A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 19
Vozes na floresta




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— Vocês ouviram isso?

Shura mal ouviu essas palavras e se abaixava instintivamente, ficando em uma posição entre agachado e de pé, olhando ao redor freneticamente. Com a mão direita espalmada para baixo, fez um sinal para que as mulheres o acompanhassem, mas não era necessário, tão rápido quanto ele, elas já tinham se abaixado, observando com cuidado os arredores. Shura já vinha escutando um som estranho e longínquo fazia algum tempo, mas depois da briga eles finalmente puderam perceber que ele se aproximara um pouco.

O barulho vinha de algum lugar da mata logo a frente deles, pareciam com animais brigando sobre a folhagem seca que banhava o chão. Os três ficam assim por alguns minutos, até Shura perceber, sem nenhuma certeza, a direção de que vinha o barulho.

— Venham – ele chama com a voz baixa, gesticulando com um dos braços – vamos nos aproximar um pouco para tentar ver o que é.

A passos vagarosos e cuidadosos, o trio se aproxima um pouco mais de onde vinha o barulho, ainda indecifrável, como se um grupo de cervos lutasse uns contra os outros com toda a sua energia. Com o aumento repentino do barulho, eles voltam a suspender a marcha, formando quase uma linha, com Shura no meio, Eyria do seu lado esquerdo e Mariah do direito.

— O que é isso? – Pergunta Shura, quase que em uma pergunta retórica

— São vozes, - responde a mulher, tensa - têm semideuses por perto.

Ela aponta para uma árvore logo adiante deles, seu tronco coberto de musgo verde até a metade tinha uma falha em formato de cunha, de onde não apenas o musgo havia sido retirado recentemente, mas também uma generosa lasca da casca, de onde descia a seiva gosmenta do interior. Eyria aponta diretamente para ela com um balançar de cabeça e os dois outros olham diretamente para o local indicado.

— Veem aquela ferida no tronco da árvore? – Eles assentem, migrando o olhar de volta para ela de forma sincronizada, esperando uma resposta – Ela é recente, bem recente. O musgo que sai dela não costuma sair por muito tempo e aquele corte certamente foi feito por uma arma de corte bem grande, em outras palavras...

— Eles estão por perto e estavam lutando. – Completa Mariah, para a surpresa de Shura. Nas últimas horas, a garota parecia ter envelhecido dez anos ou mais.

— Exato, ainda não sei quantos são, mas provavelmente não são apenas dois. – Declara Eyria.

O barulho parecia agora se moldar novamente na cabeça dos três, como um passe de mágica, passando de urros guturais e estampidos surdos para baixos gritos de agonia e raiva. Acompanhado deles, metal sendo brandido e colidindo entre o que quer que estivesse em sua frente. Ficaram mais alguns segundos escutando, parados onde estavam, a batalha logo a frente parecia feroz, Eyria pôde finalmente distinguir três vozes diferentes, se utilizando de seus instintos e experiência, Shura estimara que eles estavam a quase vinte metros deles, ocultos pela mata cada vez mais densa e Mariah se forçava a pensar, tentando formular um plano novo, já que precisavam contornar a luta sem perder mais tempo, embora ter três deuses a menos em seu encalço fosse tentador. De forma totalmente ocasional, seus olhos encontram os de Shura, que a observava em silêncio.

— Vamos seguir seu plano Mariah – ele acena com cabeça decidido e se volta par Eyria – vamos dar a volta, quanto menos deles melhor para nós.

— Sim – concorda ela – vamos.

Depois de um tempo estimando onde estariam, começaram a se mover um pouco mais rápido, mas se mantendo abaixados, para que as moitas e troncos lhe servissem de proteção. Essa progressão lenta continua por um bom tempo até que Shura desse o sinal de que estava tudo bem. Os três continuam sua marcha, mudando dessa vez a direção, passando ao largo de onde parecia que havia luta a ponto de quase não ouvir nada.

Com o tempo, o barulho da luta é substituído pelos sons da natureza e dos seus próprios passos. Eyria dessa vez se candidatou para tomar a dianteira e Shura assentiu, indo para a retaguarda sem reclamar. Afinal de contas, ele sabia que orientação em meio à mata, ainda mais tendo que negar seu instinto de seguir direto para o centro, não era seu forte.

Mariah, que se mantinha no meio dos dois, mantinha o ritmo de caminhada e tinha os olhos cravados na nuca de Eyria, coberta pelos seus cabelos negros. Sua roupa, clara e agora suja e esfarrapada em alguns pontos, ironicamente contrastava com a mata à medida que se moviam e seu físico, para a garota, passava longe de alguém capaz de derrotar um semideus como Daikokku. Mesmo assim a semideusa tinha mostrado seu valor em batalha diversas vezes.

Contudo, nada disso importava muito, o que pairava sobre os pensamentos da jovem, como se fosse uma névoa, era a imagem dos dois brigando a pouco, antes que ela intervisse. “Você acha mesmo que ela se importa? Por quê? Por causa da caverna? Ela só estava preocupada com outro semideus te escutar e nos atacar, não é, Eyria?” Bradava o homem, com um fogo no olhar de quem acabava de desmascarar alguém. De fato, ele parecia prestes a fazer isso. Mesmo com toda aquela cena, ela sabia que, apesar de conhecer pouco o semideus, Shura estava sendo sincero.

As lembranças de seu descontrole e inevitavelmente do sonho ainda vivo em sua mente invadiram seu raciocínio, o carinho desajeitado da mulher, seu olhar um pouco evasivo enquanto se acalmavam, suas constantes conversas privadas com Shura, parecia que Eyria não confiava nela, ou a achava um estorvo desnecessário. Será que ela a mataria caso isso não implicasse na morte de seu protetor? Contudo algo martelava ainda no fundo de sua mente: Eyria a salvara por puro altruísmo, não tinha como ela saber da maldição por completo, sendo assim seria mais prudente e fácil ajudar apenas o semideus. Mesmo que soubesse, mais Mariah seria apenas um atraso, por quê a manter viva e se aliar com eles então?

A garota sacode a cabeça, tentando afastar esses pensamentos e se focar no caminho. Ao invés disso, outro sentimento a invade. Sede.

Eyria caminhava calmamente, tentando se concentrar nos sons e nos movimentos. Vez ou outra, eles passavam por algum lugar em que outro semideus tinha passado. Dava um profundo suspiro de alívio ao pensar que as feras não estavam inclusas nessa espécie de torneio, lidar com o cão de Hades, Cérbero, seria um problema. Ela percebe galhos quebrados e cortes em árvores, mas eles pareciam antigos, então não ofereciam perigo. Além disso, a discussão de mais cedo ainda não era uma cicatriz bem cuidada em sua memória. Na verdade, ela ainda podia a ver sangrar e apostava que demoraria para que se curasse por completo. O que lhe foi dito pelos dois companheiros provocava uma confusão de sentimentos em si, como jamais sentira: ela sabia que estava agindo por interesse, sabia que estava tentando sobreviver o suficiente para chegar ao final e cumprir o seu desejo. Ela, honestamente, não se sentia mal fazendo isso, pois também emprestara sua força para ambos, mas a maneira como eles a confrontaram a incomodava.

Somado a isso, o estranho apego que a obrigara a ajudar a menina caída com uma flecha a empalando parecia crescer com o tempo e a ver tão decepcionada depois do que Shura dissera tinha tido um inesperado impacto sobre si, não importa o quanto ela repetisse para si mesma que ela não era amiga dos dois, apenas uma companheira de viagem, porque mesmo repetindo isso em sua mente como um mantra, o olhar que Mariah lançara sobre o ombro naquele momento apagava tudo em sua mente.

Shura, por sua vez, mergulhava na vergonha de ter perdido o controle e discutido novamente com Eyria. Apesar de sentir do fundo de seu ser que ele tinha razão na discussão, também sabia ela não traria nada de positivo, apenas serviria para separar ainda mais um do outro, algo que poderia matá-los no fim das contas, apesar disso, preferira a atacar com tudo que tinha.

Em sua mente, as palavras que aprendera ainda em vida o machucavam ao mesmo tempo que o impulsionavam: “uma unidade é feita de homens fortes e que se entendem, tire um só homem e não se é mais uma unidade, é apenas um amontoado humano, fraco e inútil”. Tremia de leve em uma ira sufocada ao pensar que deveria se desculpar com a mulher mesmo sentindo que tinha razão, mas ele sabia que era necessário, para o bem não apenas dele, mas de Mariah, que dependia dele para sobreviver a isso tudo. Ensaiou mentalmente algumas rápidas palavras, mas nenhuma pareceu boa nem em sua cabeça, então se concentrou em continuar caminhando.

***

Com a luz do dia, era bem mais fácil de se movimentar, a floresta também parecia um pouco mais viva e menos assustadora. Os sons da batalha que passaram já tinham se silenciado há tempos e a tensão que pairava sobre eles também se dissipara como água. “Água” Eyria pensa aleatoriamente enquanto percebe um pássaro se abanando como se tivesse acabado de sair de um banho relaxante. Ela se vira discretamente para trás, bem a tempo de ver que Mariah acabava de passar a mão pela garganta, sua careta enquanto engolia a seco só significava uma coisa. “Há quanto tempo não bebia?” a semideusa pensa, Mariah percebe seu olhar preocupado e a observa de volta, sorrindo e corando de leve, enquanto esconde a mão que massageava a garganta seca.

— Me sigam – ela chama, apressando o passo e marchando um pouco mais à direita do que o esperado.

— Bom, já estamos fazendo isso, não é? – Brinca Shura. Mariah não prestava atenção no que ocorria a sua volta, já Eyria dá um leve sorriso sob a máscara, como quem reconhece o esforço cômico do companheiro, mas para não dar o baço a torcer, ela se mantém calada, para a infelicidade do homem, que cora de leve e volta a acompanha-las em silêncio.

Um pouco a frente, caindo de uma pedra cinza-branco quase tomada pelo musgo e pela terra, caía um pequeno filete de água, que serpenteava pelo pântano enlameado e sumia logo a frente, indo para uma caverna. Os olhos de Mariah faiscaram ao ver a água corrente, ela sente o gosto da água em sua boca mesmo antes de toma-la, ela engole a seco, esperando que ninguém percebesse.

— Beba pirralha, - fala Eyria em um tom casual, fingindo que por acaso tinha esbarrado no filete de água e por um acaso maior ainda lembrara que a garota estava ali e precisava de água para sobreviver - antes que você morra de sede ou comece a reclamar.

Mariah não espera por uma segunda permissão, antes que a semideusa pudesse terminar de falar, ela já pulava sobre as pequenas ilhas sólidas de terra e musgo no pântano até se apoiar sob a pequena cachoeira, com a cabeça virada e a boca bem aberta, se enchendo de água e de espuma. Shura, que estava logo atrás das duas, ri da cena. Depois, volta seu olhar para Eyria, que observava a garota com os braços cruzados.

O homem a observa curioso, seus braços, apesar de cruzados, não faziam muita tensão em suas escápulas nuas e delineadas, como se ela estivesse apenas apoiando os braços um no outro calmamente, o que ela não fazia ao estar contrariada. De fato, tudo em seu corpo o fazia crer que ela não estava resmungando internamente: suas pernas não pendulavam seu tronco nervosamente como ela sempre fazia, seu pescoço não parecia rijo e seus ombros estavam levemente caídos. Ele sente o rosto corar. Como se sentisse os olhos de Shura nela, Eyria se vira e o encara ameaçadoramente, retesando toda a sua postura, fazendo com que os músculos do homem se tencionem involuntariamente. Depois, como se não tivesse feito nada, ela se vira e vai para onde a água parecia desaparecer magicamente.

— Maldita boca – ele pragueja, havia chegado a hora.

Shura se aproxima pisando duro, decidido, os poucos passos entre os dois parecem maiores do que deveriam. Depois de alguns metros, ele fica logo atrás dela. Eyria fingia não o perceber ali, mas o homem estava totalmente desconfortável, ela podia perceber pela maneira que se aproximara, como um robô. Em outro momento, ela provavelmente usaria isso contra o orgulho dele, mas não tinha cabeça para isso.

— Obrigado por ter parado para dar água à Mariah. – Ele fala roboticamente, como se tivesse ensaiado para uma apresentação escolar.

— Não. – Ela o corta, sem se virar.

— Como? – Ele pergunta, confuso.

— Não parei por ela, não dou a mínima para a garota.

Shura se sente incomodado, mudando o peso de um pé para o outro.

— Olha, o que eu disse antes...

— Você tinha razão, eu não ligo, já disse. Agora já chega disso.

Eyria ensaia alguns passos para longe, mas quando ela passa por ele, o homem a agarra pelo braço. Por um segundo que pareceu uma eternidade, ela se virou primeiro para o braço, depois para o homem, que agora a soltava. Ela não tinha ideia de que expressão tinha feito, mas foi o bastante para o homem se assustar. Porém, ele não desiste.

— Eu só queria me desculpar – Ele diz com um tom baixo, a soltando – me desculpe pelo braço.

— E eu já disse que eu não ligo, e que já chega disso.

A resposta resoluta e áspera da mulher não chega a impressionar o homem por completo, que já parecia ter se acostumado, mas foi o suficiente para que ele entendesse que o pedido de desculpas ficaria para depois. Com alguns segundos de silêncio mortal entre os dois, Shura desvia o olhar e relaxa o corpo

Eyria sai de perto do homem e caminha em direção à garota, parando um pouco antes, como se tivesse lembrado de algo. A mulher tinha reconsiderado e algo dentro dela a dizia para aceitar as desculpas. Mas ao mesmo tempo, repentinamente algo de fora dela demandava mais atenção.

A visão de Shura era a seguinte: Eyria caminhava pisando duro como de costume para a direção de Mariah, parando por alguns segundos depois de alguns passos. Por um momento ele achara que ela reconsiderara, mas a vê olhando para o lado direito com uma emergência incomum, ele segue o olhar dela e não vê nada além da floresta. Em um segundo, ele pressente o motivo. Saindo de onde eles vieram a toda velocidade, aparece um vulto, que Shura demora para perceber a forma. Era uma semideusa, vestida com uma roupa que misturava couro e tecido como uma armadura leve. Ela tinha um brilho que a envolvia, se misturando com seu cabelo loiro, mas o que chamava a atenção era a macha sob sua roupa na altura de seu ventre.

Era de um vermelho escuro vibrante.

A estranha ruma em direção a Shura a toda, ele saca suas armas e se coloca em posição. Eyria, por sua vez, não ataca, se limita a observar, como se esperando para ver do que o semideus é capaz. É quando o impensável acontece. A mulher para, de olhos arregalados e respiração pesada, olhando diretamente para o homem a sua frente, pronta para atacá-la. Mas ela não parecia aterrorizada com ela, parecia aterrorizada com algo que a seguia, provavelmente o que fizera aquele rasgo em seu abdome. Más notícias.

— Fujam! – Grita e antes do semideus processar o que acontecia, ela passa por ele a toda, desesperada.

Shura se vira e encontra os olhos de Eyria tão perdidos quanto os seus, era primeira vez que eles viam um semideus tão desesperado, a ponto de não decidir por lutar com eles. Mariah estava logo atrás dela, assustada e com a boca ainda cheia de água, que também lhe umedecia os cabelos de um lado, formando uma massa grudada em parte de sua face.

— Mas... o que aconteceu aqui? – Ela pergunta, engolindo o que podia, enquanto o resto lhe escorria pelo canto da boca.

— Também queria saber garota. – Responde Eyria, a olhando de lado.

O homem se aproxima em um rápido trote, ainda olhando para onde a mulher saiu. Assim que chega, se vira para Eyria, que já tinha Mariah ao lado.

— Sabe quem é ela?

— Nem ideia, mas parecia nórdica.

— Armadura de couro, não é? Também achei. – Ele concorda, acenando a cabeça.

— Será que é algum truque? – Pergunta Mariah preocupada, mas se sente um pouco menos tensa quando Shura sacode a cabeça.

— Não mesmo – ele fala, contemplando seus pensamentos, que tentavam inutilmente montar o quebra cabeça da situação – eu conheço olhos de terror quando vejo e aqueles eram genuínos. Ela não era uma ameaça para nós.

— E o que a atacou, é? – A garota pergunta, séria. Silêncio.

Mariah perdera o interesse na discussão dos dois quando percebeu que novamente eles pareciam discordar no que viam então passou a olhar ao redor, como para se certificar de que estavam bem, ou para se acalmar de alguma forma. É quando um barulho chama a atenção da garota, ela olha para a direção e vê algo, algo que não consegui definir.

Shura ainda conversava com Eyria para tentar cruzar informações sobre deusas nórdicas quando sente uma mão gelada envolver a sua, ele olha para baixo e vê Mariah agarrada a ele. Ela olhava fixamente para um ponto atrás dos dois, os fazendo acompanhar seu olhar com os deles, ela parecia não saber o que via, mas definitivamente havia um movimento nas sombras, um movimento lento. E enorme. Shura sente um desconforto e seus instintos o dizem para se mover, Eyria parecia ter sentido o mesmo, já que os dois pulam para trás uma fração de segundo antes de algo passar voando no espaço em que os dois estavam. A mente de ambos acelerou para um milhão. Uma flecha? Não, muito grande. Um machado? Não, não viera girando, ela viera trançando uma parábola de algum lugar da floresta.

— Cuidado, é uma lança!


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