Correio Elegante escrita por Sirena


Capítulo 10
Neruda


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a Isah Doll e Eloise Feh pelos comentários ♥



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Roí as unhas enquanto tentava responder a carta. Eu sempre deixava para me preocupar com o que escreveria depois de terminar minhas lições de casa, assim poderia me concentrar melhor. Mas, hoje eu tinha feito diferente.

Porque eu simplesmente não tinha condição de esperar, enquanto ponderava sobre o que estava lendo. Sobre o que já tinha lido várias e várias vezes desde que cheguei em casa.

Cenas indevidas para uma sala de aula.

Não me pergunte por que, imediatamente me veio Sed de Ti a mente. Eu gostava do ritmo daquela poesia, era deliciosa e suave e calma e sensual e tudo que se poderia desejar. Tentar imaginar Quinze imaginando cenas indevidas comigo trazia ao meu corpo os mesmos arrepios que Sed de Ti me trazia.

Muito embora, eu nunca tenha lido Sed de Ti na sala de aula, apenas outras poesias mais leves, como Posso Escrever os Versos Mais Tristes, Teus Pés e Não Te Quero Se Não Porque Te Quero. Sed de Ti era muito mais intenso na minha humilde opinião.

Neruda era o predileto de minha mãe. Ele não era espanhol, ao contrario do que muita gente desinformada pode acabar pensando. Na verdade, ele era chileno, viveu no período da ditadura e tem uma biografia bem interessante. Também fez parte de um grupo de poesias eróticas, então não era atoa que tinha tantos versos sensuais.

Minha mãe gostava da história de vida dele e meu pai a deu um livro dele, edição bilíngue, espanhol-português, com um marca-página na página de “É assim que te quero amor.” No final da poesia ele tinha rabiscado com lápis “quer casar comigo?”.

Minha mãe contou que assim que leu, saiu correndo pela Plaza de Madrid onde estavam passeando, atrás de alguém que tivesse uma caneta, sem perceber que meu pai a oferecia um lápis.

Quando devolveu o livro para o meu pai, tinha rabiscado um “Si” abaixo da pergunta. Ele tava tão nervoso que leu “se” em português mesmo e entrou em desespero. Até ela gritar com ele falando que queria casar e era bom ele não estar tirando com a cara dela.

Ele dizia que apagaria o pedido caso ela negasse, por isso escreveu a lápis. Ela dizia que não pensou duas vezes e tinha tanta certeza do que queria, que precisava escrever com uma caneta.

Suspirei, voltando a prestar atenção na carta, sem ter ideia do que fazer, verifiquei a hora no meu celular. Foi quando a ideia me veio.

Céus, por favor, não me permitam me arrepender de tal coisa.

***

Quando fui deixar a carta no armário na manhã seguinte, encontrei outra lá. Franzi a testa, deixando a minha e pegando a do Quinze, sem ter bem certeza do que esperava encontrar ali.

Entrei na sala, que seguia quase completamente vazia. Apenas a Gabi tinha chegado e ela conversava animadamente com o David e a Vanessa. Acenei para eles enquanto me sentava no meu lugar para ler.

A carta mais estava para um curto bilhete do que para uma carta propriamente dita.

“Acho que exagerei um pouco na minha ultima carta. Não consegui parar de pensar nisso. Não nos falamos há tanto tempo e tampouco me deu intimidade para falar qualquer coisa de duplo sentido. Se o tiver ofendido, por favor me desculpe, não era minha intenção, lhe juro. Por favor, por favor, finja que nunca escrevi aquilo.

Soldeville.”

Franzi os lábios, tentando não rir enquanto imaginava como ele reagiria quando visse minha carta. Ah! Que pena que era sexta! Eu demoraria até segunda-feira para poder ler sua reação, que desastre!

O Paulo e o Pedro chegaram juntos na sala, conversando. O Paulo misturava distraidamente cartas de Uno na mão, enquanto olhava o jogo de dominó que o Pedro tinha trazido.

— Vai ter dominó no intervalo? – questionei.

— A professora faltou. – o David falou de repente, vindo pra perto da gente, abraçado com a Gabriela. — A gente vai pra sala de jogos daqui a pouco. Quem topa xadrez?

— Eu topo. – levantei a mão.

O David era o melhor da sala em xadrez, mesmo eu sendo péssimo, sempre achava divertido jogar com ele, pois era o único que tinha paciência para pelo menos tentar me ensinar.

— Também topo! – Paulo se pronunciou. — Mas, depois vamos de damas!

— E quem vai jogar dominó comigo? Que caralho! – o Pedro resmungou, revirando os olhos.

— Eu jogo com você. – a Gabi sorriu, dando a mão pra ele. — A gente já tá pra entrar de férias, então não acho que vai vir mais alguém. Só a gente, porque a gente é trouxa.

— A gente uma vírgula! – o Pedro bufou. — Eu venho apenas por ordens superiores.

— Ordens superiores chamadas “sua mãe mandou”? – arquei a sobrancelha.

— Exatamente. – ele riu.— Ela morre de medo de eu repetir de novo.

— Mas, também né, cara? – Paulo bufou. — Tu repetiu por falta, porra! Por falta! Quem é que repete por falta nesse inferno?

O Pedro virou a cara, parecendo envergonhado. Belisquei o Paulo, e fiz careta para ele.

— Que foi?

— Vocês vão querer subir? – olhei assustado para a professora substituta que nos olhava da porta. — Vai chegar mais alguém?

— Acho que não chega não. – Gabi garantiu passando na frente de nós enquanto prendia o cabelo. — Vamos logo.

— Por garantia... – o David sorriu se adiantando até a lousa. — A gente deixa um recado pra quem chegar. – e enquanto falava, escrevia com giz branco “estamos na sala de jogos, subam logo.”

— Bem educado. – observei.

— Super educado. – David concordou, piscando para mim antes de ir atrás da Gabi, que já havia saído da sala entretida numa conversa com a professora.

O Pedro suspirou, pegando seu jogo de dominó e indo embora sem esperar por nós, o que eu achei bom. Belisquei o Paulo novamente antes que ele saísse.

— Ai! Que foi?

— O Pedro faltava porque a depressão dele tava muito forte, sua besta! Ele não saía da cama para nada! – chamei sua atenção. — Foi uma grosseria sem tamanho de sua parte falar aquilo.

Ele encolheu os ombros, corando. — Eu não sabia que ele era depressivo.

Suspirei.

Isso era verdade. Até onde eu sabia, eu e o Gabriel éramos os únicos para quem o Pedro tinha contado aquilo. O que era estranho, mas, também era bom. Me fazia sentir estranhamente mais próximo dele, como se eu fosse de confiança.

— É, eu sei. Mas, mesmo assim. É grosseria ficar esfregando na cara das pessoas a razão de terem repetido. – bufei, cruzando os braços.

— Eu sei, eu só... Não pensei no que tava falando. – ele suspirou, passando a mão pelo cabelo, ainda ferrado com o degrade mal feito. — De qualquer forma, vou pedir desculpas para ele, okay? – sorriu de lado, pondo a mão no meu ombro.

— Tá. – suspirei, afastando sua mão, ainda irritado. — Só não diga que eu te contei sobre ele ter depressão. Ele me falou em privado e as únicas pessoas que sabem disso são os professores e a diretora.

— Tá bom.

***

O final de semana passou lenta e tediosamente, sem eu ter muito que fazer. Muito embora, eu tenha falado com minha mãe durante uma boa parte do dia, conversado com ela e com meus avós.

Ela tinha cortado o cabelo, o que a tinha feito parecer mais jovem. Lhe dava certa elegância. Algo como “inteligente e de humanas.” E a armação dos óculos também era nova.

Fiquei horas conversando com ela, atualizando-a sobre o que estava acontecendo na minha vida e ouvindo-a falar sobre a escola onde dava aula. Minha mãe era formada em história, mas, também em letras-espanhol e letras-LSE (Lengua de Signos Española) e estava lecionando tanto a língua de sinais quanto história, eu podia ver o quanto isso a agradava.

Era bom vê-la tão alegre e eu já estava com o peito apertado de tanta saudade! Mal podia esperar pelas férias para poder ir visitá-la! Ok que tinha sido minha escolha ficar no Brasil, mas, quando eu a ouvia rir e balançar a cabeça e não podia puxar seu cabelo, me dava uma pontada de arrependimento no peito.

Ela dizia que eu sempre gostei de brincar com o cabelo dela, desde bebê estava sempre mexendo, puxando e enrolando ele no dedo.

Eu vinha seriamente pensando em, assim que acabasse o ensino médio, ir fazer faculdade na Espanha.  Ok, eu sempre tinha pensado um pouco nisso, principalmente porque tenho família lá e porque a Espanha era um destaque no curso de arquitetura que era meu sonho desde meus quatorze anos, mas, agora, estava pensando mais seriamente.

Bem mais seriamente.

***

Segunda de manhã, na escola, eu cheguei atrasado e quase não consegui entrar, pois já iam fechar os portões. Mas, consegui e era o que importava. E mesmo sabendo que devia ir direto para a sala, aproveitei que o corredor dos armários estava vazio e peguei minha carta, sorrindo de lado, contente por ela estar ali.

Novamente, poucas pessoas foram, meus amigos estavam sentados no fundo, jogando truco, o que eu pessoalmente achava um pouco arriscado, já que a direção da escola parecia verdadeiramente decidida de que jogos do baralho eram uma invenção demoníaca e qualquer um que fosse pego jogando em sala de aula era imediatamente suspenso.

— Quer jogar, Marcos? - o Pedro questionou, me olhando atento.

—... Não. Vocês tem certeza que é uma boa? - questionei arqueando a sobrancelha.

— Hermoso, quem é que vai suspeitar... - ele me mostrou uma das cartas que tinha em mão, uni as sobrancelhas para a imagem, confuso. — Do truco da Galinha Pintadinha?

— Realmente. - dei risada. — Mas, é... Eu vou ficar só lendo. Sou péssimo no truco.

— Ah...

Abri minha carta e sorri para o papel azul antes mesmo de começar a ler.

Me desculpe por começar assim, mas... VOCÊ QUER ME MATAR! Claramente você deseja me matar, deseja que meu corpo entre em combustão espontânea de tanto desejo até sobrar apenas minhas cinzas e eu estar decidida e irremediavelmente morto.

Como você, em sua mais alta crueldade e criatividade, ousa gravar e postar no youtube um áudio lendo Neruda? E mais ainda! Me mandar uma carta cujo único conteúdo é o link, sem uma única explicação, o que significa que sua única intenção era realmente me dirigir a loucura? Seu ousado! Me arrependo terminantemente de ter pedido desculpas pelo que te disse.

Eu verdadeiramente acreditei ter sido um pouco mais ousado do que deveria, mas você foi muito mais! Você é quem me deve desculpas por me deixar em um estado tão absurdamente deplorável!

Ah, Soldeville, me diga... O que eu faço com você? 

— O que quiser. – murmurei, dobrando a carta e guardando-a na minha mochila.

Peguei meu livro de Neruda e abri na folha marcada, a poesia que eu tinha me gravado lendo e postado em um link oculto na minha conta do Youtube.

Sed de ti, guirnalda atroz y dulce.
Sed de ti que en las noches me muerde como un perro.
Los ojos tienen sed, para qué están tus ojos."

— Tá lendo o que? – olhei assustado para o Pedro, que tentava ver a capa do meu livro.

— Poesia. Neruda. – respondi, um pouco sem graça.

— Posso ler com você? – questionou. — A professora de literatura disse que eu tenho que melhorar minha interpretação de texto e podia tentar isso lendo mais contos e poemas, mas, eu nunca entendo nada...

— Você não tava jogando? - arquei a sobrancelha.

— Eu perdi. - ele fez bico. — Posso?

— Claro. A edição é bilíngue então as folhas da direita são em português. – sorri de lado me ajeitando na cadeira, de forma que ele pudesse dividi-la comigo. — Mas, qualquer dúvida só perguntar.

— Valeu, cara.

"La boca tiene sed, para qué están tus besos.
El alma está incendiada de estas brasas que te aman.
El cuerpo incendio vivo que ha de quemar tu cuerpo.
De sed. Sed infinita. Sed que busca tu sed.
Y en ella se aniquila como el agua en el fuego."


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Notas finais do capítulo

Eu só quero dizer que: sim, realmente existe um baralho da Galinha Pintadinha.
E estamos na reta final de Correio Elegante, faltando apenas quatro capítulos para o fim :) yaay



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