A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 20
O Tesouro do Fogo




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O ouvido de Shura zunia com o grito de Eyria logo ao seu lado, mas mesmo assim seus reflexos não o traíram. Se jogando de lado, o homem fez aparecer uma barreira de músculos em frente a Mariah, que ainda tinha os cabelos grudados ao rosto. Ao lado dele, quase que simultaneamente, Eyria sacara ambos os leques, deixando um repousar em suas costas enquanto o outro era segurado por ambas as suas mãos em frente ao seu corpo. Ambos ficam ligeiramente a frente da garota, que se esforça para ver direito.

O clima que antes era mais ameno, parece ficar pesado assim que o inimigo sai da penumbra da floresta que o cobria e se aproxima a passos calmos dos dois semideuses.

— Mas que semideus é esse? – Shura pergunta, estreitando os olhos como se visse algo disforme a sua frente.

— Não é “esse” – responde Eyria, já em posição de ataque – é “essa”.

— Shura, cuidado!

O grito de Mariah ativa todos os sentidos do homem ao mesmo tempo. Seus músculos se contraem, suas mãos chamam as lâminas rotativas, seus olhos se arregalam e deixam de olhar para mulher, seu pescoço gira e ele sente uma vibração baixa, como a vibração de um diapasão. A lança, cravada da pedra, bem abaixo do filete de água que molhava o pedaço maltrapilho de ceda logo a baixo de sua ponta, vibrava como se alguém o balançasse e antes que Shura colocasse os pensamentos em ordem, ela se desprende da pedra, passando por eles em um giro vertical que quase acerta o obro de Eyria e parando na mão estendida da semideusa, que agora se aproximava.

— Você está bem? – Pergunta Shura à mulher, que assente.

Agora que já saíra completamente de onde a luz era débil, a mulher era totalmente visível, o que não era exatamente algo bom para o semideus. Ele a olhava rangendo os dentes com um olhar desconfiado, a semideusa, por outro lado, caminhava na direção deles com uma postura tranquila e reta, quase despreocupada e meio cabisbaixa, contrastando com sua presença corpulenta e ameaçadora.

Seus braços, troncudos e de músculos bem definidos, pendiam ao lado do seu corpo robusto, um se apoiando à cintura, enquanto o outro girava a lança entre os dedos em um movimento calmo. Seus ombros largos e fortes desciam em uma clavícula torta em um dos lados até o busto, onde os seios da mulher se apertavam por debaixo de ataduras de pano que um dia lembravam o que era a cor branca. O tronco continuava sob as ataduras ainda recortado de cicatrizes até terminar em uma calça de ceda inexplicavelmente conservada, em um tom de verde quase bege e adornada com o que parecia serem flores e folhas.

Por fim, para finalizar seu visual nada convencional de pugilista, a mulher usava ataduras amarradas sobre ambas as mãos, maiores das que de uma pessoa comum, do mesmo tecido que ocultavam seus seios. O que era notável em suas mãos, além do tamanho disforme e da lança que rodava despreocupada, era a cor das ataduras: completamente vermelhas.

Sua máscara de coelho branco avariada nas bordas, por outro lado, conservava uma característica ímpar que intrigava tanto os semideuses quanto Mariah. Ela começava bem a cima da cabeça da mulher com orelhas pontudas e tortas para trás, descia lhe cobrindo boa parte do rosto e parava inexplicavelmente um pouco a cima da boca, revelando lábios pintados de um batom preto que parecia sugar toda a luz que o tocava. Uma cicatriz hipertrófica alta cortava sua boca, partindo em dois o lábio tanto superior quanto inferior bem perto de seu final, começando um pouco acima do queixo dividido e terminando em algum ponto dentro da máscara em sua bochecha esquerda.

— O rosto dela... – Deixou escapar Mariah por detrás de Shura, que quase tinha esquecido que ela estava ali, tamanha a tensão que se acumulava em seu corpo. Sua voz era de total confusão e deslumbramento – Está... exposto.

— Não me pergunte garota – responde Eyria, ainda perdida com a imagem a sua frente – faço tanta ideia quanto você.

— Uma renegada... – balbucia Shura em um tom de reconhecimento quase paterno. Como se adivinhasse os olhares que o penetravam com expectativa nesse momento, ele continua, girando um pouco a cabeça, mas sem tirar os olhos da mulher, que agora estava parada a cinco passos deles – quando uma máscara não cobre totalmente o rosto de um semideus, significa que a sua alma foi renegada por algum motivo pelo deus que o apadrinha, na verdade essa é apenas uma das manifestações desse descontentamento do corpo celestial.

— Boa hora de mostrar serviço, sabe-tudo – retruca Eyria, em tom irônico de felicitação, Shura revira os olhos.

— Isso existe? – Pergunta Mariah, interessada.

Shura se distrai por um segundo, sua mente formula o início da frase que falaria a seguir “sim, são poucos, mas...”, em um vacilo seus olhos inconscientemente desviam da mulher de encontro à Mariah e como se os seguisse, cerca de trinta centímetros de um metal reluzente traçam uma parábola entre Shura e Eyria, passando a centímetros do rosto da garota que se contorce pela surpresa.

— Merda! – Exclama ele, pulando para trás e puxando Mariah consigo pelo capuz, sem olhar para a inimiga.

— Ela... errou por pouco... – diz Mariah em um sopro, tentando recuperar o fôlego com os olhos arregalados e congelada entre se agarrar ao braço de Shura e procurar sua adaga em suas costas.

— Ela não errou. – Explica Eyria preocupada – ela fez isso para chamar nossa atenção.

— Chamar a nossa atenção? – Indaga o homem incrédulo, observando a mulher voltar à sua postura ereta, tirando a ponta da lança do chão e a girando, com a seda na base da lâmina formando um círculo perfeito ao seu lado.

— Sim – Eyria responde, com um olhar estranho para Shura. Um olhar vacilante de reconhecimento. – Eu não a reconheci logo de cara, mas depois do ataque ágil, percebi que já ouvi falar dela. Faço o que fizerem, não tirem os olhos dela!

Mariah ainda estava atordoada, mas mesmo com pernas bambas, seu lado curioso fala mais alto.

— E quem é ela, afinal? – Pergunta, se soltando do homem e segurando sua faca na frente do seu corpo em um movimento automático.

— Seu nome... – começa a semideusa, dando um passo para trás e encorajando com a mão pendida a frente deles fizessem o mesmo. A outra mulher, por outro lado, se restringia a observá-los, como se os estudasse meticulosamente – é... era... Ah-Kum Huo, ela é uma abençoada por Izanagi, o deus japonês da destruição. O que se sabe é que enquanto viva ela era uma assassina em série de um pequeno vilarejo no interior da China, mas se recusava a usar uma arma qualquer, sempre usava as mãos nuas.

— Um deus Japonês abençoando uma chinesa? – Ele pergunta, o tom de incredulidade advindo de sua experiência ainda em vida.

A deusa faz uma pausa para olhar a inimiga, que parara de girar a lança gigantesca, depois conclui:

— Sim, isso é algo humano, mas a maneira como ela mata... dizem que é por isso que o seu deus padrinho não a reconhece por completo, é como se ela causasse muita destruição, mas não nos moldes que ele gostaria.

Ao escutar isso, a mulher investe novamente, dessa vez um pouco mais lenta do que da última vez, como que para eles a percebessem vindo.

Girando o corpo no próprio eixo e esticando o braço rente ao cabo da arma, a mulher faz a lança cortar na horizontal na altura de seu peito, por sorte, seu tamanho avantajado faz com que os três desviem do ataque sem muitos problemas, se abaixando no momento certo. Shura empurra Mariah para baixo sem nem perceber, temendo que ela não tivesse visto o ataque vindo. Com o giro, a lâmina corta o ar em um zumbido agudo, até ser aparada pelo outro braço da mulher.

Shura sente um soco nas costelas e olha para baixo enquanto se afasta de Huo. Mariah o olhava com uma cara enfezada e suja de terra.

— Ei! – Ele reclama, soltando seu capuz que até agora ele segurava.

— Eu sei me abaixar, Shura! – Ela brada, raivosa, cuspindo para se livrar da terra que entrou em sua boca.

De forma inteligente, Eyria aproveita o movimento retardado da mulher ao aparar a inércia do movimento para dar a volta nela. Em um piscar de olhos, ela estava atrás de Ah-Kum Huo, que tinha Shura e Mariah a sua frente. Ela estava virtualmente cercada pelos dois. Por angustiantes minutos ninguém faz nada, a garota observava os três, se estudando em silêncio. A gigante com máscara de coelho observava Shura despreocupadamente, como se ignorasse Eyria atrás de si, enquanto isso, Shura e a mulher sacavam suas armas, cada uma em uma mão, prontos para o ataque. Prestando atenção nos dois, Mariah percebe que eles não observam apenas a inimiga, mas um ao outro também, com olhos nervosos e expressivos indo de um lado para o outro. Mariah sabia que os dois eram diferentes em muitas coisas e sequer se davam bem, mas a sintonia fina dos olhos não deixava dúvidas que eles conseguiam entender o que o outro planejava.

Mais um minuto se passa, a floresta parece ser tomada por um silêncio sepulcral, tanto que Mariah ouvia a batida de seu coração em suas orelhas, ou o medo a fazia acreditar nisso. Um olhar diferente. Eyria olha para Shura, depois varre a floresta na direção da mulher, então volta a fitar o homem. Um segundo depois, o silêncio é dilacerado por um grito de ira. Shura grita e salta, Eyria, em silêncio, abaixa seu centro de gravidade e também investe contra a mulher. O cérebro da garota processa as informações o mais rápido que podia, o grito deveria ser para chamar a atenção da mulher, nem que fosse por um segundo, o suficiente para poder tirar a atenção dela de Eyria por tempo o suficiente para que a semideusa a retalhasse com seus leques. O plano era ótimo, “como eles conseguiram decidir isso em um olhar?” pensa a garota.

Shura, suspenso no ar e ainda gritando, estica o braço bom com o disco zunindo, girando rápido o suficiente para parecer um grande anel sem lâminas e parado. Eyria, atrás da mulher, ataca com os leques fechados, usando as espinhas de bordas afiadas da arma como duas espadas em um corte em “x”, mirando as pernas de Huo.

Enquanto isso, a mulher nada fazia, já Mariah se enche de esperança e até ensaia um sorriso.

Em um segundo, o sorriso se desfaz, suplantado por uma interjeição de surpresa. Com a mão vazia mirada para Shura, ela acerta, em um movimento veloz, a abertura no ataque do homem, entre os dois braços, agarrando sua garganta tão forte e velozmente que ele fica sem reação. Ao mesmo tempo, com o cabo longo de sua arma, ela crava a ponta da lança entre os leques, que se chocam ao mesmo tempo com tamanha força que se cravam na madeira, encontrando o inesperado interior de metal do cabo e ficando ambos presos. Em menos de um momento, os ataques tinham sido parados como se ela previsse seus movimentos.

Tendo Shura em choque sustentado pelo pescoço em sua mão esquerda e Eyria presa pelas fitas dos leques em sua mão direita, a mulher não pensa duas vezes. Traçando um arco feroz sobre sua cabeça com o corpo inerte do homem, Huo arremessa Shura sobre Eyria como um martelo, sem que essa possa fazer nada.

— Ai... – lamenta a Semideusa, ao olhar para cima e ver o sol se eclipsando por um lobo de madeira que crescia.

Shura desaba pesadamente sobre Eyria, se chocando de costas na mulher, que cede com seu peso potencializado pela força de Huo. O golpe emite um grande impacto abafado, que acaba com os dois prostrados no solo. Ainda com a mão apertando o pescoço do homem, ela levanta a lança com a ponta mirada para os dois, pelo tamanho da lâmina, os dois seriam empalados.

Mariah arregala os olhos e o grito sai de sua boca sem que ela perceba, um grito agudo e carregado, vindo direito de seu peito. Vinha tão alto e vibrante que não parecia o grito de uma humana. Assustada pelo grito repentino, Huo olha para Mariah, seus olhos de puro negro se encontram com os marejados da garota e elas se observam por um momento, Mariah se sente cair em um poço profundo, da cor dos olhos da mulher.

Recobrando-se do choque, Shura usa as lâminas no braço que o agarrava pela garganta. A primeira, rumando para a bandagem, é repelida após um som agudo, enquanto a segunda, mirada um pouco acima delas por acidente, encontra carne e arranca sangue da mulher. “Metal?” o homem pensa. Ela urra de dor e olha para o semideus com os lábios cerrados em ódio, sua metade da face oculta não deveria estar diferente. Como se mudasse de ideia quanto a empalar os dois, Huo levanta Shura com violência e o arremessa um pouco acima de si ainda com uma mão apenas, a ferida por um corte que só não foi mais profundo por causa da recuperação rápida da semideusa. O homem se sente flutuar por um instante e no segundo seguinte não via mais nada.

O barulho da madeira de cabo da lança se chocando com a madeira da máscara de Shura preencheu a floresta ao redor deles. O estalo agudo de algo trincando fez o coração de Eyria, que acabava de recobrar a consciência depois de ter sido esmagada, apertar, enquanto Mariah se desesperava ao ver o homem girar como pás um ventilador gigante e cair inerte com o rosto virado para o chão.

— Shura! – Ela grita, se sentindo estranha. Ela não sabia se era do desespero ou da maldição acabando consigo, mas ela sentia as extremidades do seu corpo formigarem.

Tenho que ir até lá

Eyria, ainda no chão, vê pela visão periférica um vulto pequeno sair de onde estava, antes que percebesse, ela já abria a boca para gritar, mas era tarde. Huo se virara para onde vira um movimento e percebeu a garota correndo, como estava longe dela, não pensou pare decidir arremessar sua lança impiedosamente na altura da cabeça de seu alvo. Enquanto Mariah corria, ela apenas observava Shura, jogado de qualquer jeito no solo da floresta, seu coração apertava e ela sentia o rosto quente como se estivesse prestes a chorar.

Em um segundo, ela via Shura logo diante de si, no outro, estrelas multicoloridas dançavam em um fundo preto logo a sua frente, enquanto seu nariz a esquentava e a sufocava. Também sentiu sua cabeça sendo empurrada para trás e só quando atingiu o solo é que a dor veio de verdade, enorme e angustiante. Seu rosto estava mais quente do que antes e a sua visão embaçava por alguma coisa preta, seu pescoço reclamava da torção inesperada e suas costas do impacto no solo, que tirara o ar da garota. Ela agora se sentia sufocar.

— Mariah – ela escuta, a voz era de Eyria. A garota gira a cabeça ainda deitada na direção dela e vê o gato mudar de cinza para uma cor desconhecida, junto com os olhos da semideusa que aumentavam de tamanho, estranhamente embaçados.

A jovem demora a perceber que não eram os olhos e nem a face da mulher que estava embaçada, de fato, sua visão parecia dobrada. Com uma agulhada de dor no rosto, a garota instintivamente toca sua face, sentindo-a molhada, depois a afasta, para ver o que era. Com um esforço enorme ela foca sua visão para que ela se torne única, o que cobria sua face era sangue. Por um instante, Mariah apenas admirou sua mão tingida de algo escarlate, depois, como uma torrente, as emoções e a sanidade vêm, todas ao mesmo tempo. A mulher que a olhava com um sorriso de escárnio no rosto, Shura desacordado a dois metros dos seus pés, Eyria caída com os olhos arregalados a observando, o sangue que escorria de seu rosto e a dor que tomava seu corpo e sua respiração.

— Caralho. Merda. Porra. Caralho - Ela dispara rapidamente, as palavras se confundindo entre si e seu soluço, tentando se colocar de pé ainda cambaleante, com uma voz nasalada por ela estar tapando o nariz com toda a força para evitar o sangramento.

Apoiada na pedra em que a lança tinha se cravado e ainda balançava com o choque do rosto de Mariah nela, a garota tenta se levantar por completo e focar no que acontecia além de seu nariz quebrado. Olhando ao redor, ela procurava pela semideusa, mas ela não estava em lugar nenhum.

Ela havia desaparecido, junto com todo o resto.


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