A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 7
7. Ascensão


Notas iniciais do capítulo

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As Doze Casas se erguiam imponentes, seu mármore branco reluzindo contra o céu azul do dia claro e quente. Milênios de história foram testemunhados por aquelas estruturas, que sobreviveram a inúmeras guerras santas, traições, catástrofes. Acima delas, o templo de Athena, onde a deusa morava. E Sophia encarava tudo, boquiaberta.

— Uau… – murmurou abismada.

Quando passara por ali, dias atrás, não prestara atenção no local, apenas seguira com Galahad. Ainda não tinha noção da importância que aquelas construções tinham. Agora, encarar as Doze Casas tendo o conhecimento de sua importância, a deixou embarbascada.

Da vila até as Doze Casas não era uma caminhada longa, mas, para Sophia, seu retorno demorara mais que a ida. Isso porque pararam na vila para comprar roupas. O alfaiate ficou tão nervoso quando Lucius entrara na loja, que mal falara enquanto os atendia. A menina ficou surpresa ao saber que não havia roupas disponíveis para a entrega imediata; no Santuário, as pessoas faziam roupas por encomenda, para não desperdiçar material. Então, o alfaiate a mediu para confeccionar suas roupas e sandálias, que só ficariam prontas no dia seguinte. Na verdade, o alfaiate dissera que seriam necessários dois dias, mas Lucius perguntou se não tinha como ser mais rápido. O alfaiate rapidamente concordou, mais por medo do que por eficiência.

Depois que saíram da vila, encontraram vários guardas e cavaleiros de bronze patrulhando os arredores das Doze Casas. Todos trataram Lucius com um profundo respeito, e um pouco de medo também, além de se mostraram surpresos por ele ter escolhido um discípulo. Realmente a fama dele não era realmente das melhores.

Quando chegaram ao início das escadarias, Lucius apontou para cima e perguntou:

— Te falaram sobre elas na academia, certo? Sobre as Doze Casas?

Sophia assentiu.

Para chegar ao templo de Athena era necessário cruzar as Doze Casas. Cada uma era protegida por um cavaleiro de Ouro, do respectivo signo da casa, os mais fortes entre os defensores da deusa, prontos para impedir que qualquer invasor subisse para a morada dela. Apenas os cavaleiros de Ouro e pessoas com autorização expressa do Grande Mestre, Athena ou dos doze cavaleiros, podiam circular por lá. Isso significa que ela, como discípula de Lucius, teria aquele privilégio.

— Vamos. - disse Lucius começando a subir a imensa escadaria.

— Espere aí! – a menina encarou a imensa escadaria – Nós vamos subir tudo isso a pé?!

— A menos que você tenha uma ideia melhor, sim. – respondeu.

— Quando eu fui para a academia, o mestre Galahad pegou minha mão e, quando dei por mim, estávamos na vila. – disse Sophia lembrando do quanto ficara enjoada na ocasião.

— Ele usou deslocamento astral com você para descer. – Lucius explicou – Não podemos usar para subir.

— Por que não? – perguntou.

— O cosmo de Athena impede que subamos por qualquer meio sobrenatural. É uma das principais defesas. Além dos cavaleiros de Ouro, claro. Precisamos da autorização de cada um deles para passar pelas casas.

— Mas você é um cavaleiro de Ouro! - estranho Sophia – Por que precisa da autorização dos outros para subir?

— A história está cheia de cavaleiros que traíram Athena. É apenas precaução.

— E se algum deles disser que você não pode passar? - quis saber a menina.

— Bem, eu fico pelo caminho ou luto com o cavaleiro pelo direito de passar. - explicou – Venha, vamos.

E começou a subir as escadas.

Sophia encarou as escadarias mais uma vez antes de começar a subida, atrás de seu novo mestre. Encarou as costas de seu mestre, o cabelo longo e negro sendo levado pelo vento. Não sabia muito bem o que pensar de Lucius, nem o que aguardar do novo treinamento. Na academia, tinha uma rotina fixa e dividia as preocupações com Derya e Shaoran. Ali, toda a atenção de Lucius estaria sobre ela e tinha certeza que seria muito mais exaustivo do que o treinamento dado por Kaiola e Claire. Na verdade, tinha a impressão que Lucius poderia fazê-la treinar até morrer de exaustão, como a amazona de Cobra dizia que acontecia em alguns casos.

Porém, não estava com medo, muito pelo contrário. Estava tão ansiosa que queria sair correndo na frente de Lucius. Só que as Doze Casas não eram um local que podia simplesmente passar correndo por elas. Precisava ficar junto ao cavaleiro de Escorpião.

A primeira casa era a casa de Áries, marcada com o símbolo do signo na entrada, acima das imensas colunas. De perto, ela era muito mais impressionante que vista de longe. Havia alguns domos em cima da casa, que lembrou a Sophia cebolas. A menina tentou recordar o que Derya havia falado sobre quem habitava a primeira casa: tinha algo a ver com conserto ou algo assim. Pensava que encontraria uma oficina com um monte de peças de carros, como as que via em Athenas, e não estava preparada para o que aconteceu tão logo se aproximaram.

Um corpo passou voando por Lucius e Sophia antes mesmo que eles tivessem terminado de subir os degraus. Era um homem e sua queda abriu um rasgo imenso nas escadas. Antes que se recuperasse desse susto, Sophia viu um segundo homem ser arremessado e abrir outro rasgo, bem maior que o primeiro. A menina achou que os dois haviam morrido, mas eles se mexeram e se levantaram, com dificuldade.

Passos se aproximaram dos dois e Sophia olhou para dentro da casa de Áries. Uma mulher, vestida em uma armadura de Ouro reluzente, onde se destacavam dois imensos chifres curvos, caminhava naquela direção, o cosmo queimando ao redor de seu corpo. Sophia jurava que havia fogo queimando na cabeça da amazona. Os dois homens agora estavam em pânico, mas não saíram correndo. Pelo contrário, venceram os degraus de onde foram jogados e se ajoelharam na entrada da casa, as testas encostadas no chão.

— Imploramos seu perdão, senhora! – disse um deles, a voz trêmula.

— Não foi nossa intenção que isso acontecesse! – completou o outro.

— Não era a intenção? – a voz da mulher era gélida – Não era a intenção!? – a voz dela foi aumentando de volume – SE NÃO ERA ISSO QUE QUERIAM, NÃO DEVIAM EXPÔ-LAS AO PERIGO APENAS PORQUE VOCÊS DOIS SÃO FRACOS!

— M-mas senhora… – gaguejou um deles – Não foi nada demais…

Os olhos da amazona brilharam de fúria.

— Não foi nada… – ela repetiu devagar – COMO OUSAM DIZER QUE NÃO FOI NADA?! – explodiu.

Com um rápido movimento, a amazona pegou os dois pelos pés e saiu arrastando-os casa de Áries adentro. Sophia olhou para Lucius, os olhos arregalados, mas o cavaleiro de Escorpião apenas continuou a andar, logo atrás da amazona, que sequer notara a existência deles.

— O que está acontecendo? – murmurou Sophia assustada.

— Nada fora do comum. – sussurrou Lucius de volta.

Dentro da casa de Áries, Sophia viu duas estátuas de prata em cima de dois pedestais. Quando chegou mais perto, percebeu que não eram estátuas; eram armaduras. Uma era a figura de uma baleia e a outra era um lagarto. A mulher pegou a cabeça dos dois homens e as aproximou das armaduras.

— VEJAM ISSO E ME DIGAM SE NÃO É NADA?!! – gritou enfurecida antes de esfregar a cara deles nas armaduras.

Depois de dar uma boa esfregada nas armaduras com o rosto dos homens, ela os soltou e os cavaleiros (pelo menos Sophia achava que eram cavaleiros), analisaram as armaduras, sob o olhar raivoso da amazona de Áries.

— T-tem um arranhãozinho aqui.... – murmurou um deles – Não é muito grave...

Mesmo que só estivesse ali há menos de cinco minutos, Sophia já percebera que aquela fora a pior coisa que o homem podia falar.

— NÃO É MUITO GRAVE?!! – explodiu a amazona pegando o homem pelos cabelos e sacudindo-o, como se fosse um boneco de pano – COMO VOCÊ OUSA A DIZER QUE NÃO É GRAVE?! NÃO PERCEBE QUE ISSO DÓI? QUE ELA ESTÁ SOFRENDO? - e o jogou na parede no lado oposto da sala.

— M-mas senhora… – o outro homem olhava para sua própria armadura – C-como pode algo tão pequeno ser tão grave?

A amazona de Áries se virou para o outro, os olhos faiscando de fúria.

— Algo pequeno? – ela murmurava enquanto se aproximava dele, os passos tão duros que deixavam rachaduras no chão – Pequeno, tipo, uma unha encravada.... – e então a voz dela se alterou quando ela o pegou pelo pescoço e o levantou – VOCÊ JÁ TEVE UMA UNHA ENCRAVADA, SEU MALDITO?! SABE O QUANTO DÓI?!

— Sim, senhora! – o cavaleiro chorava – Quer dizer, não senhora! – o homem nem sabia o que dizer.

— VOCÊS CAVALEIROS PENSAM QUE ORICALCO DÁ EM ÁRVORES! – gritava ela sacudindo o homem – QUE PÓ DE ESTRELA É VENDIDO NO MERCADINHO DA VILA! E NEM SE IMPORTAM COM A DOR QUE CAUSAM EM SUA POBRE ARMADURA! – e o jogou bem em cima do outro homem, que estava tentando se levantar.

De repente, a amazona se voltou para as armaduras, como se algo tivesse chamado sua atenção. Ela se aproximou, parou em frente as duas e ficou um tempo calada, balançando a cabeça, como se estivesse ouvindo algo. Os dois cavaleiros, e Sophia não sabia se eles eram corajosos ou muito burros, se aproximaram novamente da amazona e aguardaram, ansiosos.

— Tudo bem, tudo bem. Eu entendo. – ela balançou a cabeça afirmativamente batendo o dedo no rosto – Se vocês dizem, eu acredito…

Sophia entendeu que ela estava ouvindo as armaduras. Pensou que aquilo não deveria ser possível, até lembrar-se de quando ouvira a pulsação da armadura de Galahad. Era quase certeza que aquela amazona conseguia ouvir algo mais que pulsos.

Depois de ouvir o que as armaduras tinham a dizer, a amazona se virou para os dois homens que caíram de joelhos novamente, a testa no chão, em sinal de submissão.

— A sorte de vocês é que elas se importam com vocês. - avisou – E eu me importo com elas. – a amazona suspirou – Vou consertá-las.

— Obrigado senhora! – agradeceram os dois, ao mesmo tempo.

— NÃO AGRADEÇAM A MIM, AGRADEÇAM A ELAS! – gritou a amazona pegando os dois pelas roupas e jogando-os aos pés das armaduras.

— Obrigado! – eles disseram fazendo reverência para suas armaduras – Prometemos cuidar melhor de vocês!

— É BOM MESMO! – avisou a amazona de Áries – OU EU VOU USAR O SANGUE DE VOCÊS PARA LAVAR O CHÃO DA MINHA CASA. AGORA CHISPEM DAQUI!

Ela não precisou repetir a ordem. Os homens correram para fora da casa, pelo mesmo lugar de onde Lucius e Sophia vieram.

— Oi, Kiza. – cumprimentou o cavaleiro de Escorpião, para o desespero de Sophia.

Kiza, a amazona de Áries, se voltou para os dois, os olhos brilhando de fúria. Sophia instintivamente se escondeu atrás de Lucius.

— O QUE É? – gritou ela – VOCÊ DANIFICOU SUA ARMADURA TAMBÉM?!

— Não. – respondeu o cavaleiro de Escorpião calmamente – Quero apenas passar para minha casa.

— Ah! Ok. - disse suavemente – Pode passar.

“Que mudança!”, pensou Sophia sem acreditar.

Foi só então que amazona percebeu que havia mais alguém com Lucius e olhou para Sophia com curiosidade. A menina se encolheu ainda mais.

— Quem é essa? – perguntou Kiza, interessada.

— Essa é Sophia. A partir de hoje será minha discípula. - respondeu Lucius.

— Discípula sua? - surpreendeu-se Kiza e analisou a menina – Ela não dura três dias. - falou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

— Também acho. - concordou o cavaleiro de Escorpião.

— Ei! - reclamou Sophia – Eu estou ouvindo vocês, sabia?

Os dois cavaleiros olharam para Sophia e depois começaram a rir, o que só aumentou a frustração da menina.

— Já que você está aqui, quer ver meu novo projeto? - perguntou a amazona apontando com o dedo para dentro da casa.

— Claro. - concordou Lucius animado.

Sophia o encarou, chocada, sem acreditar que ele ainda tinha coragem de ficar no mesmo ambiente que a amazona de Áries. E como ela não podia simplesmente sair dali sem ele, se resignou a acompanhá-lo. Kiza estalou os dedos e as armaduras que estavam nos pedestais flutuaram, acompanhando-a. Adentraram na casa de Áries, onde havia um local onde cristais resplandeciam e orbes transparentes flutuavam cheios de um pó brilhoso. Uma mesa de pedra estava posta no canto da sala, onde várias ferramentas repousavam. O local parecia mais um planetário que uma oficina, pensou Sophia.

Assim que entraram naquele lugar, a armadura de Kiza brilhou, desprendeu-se de seu corpo e reformou-se em um outro pedestal. Ela tinha a forma de um carneiro e Sophia pensou que Kiza parecia bem menor sem a pesada armadura. Agora que não estava gritando e jogando pessoas escadas abaixo, Kiza era a calma encarnada e Sophia pode reparar melhor nela. Seus cabelos eram vermelhos alaranjados e foi por causa daquela cor que Sophia chegara a imaginar que a cabeça dela estava em chamas. Reparou também que ela não tinha sobrancelhas, a não ser dois pontinhos da mesma cor dos cabelos em cima dos olhos azuis. A amazona vestia calças de couro marrom, bem apertadas, com um corpete da mesma cor, por cima de uma camisa branca. Ela usava botas de salto alto, pretas, cheias de cordões e que chegava aos joelhos. Sophia a achou parecida com uma daquelas pessoas que se autodenominavam “steampunk”.

— Eu já mostro, só preciso achar… - ela procurava algo na mesa – CADÊ??? - ela recomeçou a gritar – CADÊ A PORCARIA DO MEU, ah, achei. - ela pegou algo que pareciam óculos, mas cujas lentes eram cheias de engrenagens. Kiza tocou neles e as lentes foram para a frente, como se fossem várias lupas sobrepostas – Preciso só dar uma olhada nisso… - ela se agachou ao lado das armaduras de Baleia e de Lagarto e passou a analisá-las com os óculos – Como pensei… Meio cristal de oricalco e um punhado de pó para cada uma… - ela tirou os óculos - E vocês ficarão novinhas em folha, meninas. - e deu duas tapinhas carinhosas em cada armadura, sorrindo.

Sophia imediatamente se lembrou de algo que ouvira na academia. Kaiola dissera aos aspirantes que as urnas onde as armaduras ficavam eram chamadas de Caixa de Pandora e que lá as armaduras se recuperavam de danos pequenos. Para danos maiores havia a necessidade de procurar a ajuda das pessoas de Jamiel, os muvianos, que possuíam as técnicas de restauração. Por isso que Kiza tinha características tão diferentes. Ela era uma muviana.

Todavia, os danos das armaduras pareciam pequenos (apesar de que ela não diria aquilo em voz alta nem a pau). Por que então os cavaleiros as levaram até ali?

— Kiza. - chamou Lucius e a amazona olhou – Sophia quer perguntar algo.

“Como ele sabia?”, perguntou-se a menina abismada, adicionando o medo de seu mestre poder ler seus pensamentos ao dele possivelmente matá-la no treinamento.

— Ah, claro. - a amazona se voltou para Sophia – Pergunte, querida.

Kiza quase parecia normal. Talvez ela só explodisse com quem quebrasse uma armadura. Todavia, por precaução, devia fazer a pergunta de uma forma que não desse a entender que menosprezasse o sofrimento das armaduras.

— A mestra Kaiola disse que as armaduras se curam dentro das Caixas de Pandora de… danos menores. - começou, um pouco hesitante. Como Kiza não gritou com ela, continuou – E, para danos maiores, sangue de cavaleiros. Mas a senhora vai consertá-las e não pediu o sangue… - não diretamente, os coitados apanharam bastante – Não entendo.

Esperava que a amazona recomeçasse a gritar e já estava pronta para sair correndo, mas a amazona apenas sorriu.

— É verdade. Ferimentos como esses podem ser recuperados dentro das urnas. Levaria de três a quatro dias. Porém, estamos com poucos cavaleiros para realizar missões. Por isso, estou reparando o mais rápido possível os danos, mesmo os menores, para o caso de os cavaleiros precisarem ser enviados a algum lugar. Nesse caso, apenas oricalco e pó de estrela são necessários.

— Poucos cavaleiros? - estranhou Sophia – Achei que tinha poucas armaduras disponíveis para os aspirantes. Está faltando ou não cavaleiros?

— Isso é relativo. - Kiza caminhou até a mesa dela e pousou os óculos lá – Se formos apenas pela quantidade, estamos bem. Mas há muitas especificidades. Os doze de Ouro só saem com Athena ou a mando do Grande Mestre. Temos cavaleiros de prata em cargos específicos, que não saem do Santuário, como Kaiola e Claire… - e olhando para Lucius, falou – A propósito, estou sabendo do que aconteceu. Que merda, hein? Como você está?

— Como você acha que estou? - devolveu, ríspido.

Sophia achou que seu mestre ou era muito forte ou muito burro para falar daquele jeito com aquela amazona. Só que Kiza não se sentiu ofendida, apenas balançou a cabeça. Talvez os dois fossem amigos ou estivessem acostumados com o jeito de falar um do outro.

— Acho que você, decididamente, não está normal. - falou seriamente – Por qual outro motivo você pegaria uma discípula? - e caiu na risada.

Sem entender do que exatamente estavam falando, Sophia começou a achar que aqueles dois eram doidos.

— Tá, mas quantos cavaleiros têm? - quis saber a menina.

— Além dos doze de ouro… - Kiza pensou um pouco – Dezoito de prata e trinta e três de bronze.

— Poucos. - lamentou Lucius – Houve uma época em que as fileiras estavam completas.

— Esperamos que você ajude a mudar isso, Sophia. - desejou Kiza encarando-a.

Para Sophia aquilo soou mais como uma cobrança do que como um desejo.

— E o que você queria me mostrar? - perguntou Lucius.

— Ah, é mesmo! Venham!

Kiza os levou para outra parte da casa de Áries, uma saleta bem menor que a anterior e, ali sim, parecia uma oficina. Estava cheio de instrumentos de metal, engrenagens brilhosas e muitos, muitos fios. Uma outra mesa, menor do que a do cômodo anterior, estava no centro da saleta, onde algo dourado, parecendo uma luva, se destacava. Sophia ficou boquiaberta quando percebeu o que era.

— Um membro biônico? - e deu um passo para trás, instintivamente.

— Uma tentativa de um. - anunciou orgulhosa – Para cavaleiros.

Kiza achou estranho que Sophia ficasse tão assustada.

— Não precisa ter medo. Ela não é funcional. - explicou.

— Sophia foi muito perseguida por caçadores de crianças com membros biônicos. - explicou Lucius – Por isso está temerosa.

— Ah, que chato. - falou Kiza com sinceridade – Mas não se preocupe, Sophia, isso aqui não será usado para caçar crianças. Venha, aproxime-se. Veja melhor.

Sophia não saiu do lugar, mas Lucius deu um leve empurrão nela, forçando-a a dar alguns passos na direção da mesa. Sem saída, aproximou-se.

— Eu não vi ninguém usando membros biônicos aqui. - falou a menina – Para que você está construindo?

— Membros biônicos são feitos de metais mundanos, que não conduzem cosmo. Se alguém tentasse usar o cosmo com um braço biônico, por exemplo, o que você acha que aconteceria?

Sophia pensou um pouco.

— Nada. Ou o membro explodiria.

— Exato. - falou a amazona satisfeita – Você é inteligente, talvez sobreviva a Lucius. - ela riu e Sophia franziu o cenho – Então, se um cavaleiro ou amazona perde um membro, ele deve abandonar sua armadura. Às vezes, envergonhado, eles põem fim a sua vida. Ou deixam o Santuário. Não querem ser um fardo. - havia uma profunda tristeza na fala da amazona – Então, comecei a pesquisar uma forma de reverter isso. Esse é meu projeto. - e mostrou a luva inacabada.

— Nossa… - Sophia olhou com respeito para a luva dourada. O medo se esvanecera – Como a senhora vai fazer para ela funcionar nos cavaleiros?

— Usando oricalco. O mesmo material das armaduras.

— Pensei que oricalco fosse um metal raro. - disse a menina se lembrando que Derya passara uma noite toda falando sobre aquilo.

— E é. - confirmou Kiza – Por isso tenho procurado o máximo possível para dar continuidade ao meu projeto. Quem quer servir a Athena deveria ter todos os meios que propiciasse isso. E eu quero garantir que todos possam continuar lutando, se assim desejarem.

Kiza não era nada do que imaginara no primeiro momento, percebeu Sophia. Na verdade, era uma boa pessoa. Só meio estressada. Na verdade, muito estressada, no que dizia respeito a armaduras danificadas.

— Então, Lucius, - falou Kiza – se um dia você perder um braço, me procure. Estou precisando de cobaias. - e fez um ‘joinha’ com o polegar.

“Que tipo de pedido é esse?”, pensou a menina horrorizada. Mas Lucius não ficou chateado, apenas riu.

— Pode deixar, Kiza. Se eu perder um braço, você será a primeira pessoa que eu procurarei.

— Que bom! Vou cobrar! - disse, animada – E, Sophia, quando conseguir uma armadura, cuide bem dela, certo?

— Pode deixar, senhora.

Sophia preferiria morrer a deixar algo acontecer a sua armadura e ter que encarar a fúria da amazona de Áries.

Após uma despedida animada entre os dois cavaleiros, que combinaram ir qualquer dia para a taverna da vila porque Kiza precisava “tomar umas depois de tanto trabalho”, voltaram a subir as escadas, agora rumo à casa de Touro. Antes que chegassem na segunda casa, cruzaram com um cavaleiro e uma amazona que desciam em direção à casa que tinham acabado de deixar. Ambos levavam suas armaduras em urnas e Sophia notou que eram cavaleiros de bronze.

— Mestre Lucius. - falou o rapaz – Mestra Kiza está na casa de Áries?

— Sim, está.

Os dois jovens se entreolharam, assustados.

— Fomos reportar nossa missão ao Grande Mestre e ele disse que devíamos verificar as armaduras, por precaução. - explicou o rapaz.

— Como está o humor dela? - perguntou a amazona, preocupada

— Está ótimo. - respondeu Lucius com um sorriso.

Os dois cavaleiros de bronze sorriram, aliviados.

— Obrigado, senhor. - agradeceram fazendo uma reverência e continuaram a descida em direção à casa de Áries.

Quando os dois se afastaram, Sophia encarou seu professor, abismada.

— Por que você disse que ela estava de bom humor? - questionou.

— Primeiro, me chame de “mestre” ou “senhor”. Nunca “você”. - avisou – E eu falei a verdade. Kiza está de bom humor.

— Aquilo lá é bom humor? - perguntou horrorizada – Eu não quero saber como é ela de mau humor.

— Ah, você saberá. - garantiu Lucius – Dá pra ouvir da casa de Escorpião. - e apontou para cima.

Sophia encarou as imensas escadarias, de onde só conseguia enxergar a casa de Touro.

— Venha, vamos. Temos muito chão pela frente. - chamou ele, continuando a subir as escadas.

Sophia engoliu em seco, se perguntando o que a esperava na casa seguinte.

A casa de Touro estava vazia. Um pergaminho estava fincado em um dos pilares na entrada da casa, um recado fora rabiscado nele e dizia: “Estou na casa de Câncer”.

— Vamos continuar. - falou Lucius despreocupadamente.

— E isso pode? - perguntou Sophia confusa.

— Isso o quê?

Sophia abriu os braços, mostrando a casa vazia.

— Sairmos de nossas casas? - Lucius riu – Claro que sim. Olhe eu aqui, fora da casa de Escorpião.

— Mas apenas com permissão, certo? E para resolver certas coisas, foi o que ouvi na academia. Então, quer dizer que vocês podem também sair e visitar uns aos outros?

— Não há nenhum problema.

— E se alguém tentasse invadir o Santuário agora?

Lucius sorriu.

— Se alguém passasse por ela. - e ele apontou com o polegar para trás, na direção da casa de Áries – Teria ainda que passar por Gêmeos antes de chegar à casa de Câncer. Nesse meio tempo Aldebaran poderia voltar para sua casa. Ou esperar lá em Câncer mesmo.

— Você já viu alguma invasão ao Santuário? - quis saber a menina, curiosa.

— Já. Mas foram apenas alguns monstros. Nenhum ataque de outro deus.

— E quantos chegaram à casa de Escorpião?

Lucius deu uma risada.

— Nada nunca passou da casa de Áries.

Sophia olhou para trás, admirada.

— Sobre sua dúvida a respeito de sairmos de nossas casas, as regras já foram mais rígidas. - explicou Lucius enquanto caminhavam pela casa de Touro – Mas o Grande Mestre entendeu que, se não há uma ameaça concreta à vida de Athena, nós podemos circular dentro do Santuário com mais liberdade. Claro, para sair para o mundo exterior ainda é um preciso permissão. E a qualquer sinal de perigo, voltamos correndo para cá.

— Ah…. Nossa, devia ser chato ficar só em um lugar… O Grande Mestre é muito legal, não é? Por facilitar para vocês… - a menina estava fascinada.

Lucius lembrou do castigo.

— Sim, ele é uma excelente pessoa.

Passaram pela casa de Touro, que Sophia achou bem mais elegante que a de Áries, pois tinha vários candelabros e uma estátua de um imenso touro no centro. Depois, seguiram em direção a Gêmeos. Os tênis velhos de Sophia começavam a incomodar, apertando seus pés e seus dedos já doíam. Mas nada falou, continuou a andar.

A casa de Gêmeos era diferente das duas primeiras: em vez de pilares em toda a frente do prédio, tinha duas paredes, com anjos representados em cada uma delas. Sophia sentiu um arrepio quando viu as imagens, sem saber por quê. Entraram na casa de Gêmeos. Imediatamente, uma força imensa caiu sobre ela. Seus joelhos cederam e ela caiu, para frente, sem nenhum controle sobre seu corpo. Sentia uma angústia imensa, como se algo estivesse tentando esmagar sua alma. Luzes piscavam em frente aos seus olhos e sua boca começou a formigar. Achou que fosse perder os sentidos, mas então sentiu a mão de Lucius em suas costas, o cosmo dele protegendo-a.

— Gêmeos. - falou ele para a escuridão – Sou eu, Lucius. E a outra pessoa que você sente é minha discípula, Sophia.

A pressão sobre o corpo dela sumiu tão rápido quanto chegara. Lucius a ajudou a se levantar, mas as pernas dela ainda tremiam. O pânico não a abandonara.

“Então esse é o real poder de um cavaleiro de Ouro?”, pensou abismada enquanto Lucius a sustentava.

A escuridão ao redor deles sumiu e uma figura apareceu, flutuando em pose de meditação em frente aos dois. À primeira vista, parecia que aquela criatura tinha três rostos. Mas eram máscaras, notou a menina, uma de cada lado da cabeça e uma protegendo o que deveria ser o real rosto do cavaleiro. Os cabelos eram pretos, tão pretos que eram quase azulados, e saiam pelo capacete da armadura. Quando viu Lucius, o cavaleiro saiu da pose de meditação e colocou os pés no chão. Depois, sem dizer uma palavra, deu um passo para o lado, a capa esvoaçando durante o gesto, permitindo a passagem deles, sem dizer uma única palavra. Lucius acenou com a cabeça e o cavaleiro retribuiu.

Apenas quando deixaram a casa de Gêmeos foi que Sophia reencontrou a sua voz.

— O que foi isso? - foi mais um sussurro que uma fala.

— Gêmeos. Eles criam uma distorção do espaço-tempo na casa. Assim, quem entra não sai a menos que eles permitam. O que você sentiu foi apenas o resquício do cosmo usado para criar a ilusão.

— Eles? - perguntou, ainda confusa – Eu vi apenas um.

— É uma longa história.

— Temos muito degraus ainda.

Lucius deu uma risada.

— Parece que você já se recuperou. - apesar de não aparentar, Lucius estava aliviado. Tinha esquecido o que o poder do cosmo de um cavaleiro de Ouro podia fazer em um aspirante – Muito bem, vou contar a história de Gêmeos. Havia dois irmãos que treinaram em algum lugar na América do Sul. Apesar de serem de sexos diferentes, eram muito parecidos e suas forças se igualavam. Quando estavam na idade de reivindicarem a armadura de Gêmeos, o Grande Mestre disse que teriam que lutar por ela. A luta durou mil dias e em nenhum momento nenhum deles sobrepujou o outro.

— Mil dias?! Putz, eles não comiam? Não iam ao banheiro?

— Não. Seus cosmos os mantinham.

— Caralho! - exclamou a menina.

— Achei que Galahad tinha arrancado esse palavreado de você. - comentou Lucius despreocupadamente.

— Ah, ele tentou. - garantiu Sophia.

— Vamos continuar esse trabalho. - garantiu ele.

— Tá certo. - e quando Lucius lhe lançou um olhar gélido, corrigiu apressadamente – Sim, mestre. - e, depois, pediu ansiosamente – Pode continuar a história de Gêmeos? Por favor?

Lucius contou que as lendas sempre falam que, quando dois cavaleiros de Ouro entram em uma luta, ela durará mil dias, já que seus poderes são equivalentes. Por isso, quando o Grande Mestre viu a luta dos irmãos se aproximar daquela marca, entendeu que ambos tinham o poder e a determinação suficiente para se tornarem o cavaleiro de Gêmeos. Porém, não seria daquela forma que chegariam a um consenso. E decidiu que seria a própria armadura de Gêmeos que resolveria a disputa. A armadura foi colocada entre os dois irmãos e as pessoas esperavam que ela apontasse seus braços na direção daquele que acreditava ser o mais digno de usá-la. Mas a armadura surpreendeu a todos, até mesmo aos irmãos, ao apontar seus braços para os dois. Então o Grande Mestre anunciou o vencedor. Ambos os irmãos seriam os cavaleiros de Gêmeos.

— Ambos? - estranhou Sophia.

— Sim. O Grande Mestre disse que a armadura decidira que ambos a mereciam.

— Mas ela é só uma!

— Exato. Então, para que as coisas ficassem justas, o cavaleiro de Libra da época sugeriu que os dois deviam reversar a casa de Gêmeos. Ambos usariam a armadura, por um mesmo período e depois entregariam a armadura para o irmão, dando continuidade ao ciclo. A única condição que foi colocada era que nunca, ninguém, deveria saber quem estava usando a armadura.

— Mas eles são de sexo diferentes. Deve dá para perceber a diferença na armadura.

— Nunca se percebeu. Dizem que os dois são esguios, tem a mesma altura e há pouca diferença anatômica. As mais evidentes são cobertas pela armadura. E, como você viu, Gêmeos usam uma máscara.

— Por isso você os trata no plural. - entendeu a menina – Porque você não sabe quem é, ou quem são, os cavaleiros.

— Isso.

— E você não faz ideia qual dos dois está lá. - e apontou para a casa de Gêmeos que ficava para trás.

— Não.

— Alguém sabe? - estava muito curiosa para saber.

— O Grande Mestre. Athena. E Saphyra.

Sophia franziu o cenho. Já ouvira aquele nome.

— Saphyra? A amazona de Libra?

— Sim. Ela namora com Gêmeos.

— Qual deles?

Lucius deu de ombros.

— Ninguém sabe.

— E onde fica o outro gêmeo que não fica na casa?

— Ninguém sabe.

Sophia não conseguia acreditar.

— Mas é só vê a cara deles não é? Para saber quem tá na casa e quem tá fora!

— Exceto o Grande Mestre, Athena e Saphyra, ninguém conhece as faces de Gêmeos. - explicou Lucius pacientemente.

— Então eles podem andar por aí, na vila, lá fora, em qualquer lugar e você passaria por eles sem nem saber que é um cavaleiro de Ouro?! - perguntou, sem acreditar.

— É.

— Você nunca teve curiosidade de saber quem é? - quis saber Sophia, já que ela estava morrendo de curiosidade.

— Claro que já. - confessou – Até perceber que isso não importava. O que importa é a fidelidade deles e seu trabalho.

Por mais estranho que parecesse, Sophia teve vontade rir. Aquela situação era tão bizarra que era legal, muito legal. Só que Shaoran ficaria bem decepcionado quando soubesse que a paixonite dele pela amazona de Libra não teria futuro porque ela já tinha namorado. Ou namorada. Bem, ela tinha alguém.

A entrada da casa de Câncer era diferente das outras três, sua arquitetura abrindo-se como se fosse um ‘X’. Assim que chegaram lá, Sophia hesitou um pouco em entrar, mas Lucius fez um gesto impaciente com a cabeça, chamando-a. A essa altura, sentia como se seus pés estivessem em chamas. Pensou em tirar os tênis. Será que seria desrespeitoso andar pelas casas de pés descalços? Melhor não arriscar. E se estavam na casa de Câncer, estavam na metade do caminho para a casa de Escorpião. Decidiu pensar nisso como um treinamento, então teria que aguentar.

Diferente da casa de Gêmeos, a casa de Câncer era toda iluminada. Não viram ninguém a princípio, porém Lucius, em vez de seguir reto em direção à saída, caminhou para o lado direito da casa. Os pilares terminavam em uma pequena varanda, onde havia uma mesa e dois cavaleiros de Ouro estavam sentados. O que Sophia achou estranho foi que a mesa tinha quatro lugares e um dos cavaleiros estava sentado em frente aos lugares vazios, olhando atentamente para eles. Percebeu também que havia duas xícaras de chá fumegante e duas fatias de bolo em frente às cadeiras vazias. A expressão do homem era similar à de Kiza ouvindo as armaduras.

— Sim, claro. - ele dizia para o vazio – Eu entendo como vocês se sentem…. - ele parecia ouvir algo e continuou – Sim, há uma solução. - o homem ouviu um pouco mais e sorriu – Claro que posso ajudar vocês. Vocês têm minha palavra. Posso procurar sua filha e dar o recado a ela. - ele tinha pergaminho e uma caneta tinteiro na mão e começou a anotar algo – Sim… sim… Estou entendendo… - e quando ele terminou, encarou o vazio novamente – Agora… Vocês precisam seguir seu caminho. - ele ouviu – Sei que dá medo, mas permanecer aqui só vai lhes trazer mais sofrimento. - ouviu mais um pouco – Tenho certeza que a sua filha pensaria assim. - ouviu mais – Quando vocês quiserem.

O cavaleiro se levantou e fez um gesto com a mão. Algo surgiu no ar e Sophia percebeu que era um buraco. Não, uma passagem. Do outro lado, a menina teve um vislumbre de outras pessoas e, surpresa, percebeu que nas cadeiras vazias, duas silhuetas, no contorno de um homem e uma mulher brilharam à luz da passagem aberta pelo cavaleiro. Contudo, Sophia não conseguiu sustentar o olhar por muito tempo. Começou a sentir uma sensação estranha, como se houvesse uma força puxando o ar de dentro de seu peito. Sua respiração ficou ofegante até que Lucius colocou a mão em seu ombro e sussurrou:

— Olhe para o chão.

Ela obedeceu e a sensação passou. Então, o que quer que fosse aquilo precisava de contato visual, pensou a menina. Mas o que exatamente era aquilo?

— Pode levantar a cabeça, Sophia. – Lucius falou e foi quando os cavaleiros perceberam sua presença.

— Lucius! - exclamou alguém – Que surpresa!

Sophia levantou os olhos e viu os dois cavaleiros. O que estava de pé usava uma máscara que parecia que tinha espinhos dos lados. Mas não eram espinhos, entendeu a menina, eram referências às patas de um caranguejo. Aquele devia ser o cavaleiro de Câncer. Ele era alto e corpulento, diferente de Lucius, que era esguio. Tinha o cabelo preto, bem cheio e cacheado, cujos anéis desciam por seu pescoço, se destacando na pele clara. Seus olhos eram cor de mel, de um dourado profundo, que encantou Sophia.

— Olá Lorenzo. - cumprimentou o cavaleiro de Escorpião – Vi que você voltou aos trabalhos. – e apontou para a mesa.

— Ele nunca parrrou. - falou a pessoa que estava sentada, se levantando – Apenas estava chateado demais e acabava afugentando os espirrritos. - ela falava com um sotaque pesado, arrastando os ‘r’s.

Sophia tinha achado que se tratava de outro cavaleiro, mas era uma amazona. Quando a mulher se levantou, a menina ficou impressionada: era a pessoa mais alta que já vira. Mais alta que os outros dois cavaleiros ali. Mais alta até que Galahad, que era um homem grande. Ela tinha o cabelo castanho claro, presos em uma trança que ia até a sua cintura, porém, os lados do cabelo eram raspados. Seus olhos eram azuis e ela tinha uma cicatriz em forma de cruz na sobrancelha direita. Os braços dela eram tão grossos que deviam ser da largura do tronco de Sophia. Lembrava à menina as halterofilistas que via nos hologramas de propaganda de vida saudável. Só que as halterofilistas do mundo exterior pareciam meninas magrelas perto daquela mulher.

— Sophia, estes são Aldebaran de Touro. - e apontou para a mulher – E Lorenzo de Câncer. - e apontou para o homem – Pessoal, essa é Sophia, minha discípula.

Lorenzo encarou a menina, boquiaberto, nitidamente abismado com o que Lucius falou. Aldebaran, ao contrário, abaixou-se e ficou apoiada em um só joelho, para ficar com a altura mais aproximada da de Sophia e estendeu a mão para ela. Só que a mão da amazona era tão grande que Sophia segurou apenas dois dedos de sua mão.

— É um prrrazerrr Sophia. - disse ela balançando a mão da menina, animada – Eu ouvi falarrr de você.

— Ouviu? - surpreendeu-se a menina.

Aldebaran fez que sim.

— Você é a nova amiga de Athena. - disse a mulher sorrindo, simpática.

As bochechas de Sophia arderam e ela sorriu sem jeito.

— Você fala engraçado. - comentou a menina antes de receber um cascudo de Lucius – Ai! - e colocou as mãos na cabeça.

Em vez de ficar chateada com o comentário, Aldebaran riu.

— Eu passei a maiorrr parrrte da vida na RRRRússia. - explicou ela – Não consegui me livrrrar do sotaque.

— Você é bem grande também. - falou Sophia e se encolheu esperando um cascudo, mas Lucius nada fez.

Aldebaran riu novamente.

— Que bom que sou. A arrmadurra de Touro fica melhorrr em pessoas grrrandes, não acha? - perguntou piscando o olho.

— Acho que sim. - Sophia também gostou de Aldebaran, da mesma forma que gostara de Galahad.

— Desculpe se a assustei, Sophia. - pediu Lorenzo se aproximando – Minha habilidade pode perturbar almas vivas, principalmente as almas de pessoas sem treinamento. Ainda bem que Lucius sabia o que fazer.

— Mas, o que o senhor estava fazendo? Com quem estava falando? - quis saber a menina.

— Desde criança eu vejo e falo com os mortos. - revelou ele – E, por isso, os espíritos me procuram para ajudá-los com coisas que os perturbam e os impedem de partir desse mundo. Por exemplo, esse casal que me procurou. - ele apontou para a mesa – A filha deles acredita que eles a abandonaram, mas eles morreram num acidente, sem conseguir voltar para ela. Eu irei procurá-la e dizer o que aconteceu a eles.

— Os cavaleiros de Câncer têm uma ligação com o mundo dos espíritos. - explicou Lucius – Mas a habilidade de Lorenzo é bem rara. Normalmente os cavaleiros de Câncer aprendem a falar com os mortos durante o treinamento, mas ele já sabia desde criança.

— Desde criança? Você não tinha medo? Dos espíritos? - perguntou Sophia assustada.

— Eu não sabia distinguir vivos dos mortos. - Lorenzo caminhou até a mesa e Lucius e Sophia o acompanharam – Por sorte, minha família tinha histórico de pessoas como eu, então minha mãe me ajudou a lidar com isso.

— E foi porrr causa dessa habilidade que a antiga amazona de Câncerrr o trrreinou. - completou Aldebaran.

— E o que foi aquilo? Aquele buraco? - quis saber Sophia.

— Os espíritos que estão presos aqui nem sempre conseguem encontrar o caminho para prosseguir. - falou o cavaleiro de Câncer – Então, eu abro o portal para o submundo, assim, eles podem seguir sua jornada.

— Nossa, que legal da sua parte! - elogiou Sophia – E os meninos da academia pensam que cavaleiros só batem! Vocês fazem coisas muito mais incríveis!

Lorenzo ruborizou e Lucius sabia o que vinha a seguir.

— Querem comer um bolo antes de seguir? - perguntou animado – Eu fiz hoje! - e mostrou os bolos em cima da mesa.

— Eu não vou comer comida de defunto. - rebateu Lucius franzindo o cenho.

— Eu como! - exclamou Aldebaran puxando os dois pratos em sua direção – Não tenho prrroblema com isso.

— Comida de defunto? - estranhou Sophia.

— Sabe uma das coisas que mais frustram os mortos, Sophia? – perguntou inesperadamente Lorenzo.

A menina fez que não com a cabeça.

— Que os tratem diferente de como eram tratados em vida. Muitos se tornam agressivos porque são ignorados e não entendem que é porque as pessoas não os veem. Por isso, quando eles me visitam, faço questão de tratá-los como trataria uma pessoa viva. Ofereço chá e bolo. - Lorenzo sorriu – Eles não podem comer, claro, mas gostam da gentileza.

Sophia entendeu o que Lorenzo dizia, mas não conseguia entender por que a recusa de seu mestre em comer da comida oferecida aos mortos.

— Por que você… o senhor, mestre, não come o bolo? - questionou a menina - Eles nem tocam na comida!

— Para mim, é comida de defunto. - Lucius foi taxativo – Muito obrigado, Lorenzo, mas eu e Sophia temos que seguir em frente.

— Fique Lucius! - pediu Aldebaran abocanhando os bolos – Você terrrá muito tempo para torrrturrra-la.

— Como é? - assustou-se Sophia.

— E tenho certeza que ela está com fome. - completou Lorenzo – Olhe só a expressão dessa criança! Aposto que na academia ainda servem aquela comida horrorosa!

— Sophia não está com fome. - decretou Lucius.

— Tô sim. - rebateu a menina.

E antes que seu mestre pudesse fazer qualquer coisa, Lorenzo já havia pego a menina pela mão e a levado até a mesa. Sabendo que não adiantava discutir com o cavaleiro de Câncer quando este decidia alimentar alguém, Lucius revirou os olhos e não teve outra saída a não ser sentar-se.

— Vou pegar um pedaço de bolo para vocês. Sem ser de defunto. - enfatizou Lorenzo.

Sophia viu Lorenzo sumir dentro da casa de Câncer e olhou em volta. Percebeu que, enquanto Aldebaran comia os pedaços de bolo dos espíritos, na mesa havia, ao lado dos pratos, um elmo dourado, que parecia ser o de sua armadura. Sophia gelou quando viu que, onde deveria ter dois chifres, havia só um e o outro estava quebrado.

— Que-que-quebrou… - gaguejou apontando o elmo e olhando para Lucius. A menina estava pálida.

— Não precisa ficar com medo. - Lucius sorriu – Faz tempo que está assim.

Aldebaran parou de comer e os encarou.

— O quê?

Lucius resumiu o que tinha acontecido na casa de Áries e como Kiza havia assustado Sophia. A amazona de Touro parou de comer e acenou com a cabeça, seriamente.

— Se fosse eu que tivesse quebrrrado a arrrmaduraa, também ficaria assustada. - revelou Aldebaran – Mas isso aconteceu há mais de duzentos anos. O cavaleirrro de Pégaso quebrrrou o chifrrer para passar da casa de Tourrro e salvarr Athena. O Aldebarrram da época prreferriu não consertarr. Querria que isso ficasse de aviso parra os outrros cavaleiros de Tourrro.

— Aldebaran da época? - questionou Sophia.

— Aldebaran é a estrela mais brilhante da constelação de Touro. - explicou Lucius – Todos os cavaleiros de Touro abandonam seu nome e tomam o título de Aldebaran quando assumem a armadura.

— E qual seu nome de verdade? - perguntou Sophia antes de receber outro cascudo de Lucius – Ai, por que eu apanhei?!

— É desrespeitoso perguntar o nome de um cavaleiro de Touro. - censurou ele.

— Ah, tudo bem! - Aldebaran sorriu – Vem cá, Sophia, vou te contarr.

A amazona se inclinou e falou no ouvido de Sophia, como se contasse um segredo. A menina ouviu, atenta e depois sorriu.

— Que nome lindo! Prometo guardar segredo!

— Obrrigada. - agradeceu a amazona.

— Pode me contar o que aconteceu na casa de Touro quando o cavaleiro de Pégaso quebrou o chifre? – pediu a menina.

Aldebaram começou a contar, animadamente, o acontecido. Sophia ouviu atentamente toda a história e depois perguntou onde estava o chifre que fora quebrado. Foi surpreendida ao ver que a amazona de Touro o usava pendurando em um colar no pescoço. Todos os cavaleiros de Touro usavam aquele colar, como uma lembrança do que acontecera. Logo, Lorenzo chegou com a comida e Sophia olhava para o mais belo pedaço de bolo que já vira. Tinha três camadas de bolo de chocolate, com recheio branco entre eles, uma cobertura rosada e um único e singelo morango em cima da fatia. Era tão bonito que ela teve pena de comer. Quando finalmente deu uma garfada e levou a boca, seus olhos se encheram de lágrimas de alegria.

— É a melhor coisa que eu já comi na vida! - exclamou.

Lorenzo ficou extremamente feliz e agora Lucius sabia que Sophia teria um defensor para sempre. Suspirou, resignado.

— Athena já comeu da sua comida? - perguntou a menina empolgada – Porque tenho certeza que ela vai amar.

— Ah, sim, eu sempre cozinho para a pequena Athena. - os olhos de Lorenzo brilharam – Esses dias fizemos cannoli!

Lucius parou na mesma hora de comer e encarou Lorenzo.

— Então… Você foi ver Athena? - perguntou.

Lorenzo encarou o amigo, um pouco envergonhado.

— É… Foi… A cabeça de vento estava certa dessa vez… Athena pediu para eu ir cozinhar com ela… - e baixando a voz, pediu – Mas não diga isso a Lilian, ok? Não quero que ela fique se achando.

Havia uma tensão na mesa que Sophia não entendeu. Era algo referente a Athena e ela teve vontade de perguntar, mas teve medo de receber outro cascudo. Por isso, fez como Aldebaran, apenas continuou comendo.

— Eu sei que não vai demorar para você ser tirado do castigo também. - falou o cavaleiro de Câncer – É só questão de tempo.

— Castigo? - Sophia não conseguiu ficar calada e a pergunta escapuliu de seus lábios. Mas quando Lucius a encarou, ela encheu a boca de bolo e não falou mais nada.

— Se serrve de consolo, Lorrrenzo foi o único que foi chamado ao templo. Saphyrrra e Lílian, não. - completou Aldebaran.

— Não preciso de consolo. - cortou o cavaleiro de Escorpião – A punição do Grande Mestre é justa e sou merecedor dela. Não há nada mais a dizer sobre isso. - e, com essa fala, deixou claro que não queria mais tocar no assunto.

Por mais que tivesse com muita curiosidade, Sophia achou prudente apenas ouvir a conversa dos cavaleiros e comer o máximo que conseguisse daquele bolo maravilhoso. Mas logo seu mestre a estava apressado para continuar a subida. Lorenzo insistiu para que eles levassem mais comida para servir de lanche para Sophia pois Lorenzo disse a Lucius que “você vai acabar matando a menina de fome”, e então saíram da casa de Câncer. Os pés de Sophia estavam menos doloridos com o descanso, mas a menina sabia que apenas mais um lance de escada e estariam a incomodando novamente.

— Que castigo foi esse? - ela não conseguiu segurar a curiosidade.

— Não interessa. - cortou ele – Apenas ande.

— Foi o Grande Mestre que lhe deu um castigo? - ela estava surpresa – Por quê? Você não parece alguém que faria algo errado.

A frase não foi dita com bajulação e Lucius percebeu isso. A sinceridade de Sophia em achar que ele estava acima do erro o fez hesitar um pouco. Porém, ainda era orgulhoso demais para falar sobre uma vergonha tão grande para alguém que ele pretendia ensinar.

— Não sou imune a erros, Sophia. - falou com sinceridade – Nenhum cavaleiro ou amazona é. Porém, não quero falar sobre isso agora. Te contarei, em outro momento.

Achou que a menina ia insistir, mas Sophia assentiu e continuaram a subir.

Das escadas era possível ver duas esculturas de leão, uma de cada lado da escada, em posição ameaçadora, como se desafiando aos visitantes a prosseguir. A quinta casa, Leão, estava adiante Sophia começou a imaginar com o que se depararia. Até então, nada era o que imaginava que seria, e com Leão não seria diferente. Porém, ela não fazia ideia do que ia encontrar. Nem mesmo Lucius sabia. Se soubesse, teria ficado com Sophia na casa de Câncer até achar que estava tudo seguro para os olhos dos dois.

— Ei! - exclamou Sophia assim que venceram os degraus – Aquilo ali é…

— Pelos deuses… - murmurou Lucius passando a mão na testa – É…

Havia um homem deitado nos primeiros degraus da casa de Leão. Mas não era um homem qualquer nem estava deitado de qualquer jeito. Pelo porte e físico, Sophia soube que era um cavaleiro. E, se estava lá, só podia ser o de Leão. Normalmente poderia vislumbrar qual era o cavaleiro por sua armadura, mas o homem não usava nenhuma.

Na verdade, ele não usava nada.

Nada.

Apenas óculos escuros e uma pequena toalha branca, que cobria somente sua genitália.

— Que diabos é isso? - perguntou Sophia assombrada.

— Isso é Terry de Leão. - falou Lucius como se estivesse com vergonha de admitir que aquele homem era um cavaleiro.

A pele do homem era negra e vistosa, visivelmente bem cuidada. Sua cabeça era raspada e resplandecia ao sol, seus músculos eram bem definidos, tão definidos que lembravam a Sophia as esculturas da Antiguidade Clássica. Sim, parecia que o corpo dele fora esculpido a mão por um talentoso artista. E ele não aparentava nenhuma vergonha quando percebeu que tinha inesperados espectadores.

— Ora, ora, meu amigo Lucius! – ele exclamou e Sophia duvidava que aqueles dois fossem amigos – Eu não vi você saindo mais cedo da sua casa. Na verdade, estou surpreso de você ter saído! Com tudo que aconteceu, imaginei que você estaria se remoendo de remorso! Eu estaria! Não, espere. – ele tirou os óculos – Eu jamais cometeria o erro que você cometeu. – e piscou o olho para Lucius.

A animosidade era tanta que Sophia ficou com dificuldade para respirar. Tudo que queria era sair dali correndo, voltar para a casa de Câncer e comer mais bolo enquanto Lucius resolvia aquela situação.

Havia muita coisa que Lucius poderia dizer a Terry, mas sabia que de nada adiantaria. O que o cavaleiro de Leão queria era palco, que lhe dessem atenção. Queria saber que atingira Lucius com suas palavras, assim teria um certo poder sobre ele. Quando se conheceram, tantos anos atrás, Lucius costumava cair naquele tipo de provocação. Contudo, percebera que a melhor coisa a fazer quando se tratava de Terry era ignorar e não perder tempo com ele.

— Preciso passar para minha casa. – disse com a expressão mais neutra possível.

Terry ficou visivelmente incomodado.

— Nem uma palavra, Lucius? – questionou – Uma defesa calorosa? Uma explicação chorosa? Vai só pedir para passar?

Sophia entendeu que Terry queria uma briga ou, pelo menos, uma discussão. Lucius, contudo, não estava disposto a dar nenhum dos dois.

— Preciso passar. – foi o que o cavaleiro de Escorpião disse – Estou com pressa.

Enquanto Terry ainda o encarava, numa mistura de surpresa e indignação, Sophia ouviu passos e um menino, um pouco mais velho que ela, apareceu. Usava roupas de aspirante e trazia uma bandeja dourada em suas mãos, com um copo de limonada enfeitado com uma rodela de limão e um guarda-chuvinha e muitas pedras de gelo. Sophia o achou muito familiar.

— Seu refresco, mestre. – disse ele antes de perceber que havia pessoas lá – Ah, senhor Lucius. – e fez uma breve reverência.

— Olá, Yusuke. - e olhando para Sophia, disse – Sophia, esse é o discípulo de Terry.

— Sophia? - surpreendeu-se o menino – Eu sei quem você é. Meu irmão falou sobre você. - e uma raiva se apossou dos olhos dele.

— Seu irmão? - então ela entendeu a porque o achou familiar – Você é o irmão do Kosuke? O menino não respondeu, apenas a encarou, com raiva.

— Ora, ora, temos sentimentos em ebulição aqui. - falou Terry enquanto pegava a limonada com seu discípulo – O que me leva a perguntar… O que você está fazendo aqui, doce criança? - e levou o canudo à boca.

— Sophia é minha discípula. - disse Lucius.

Terry cuspiu a limonada e começou a rir descontroladamente. Riu tanto que a toalhinha que cobria suas partes íntimas caiu. Rapidamente, Lucius cobriu os olhos de Sophia, que agradeceu internamente ao seu mestre. Não era uma visão que queria ter.

Depois de uma boa rodada de gargalhadas, Terry pegou a toalhinha, limpou-se e entregou ao seu discípulo antes de dizer:

— Traga outra. E mais limonada, ok?

— Sim, mestre. - o menino saiu.

— Podemos passar? - perguntou Lucius impaciente, ainda cobrindo os olhos de Sophia – Estou apressado.

— Calma, Lulu, só um minuto. - mesmo sem enxergar, Sophia pode sentir a raiva de Lucius por ter sido chamado de “Lulu” – Você me deu uma ideia e tanto.

Quando o menino trouxe outra toalhinha e mais limonada, Terry cobriu suas partes e Lucius tirou a mão dos olhos de Sophia, que estava tão ansiosa quanto seu mestre para sair dali o mais rápido possível.

— Então… - Terry tomou um gole de seu suco – Conte-me a história de vocês dois. - e olhou para as duas crianças.

— Não tem nenhuma história, mestre. - falou Yusuke com respeito, mas, ainda assim, contrariado.

— Mas vocês não se conhecem? - perguntou Terry interessado.

— Não, mestre. - respondeu o menino – Apenas ouvi sobre como essa menina desrespeita as regras da Academia de aspirantes. - e a encarou com raiva.

— Alto lá! - exclamou Sophia revoltada – Não tinha nenhuma regra sobre não chutar o saco dos outros, ok? Eu não fui avisada disso!

Terry caiu na risada e Yusuke ficou com mais raiva e acusou:

— Se fosse só isso, tudo bem, você não sabia como é a honra que é ser um guerreiro de Athena. Mas você o espancou em um treinamento.

— Eu lutei com ele honradamente! - defendeu-se a menina – Quem é desonrado é seu irmão, que precisou de três meninos me segurando pra bater em mim.

— Isso é mentira! - revoltou-se o menino também – Meu irmão não faria isso!

— Talvez não na sua frente, porque ele é um hipócrita, um dissimulado!

Yusuke deu um passo a frente, mas Terry levantou um braço, impedindo que ele continuasse. Porém, não parecia nenhum pouco chateado com a discussão, como Lucius estava. Na verdade, o cavaleiro de Leão estava radiante.

— Vocês parecem que tem assuntos inacabados, crianças. - disse ele antes de tomar mais um gole de limonada antes de continuar – Por que não resolvemos isso de outra forma? Por que não uma luta na arena dos aspirantes? Vocês dois, um contra o outro?

— Não. - respondeu Lucius incisivo – Sophia não teve o mesmo treinamento que Yusuke. Seria injusto.

— Não teve o mesmo tempo de treinamento, mas, pelo que ouvi falar, ela foi mais útil que quatro cavaleiros de ouro. - e encarou Lucius zombeteiro enquanto tomava mais da limonada.

Lucius travou o queixo e encarou Terry com fúria. O cavaleiro de Leão ficou feliz em ter atingido o ego do outro, mas Lucius ainda tinha um pouco de autocontrole.

— Não. - reforçou – Sophia tem pouco treinamento. Não vou colocá-la em uma arena apenas para que seu ego seja alimentado, Terry. Se você vê seu pupilo como diversão, o problema é seu. Não submeterei Sophia a isso. - e antes que o outro dissesse mais alguma coisa, completou – Posso passar ou teremos que lutar?

Terry não ficou nenhum pouco preocupado com a ameaça de Lucius e bebeu mais um pouco de limonada. Sophia estava muito nervosa, imaginando se acabaria sendo o motivo de um embate entre os dois cavaleiros. Encarou Yusuke e percebeu, surpresa, que ele parecia tão aflito quanto ela com a possibilidade de presenciar uma batalha.

— Tudo bem, Lucius. - falou o homem com um sorriso indolente – Vou aceitar sua palavra que a menina tem pouco treinamento e essa é sua preocupação. Daqui a um tempo conversaremos de novo e veremos qual será sua desculpa. Se ela durar até lá, claro. Podem passar. - e pôs os óculos de sol novamente, voltando a sua postura relaxada

Lucius teve vontade de dizer que em um mês Sophia poderia dar uma boa surra em Yusuke, mas sabia que era isso que Terry pretendia. Ele o faria perder a cabeça e depois conseguiria o que queria. Era sempre assim, desde os tempos da academia. Se fosse uma disputa que envolvesse só os dois, entraria de cabeça. Mas Sophia era inocente naquela história. E, caso ela entrasse na disputa dos dois, nunca sairia: se Sophia ganhasse a luta contra Yusuke. Terry quereria revanche e a obrigaria a lutar de novo; se Sophia perdesse, seria lembrada daquilo para sempre. Era um peso grande demais para a menina. E, só por isso, Lucius engoliu a frustração, calado.

— Vamos, Sophia. - e a tocou para longe dali.

A menina ainda trocou olhares com Yusuke, que a encarava com frustração e raiva. Sabia que ele queria lutar com ela, pois seu olhar era bem parecido com o do seu irmão. Todavia, assim que saíram da casa de Leão, mesmo com seu mestre ainda muito tenso, Sophia não pode deixar de dar uma risadinha.

— Por que está rindo? - perguntou Lucius carrancudo.

— Derya e Shaoran vão rir muito quando eu contar que o irmão do Kosuke tá mais pra empregadinha do cavaleiro de Leão que discípulo. Só faltou o avental. - e riu mais.

Lucius a encarou, surpreso, pensou um pouco e riu também, a tensão se esvaindo.

— Isso é verdade. Pobre garoto.

— Você vai fazer aquilo também? - perguntou ela apontando para trás.

— Tomar sol seminu nas escadarias ou fazer você de empregadinha?

— As duas coisas.

— Nenhuma delas. - garantiu ele – Sei que Agatha adoraria que eu tivesse a mesma desinibição de Terry, mas prefiro que minha nudez não seja exposta. E também não acho justo fazer o discípulo de empregado. Claro, pedirei para você realizar algumas tarefas, afinal, você morará na minha casa. Mas nada como aquilo.

Diante do que ele dissera, Sophia só tinha uma dúvida.

— Quem é Agatha?

— A amazona de Peixes. - respondeu prontamente, a expressão suavizando.

— Hummm. - Sophia deu uma risadinha – Sua namorada?

Para a surpresa da menina, ele ruborizou levemente.

— É.

— Não brinca! - ela exclamou – Você tem uma namorada?!

— É tão estranho assim? - quis saber, rindo da surpresa dela.

— Bem, levando em consideração que todo mundo fica em choque quando você diz que tem uma discípula, achei que a única pessoa com quem você convivia era sua irmã porque… é sua irmã!

— Eles ficam em choque porque eu sempre disse que não treinaria ninguém. E eu não costumo voltar atrás no que eu disse. E, lembre, “senhor” ou “mestre”. Nunca “você.”

Sophia fez um muxoxo.

— E o que te fez mudar de ideia, mestre? - quis saber ela.

“Você.”, pensou ele, porém, respondeu:

— Pessoas podem mudar de ideia. - e não disse mais nada.

A entrada da casa de Virgem era ladeada por duas imensas estátuas de buda e Sophia se perguntou o que elas fariam ali, já que aquele era um templo grego. Porém, já vira tanta coisa estranha até ali que deixou pra perguntar quando visse o interior da casa. A menina adentrou na casa de Virgem, sem perceber que seu mestre havia parado na porta e limpava cuidadosamente os pés. Quando Lucius percebeu que ela entrara, gritou, assustado:

— Sophia, volte!

Mas já era tarde demais. Sophia olhou brevemente para trás, mas, segundos depois, estava pendurada de ponta cabeça, sendo sacudida pelo pé por alguém.

— Ai! Ei! Pare!

— Dharma! - Lucius correu até a casa e Sophia pode ver apenas suas pernas – Ela é minha discípula!

Sophia foi solta e caiu de bunda no chão.

— Ai, cacete! Você é doido? - perguntou antes de levantar a cabeça.

Um homem de pele escura e cabelos longos muito pretos a olhava. Ele tinha um pontinho vermelho no meio da testa e seus olhos eram de um verde profundo que deixou a menina admirada. Seu rosto era bem liso, sem nenhum pelo, jovem como o de Lucius e estranhamente sério, mas sereno. Ele a olhou no chão e Sophia percebeu que ele encarava seu tênis surrado. E logo, seu tênis deixou seus pés e estava nas mãos do homem, que, com um gesto, simplesmente os pulverizou.

— Ei!!! - gritou Sophia enquanto o homem sorria, satisfeito.

Ele então a olhou novamente e Sophia achou que ele a pulverizaria também, mas ele abaixou-se e observou seus pés. Sophia fez o mesmo. Seus pés estavam inchados, por causa da longa caminhada e dos tênis apertados. Também havia bolhas por toda parte e algumas já tinha estourado. Depois da análise do cavaleiro, ele se levantou, a pegou com agilidade, a pôs debaixo do braço e simplesmente foi caminhando casa de Virgem adentro.

— Ei! - Sophia gritou se debatendo – Me larga! Me larga!

— Não adiante gritar, Sophia. - avisou Lucius logo atrás dela – Dharma é surdo.

A menina parou de falar e se remexer na mesma hora, chocada.

— Para onde ele tá me levando? - perguntou assustada.

— Tenha calma, ele não vai lhe fazer mal. - falou seu mestre.

Chegaram a uma sala tão limpa que Sophia pensou que estava em um hospital. Dharma a sentou em cima de uma mesa de mármore, pegou os pés dela e os analisou. De repente, várias pessoas surgiram ao redor dele, servos pelo que Sophia percebeu, e olharam seus pés também. Sem que Dharma dissesse uma palavra, os servos saíram e começaram a trazer coisas para ele, que, rapidamente, começou a tratar dos ferimentos dela, enquanto a menina encarava apenas confusa.

— O que está acontecendo?

— Você estava sentindo muita dor, certo? - perguntou Lucius.

— Bem… Sim.

— Dharma sentiu sua dor quando você entrou na casa dele. E está dando um jeito nela.

— Ah… - ela encarou o cavaleiro de Virgem fazer curativos perfeitamente simétricos em seus pés – Por isso ele pulverizou meu tênis? Por que estava me causando dor?

— Não. Foi porque estavam sujos mesmo. Dharma odeia sujeira.

Depois de ter cuidado dos seus ferimentos, Dharma a colocou no chão, delicadamente e encarou Lucius, com uma carranca. Depois, começou a gesticular e apontar para a roupa dela. Sophia percebeu que ele usava linguagem dos sinais. Já vira pessoas fazendo aquilo.

— Eu já encomendei roupa e calçados para ela. - respondeu Lucius para o outro, mas ele não apenas falou, ele usou também a linguagem de sinais – Fica pronto amanhã.

Dharma falou mais alguma coisa e Lucius suspirou, antes de responder, com a voz e com a linguagem de sinais:

— Não, eu não ia obrigar o alfaiate a fazer na mesma hora e ficar do lado dele até terminar. Você sabe que coisas feitas com pressa ficam malfeitas.

Dharma parou por um momento, considerando o que Lucius falara. Depois, fez um gesto que Sophia pode compreender como um pedido de espera e Lucius bufou, exasperado. Logo em seguida, Dharma voltou com um tênis rosa, lindo e cheio de brilho, do tipo que Sophia apenas admirava nos comerciais e entregou para ela, sorrindo. Depois, falou algo que Lucius traduziu.

— Ele pede desculpas por não ter roupas do seu tamanho para te livrar desses trapos, mas quer que você fique com os tênis, já que ele pulverizou o seu. Ele tem certeza que é do seu tamanho.

— Ah, obrigada. - e depois, olhou para Lucius – Como eu falo ‘obrigada’ em linguagem de sinais?

— Ele entendeu. Dharma pode ler lábios.

— Mas eu quero falar obrigada de forma completa. - disse.

Lucius sorriu e encarou o cavaleiro de Virgem, antes de gesticular e falar:

— Ela quer dizer obrigada. - e para Sophia, ele ensinou o gesto que era a mão direita aberta na testa e a mão esquerda no peito e afastando-as ao mesmo tempo.

— Obrigada. - disse Sophia, usando também a linguagem de sinais.

Dharma respondeu e Sophia nem precisou de tradução para saber que ele dizia ‘de nada’.

— Podemos passar? - perguntou Lucius.

Dharma fez que sim e fez um gesto com a mão, para eles irem logo. Sophia rapidamente calçou os tênis, os olhos brilhando porque eram muito confortáveis e lindos.

— Obrigada! - agradeceu novamente – É como se meus pés estivessem sendo abraçados por nuvens! - ela não sabia falar essa segunda parte em línguas de sinais, mas Lucius traduziu.

Dharma sorriu e fez de novo o gesto para eles irem.

— Vamos, que agora ele, com certeza, fará uma faxina porque sujamos a casa de Virgem. - falou e Dharma fez um gesto positivo, confirmando a intenção.

Os dois saíram, Sophia saltitando muito feliz com seus tênis novos, em direção à casa de Libra.

— Por que você não disse que seus pés doíam? - perguntou Lucius.

— Faria diferença? - retrucou a menina.

— Eu poderia ir mais devagar. - rebateu ele.

Sophia fez que não com a cabeça.

— Eu encarei isso como parte do treinamento. - explicou – Sei que não vai ser fácil, então eu não ia ficar reclamando por umas bolhas no pé.

— Justo. - falou Lucius sorrindo.

Nunca admitiria, mas estava orgulhoso da atitude dela. A menina tinha fibra.

Sophia olhou para trás, para a casa de Virgem e comentou:

— Ele é estranho. - e levou um cascudo – Ai, porque eu apanhei?!

— Você não deve falar isso só porque ele é surdo! - censurou.

Sophia o encarou, sem acreditar.

— O cara me põe de cabeça pra baixo, me larga no chão, pulveriza meus tênis, faz praticamente uma cirurgia nos meus pés, me traz um tênis novo, exatamente do meu tamanho, e, convenhamos, as Doze Casas não é o local que eu imaginaria achar um tênis desses, e o senhor acha que eu to falando da surdez dele? - Sophia falou aquilo em um fôlego só e estava visivelmente indignada.

Lucius a observou por um momento e depois sacudiu a cabeça, afirmativamente.

— Tem razão. Sinto muito por pensar isso.

— Wooowww!! - a menina deu uma risada – O senhor tá me pedindo desculpas?

— Eu disse que sentia muito. - retrucou fechando a cara – É diferente. Vamos logo.

Agora que estava de tênis novos e superconfortáveis, Sophia pode seguir o mesmo passo de sue mestre, que acabou andando um pouco mais rápido, com o novo ânimo da sua discípula.

Ao chegarem na casa de Libra, um templo poligonal, em cujo topo descansava uma solitária torre central em estilo oriental, Sophia parou, olhou para dentro e franziu o cenho.

— Qual a pegadinha da vez? - perguntou.

— Pegadinha? - estranhou Lucius.

— Do início até aqui só vi coisas estranhas. - ela começou a falar e a contar nos dedos – Uma doida jogando pessoas as paredes, uma casa vazia, um lugar que me derrubou com um cara que ninguém sabe o que é, um local que os fantasmas vão visitar, um cara nu nas escadarias com sua empregadinha e um viciado em limpeza que pulverizou meu tênis porque tava sujo. - ela respirou fundo retomando o folego – O que vai ser dessa vez?

— Vamos conferir? - convidou ele apontando para dentro.

Sophia respirou fundo e adentrou a casa de Libra.

Como a de Touro, a casa estava vazia. Mas não exatamente vazia. A passagem terminava em uma parede maciça e uma armadura estava posta bem em frente a ela. Próximo a armadura, um púlpito, com pena e pergaminho.

— Saphyra não está. Temos que falar com a armadura.

— Como é?

— Bem, você pode adicionar isso à sua lista. - ele se encaminhou ao púlpito – Saphyra costuma agir como embaixadora do Santuário e mediadora em conflitos. Quando ela não está, para passar pela casa de Libra, você deve escrever em um pergaminho o porquê de você querer passar e colocar na balança da armadura. - ele falava enquanto escrevia – Se o pedido for justo, a casa se abrirá. Se não, a armadura se formará e nos atacará. E, claro, teríamos que quebrar a casa para passar. Aqui está. - ele pegou o pergaminho e levou até a armadura. Colocou na balança e esperou.

Os pratos da armadura de Libra começaram a subir e descer, como se estivesse pesando o pergaminho. Depois de alguns segundos, os pratos se nivelaram e a parede atrás da armadura começou a se mover, liberando o caminho. Os dois prosseguiram e Lucius ouviu Sophia falar:

— Obrigada, dona armadura.

O trajeto para a casa de Escorpião foi feito em silêncio, Sophia com o coração acelerado. Olhou de esguelha para seu mestre, pensando em como as pessoas estavam enganadas. A fama dele podia ser ruim, mas depois de todos os cavaleiros que conhecera, Lucius poderia ser considerado o mais sem graça, a menos que tivesse alguma habilidade escondida, como cuspir fogo ou soltar laser pelos olhos.

— Chegamos. - havia alívio na voz de Lucius quando entraram na casa de Escorpião.

A entrada da casa de Escorpião era simples, com colunas lisas e o nome “Scorpius” escrito na fachada, bem embaixo de uma gravura de um escorpião. Apesar de a subida ter sido muito interessante, e estressante também, Sophia estava aliviada de chegar ao seu destino. Destino esse, que estava ligado àquela casa.

— Vamos começar? - perguntou Lucius.

— Começar o quê? - perguntou Sophia.

Ele não respondeu, apenas partiu para cima dela. Sophia se jogou no chão, atônita.

— Treinamento, já?

— Por que não? - ele estalou os dedos – Não vai me dizer que essa subidinha lhe deixou cansada?

Sim, tinha, mas não ia admitir.

Ele a atacou de novo e ela rolou para o lado.

— Deixe eu, pelo menos tirar os tênis! - reclamou rolando pelo chão – Não quero estragá-los!

— Tudo bem. - permitiu Lucius.

Sophia rapidamente tirou os tênis, se pôs de pé e assumiu postura de luta, Lucius sorriu e fez o mesmo.

O treinamento começara.

 

 

 

 

 

 


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