamos a jogar qualquer coisa, tenho a impressão que a vida dela toda se reduz ao jogo. Era estranho quando algo a distraía.

O Pedro era o aluno mais alto da nossa escola e a Gabi a mais baixinha da sala, mesmo assim, uma vez quando estávamos jogando handebol na educação física, ela ficou tão focada em marcar ponto que praticamente o atropelou e basicamente o derrubou no chão para ficar com a área livre e marcar o ponto.

Era um pouquinho apavorante.

— Escrever um conto de terror. – respondeu, calmamente. — Como se escreve pútrido?

— Que porra é pútrido? – questionei, unindo as sobrancelhas.

— Que tá se decompondo. – Pedro respondeu, beliscando meu ombro. — Depois que eu acabar a lição jogo com vocês.

— É redação, cara! Não é uma lição ultra importante. – reclamei, devolvendo o beslicão.

— Lembra que ela sempre pede pra gente ler em voz alta. – ele contestou, agora beliscando minha bochecha. Dei risada, afastando sua mão.

— Vamos fazer o texto, depois a gente volta a jogar. – a Gabi decidiu, com voz que indicava que não aceitaria não como resposta e nem sequer uma contestação.

Soltei um muxoxo, mas concordei, colocando as cartas que tinha comigo debaixo da mesa, para não misturar com as demais. Meus amigos fizeram o mesmo.

Cocei a cabeça, sem ter bem certeza do que escrever. Um conto de terror? Como se escreve um conto de terror? Parecia complicado demais. Como você faz alguém se assustar com palavras escritas numa folha? Era completamente diferente de uma cena de filme, onde tinha cenário, trilha sonora, jogo de câmera e tudo aquilo. Muito difícil.

— Pedro, posso ver como você fez? – perguntei.

Ele suspirou, me entregando o caderno. — Ainda to escrevendo, mas tá aí.

As sombras se moviam, dançando com a graciosidade demoníaca que cabia as sombras, crescendo e encolhendo, mudando de forma contra as paredes. As trevas riam com seu bafo quente enquanto as crianças gritavam. Era o reino dos pesadelos. Era o reino do medo. Era o reino da fobia. E era o reino do pavor.

As crianças iam parar ali por puro acaso em meio ao sono, quando erravam o caminho para os sonhos. E as sombras adoravam perturbar aquelas pequenas fontes de luz, tão encantadoras; perturbar a tal ponto que marcariam seu subconsciente para sempre, que seriam a razão de seus medos por muito tempo...

Conforme cresciam, as pessoas aprendiam melhor o caminho para o sonho e para o sublime e raramente esbarravam com as sombras. E ainda mais raramente se lembravam do seu encontro com as trevas que gargalhavam diante de seu tremor e pavor. Mas às vezes, ao invés das pessoas encontrarem as trevas, eram as trevas que as encontravam.

E elas gargalhavam dançando em seu quarto, se jogando sobre eles, deitando-se em seu peito, os apavorando, segurando e prendendo, mantendo as pessoas num estado de pavor, onde se encontravam dormindo, mas ao mesmo tempo, estavam acordadas.

Um estado de terror, onde estavam acordadas, mas dormiam. Um estado de dor, onde não eram nem uma coisa e nem outra, não estavam vivos nem mortos, onde não podiam fugir e apenas podiam temer.

Um estado de horror eterno que marcaria suas almas até fazê-las entrar em estado pútrido de medo.

Cuidado com as sombras demoníacas quando elas passarem rindo por você. Não erre jamais o caminho para o sonho ou para o sublime.

 

— Você fez um conto sobre paralisia do sono? – questionei, olhando-o de olhos arregalados. A descrição tinha realmente me assustado um pouco, a luz da sala parecia deslocada, como se devesse estar escuro invés de claro. Como se eu tivesse sido jogado de um quarto escuro para uma sala iluminada de repente. Meu coração estava acelerado.

Do meu lado, o Pedro deu de ombros enquanto pegava o caderno de volta. — Achei assustador o bastante para basear meu conto. Mas, acho que repeti muito as palavras. Vou dar uma revisada e passar a limpo.

— Ficou bom. – murmurei, voltando atenção para meu próprio caderno, encarando a folha em branco sem ter ideia do que fazer com ela.

— Não tem alguma lenda de terror espanhola que você possa usar? – Gabriela questionou, prendendo o cabelo cor de cobre num coque. — Sei lá, a gente tem o Curupira, o Saci e todo mundo fala no Chupa Cu, vocês devem ter algo também, não?

Franzi os lábios, pensando.

— Madre gostava de me contar algumas, quando eu era pequeno... – admiti por fim. — Mas, não me lembro bem delas.

— Você pode pegar um dos meus contos. – Pedro ofereceu, colocando uma perna por cima da minha e deitando a cabeça no meu ombro. — Eu tenho vários escritos nesse caderno.

— Então por que você não pegou um que tava pronto? – estranhei, unindo as sobrancelhas.

— Por que eu quis escrever outro, é claro! – enquanto falava, Pedro me deu um peteleco na testa, rindo e se afastando um pouco.

Fiz careta, irritado pela quebra de contato. Pedro tinha uma pele quente e calos nas mãos, além de um cheiro delicioso que me deixava momentaneamente tonto de tão forte, mas, que eu sempre buscava. Estar sentado tão perto dele sem direito a todo o contato físico que fosse possível era basicamente como uma tortura.

— Me passa um dos seus. – pedi por fim, sem cabeça nem criatividade pra escrever nada. — Mas, se tentar me processar por plágio depois, eu te jogo da escada. – avisei, deitando o rosto no ombro dele e contendo um bocejo.

Pedro riu, passando o braço sobre meus ombros. — Hermoso, seria uma honra ter você usando um de meus contos.

— Hermoso? – arquei a sobrancelha, pois ele nunca tinha me chamado assim antes. Pedro deu risada, mexendo os ombros e começando a fazer carinho em meu cabelo enquanto folheava o caderno em busca de algum conto para me passar.

***

“Muito me agrada que tenha gostado do filme. Eu o acho especialmente divertido e dos filmes esquecidos da Disney é com certeza o melhor, pelo menos em minha opinião. Qual a sua opinião sobre, aliás?

Eu nunca tive a curiosidade de escutar as músicas em outra língua, exceto por Won’t say I’m in Love, mas isso porque tem uma versão pop que achava divertida, apesar de que a letra nem de longe passava a ideia poética e musical que Não Direi Que É Paixão me passa. Enfim, após suas recomendações, eu tive que ouvir No Importa La Distancia e Llegarte a Mi Meta.

Vou admitir a você, que gostei muito mais da versão latina da musica do que a espanhola, porém, concordo que as vozes da Espanha são muito mais atraentes de se ouvir.

Eu queria saber falar alguma outra língua, mas, mesmo meu inglês é arranhado. Imagine espanhol ou qualquer outra que você puder imaginar. Apesar de que entendo um pouco de libras. Não o bastante para manter uma conversação completa, mas, com certeza saberia passar e entender uma mensagem caso fosse necessário.

Enfim, acho que seu espanhol é maravilhoso, embora minha opinião não seja grande coisa, obviamente já que não sou fluente e nem sequer bom no básico que nos é ensinado na escola. Mas, de verdade, acredite-me, há poucos passatempos melhores nas horas que se arrastam nesse colégio infernal, do que parar tudo que faço para ouvi-lo falar espanhol.

Ah, especialmente nas aulas de espanhol quando você lê poemas de Neruda em voz alta, cariño. É realmente muito atraente, minha mente viaja imaginando as mais diversas cenas, algumas que com certeza seriam consideradas muito indevidas para uma sala de aula, mas, hey... A ideia de nos por para ler obras de um cara conhecido por fazer parte de um grupo de poesia erótica foi do professor, não minha. Não posso ser julgado por isso, posso?

Com amor.


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