O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 37
O espetáculo em Milton Keynes




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Daquela vez não iria acontecer uma tragédia – nem contaminação da multidão, nem invasão dalek, nem a destruição da Terra com o início naquele vilarejo pacato e praticamente anónimo – mas Clara estava apreensiva. Mordia os lábios e esfregava as mãos uma na outra. O Doutor reparou na sua perturbação. Passou-lhe um braço pelos ombros que a surpreendeu. Ele não apreciava o conforto do contacto físico, detestava abraços e impunha-se pela distância digna, respeitosa e até um pouco ofensiva de homem solitário e orgulhoso. Por isso, aquela proximidade deixou-a ainda mais tensa.

O sorriso que lhe dispensou, cândido e viril, embrulhou-lhe o estômago, a seguir. Ele estava demasiado bonito com o cabelo cinzento a crescer numa melena elegantemente despenteada em caracóis revoltos, os óculos escuros que lhe conferiam mistério ao ocultarem os seus olhos que eram de um azul eletrizante.

— Está tudo bem, Clara Oswald. O espetáculo vai começar daqui a pouco tempo e terás, finalmente, o teu pedido satisfeito.

— Ver os Linkin Park em Milton Keynes. Vinte e nove de junho de 2008 – sussurrou ela. – Road to revolution.

— O teu pesadelo não se vai repetir.

— Eu sei. Eu sei!

— Então, porque tremes?

— Tenho… receio de estar enganada. De que o pesadelo se possa repetir.

— Tu nunca estás enganada, Clara Oswald.

Os dois estavam nos bastidores e usavam ao pescoço um cartão que os identificava como convidados especiais VIP, Very Important Person. Daquela vez não tinha sido necessário apresentar o cartão psíquico e o Doutor divertira-se com a bajulação que recebera, desde que foram apresentados por um veemente Mike Shinoda como os primos ingleses de Joe Hahn. A Cammy achara estranho que o coreano nascido no estado americano do Texas tivesse primos em Inglaterra, ainda para mais sendo eles o médico e a sua assistente que tinham resolvido a crise misteriosa que colocara o espetáculo em risco, era uma enormíssima e estranhíssima coincidência, mas não teceu qualquer comentário que ecoaria esses seus pensamentos. Afinal, precisava que os Linkin Park subissem ao palco de uma vez por todas e não iria ser ela que colocaria mais obstáculos, desconfiando do milagroso médico que era família do DJ. Nem sequer perguntou que crise tiveram eles que enfrentar ao verificar, com os seus próprios olhos, que os seis rapazes exibiam a sua habitual simpatia, boa-disposição e alegria.

A multidão que enchia o anfiteatro era impressionante e cada vez mais barulhenta. Era possível sentir a emoção a emitir ondas vibratórias intensas de euforia e de calor, moléculas que se misturavam com o ar e que refulgiam em centenas de cores, numa requintada encenação que apenas o Doutor conseguia vislumbrar com ajuda de um filtro específico dos seus óculos sónicos. E que, lamentavelmente, não podia partilhar com a Clara, pois ela não possuía capacidade visual para tal.

Ela, porém, apreciava outros aspetos daquele ambiente em revolução que arrebatava os espetadores e também os músicos que, mais atrás, se preparavam para se entregarem ao seu público, numa comunhão potenciada pela música. Os aspetos que os terrestres conseguiam absorver, sem outros artificialismos. Felicidade. Pertença. Distração. Adoração. E isso era quanto bastava.

Por todo o lado, som. Som brutal e avassalador!

Não admirava que os fungos avaza tivessem aparecido naquele local para proliferarem. Era o melhor lugar, na Terra inteira, para um ladrão de som. Um autêntico festim de ruído, um banquete onde se servia timbre, intensidade, altura e duração. Som que alimentava, engordava e satisfazia.

Esse pensamento divertiu-o e o Doutor abriu um sorriso enorme.

Entraram Rob e Joe. Foram os primeiros da sua banda. Um sentou-se no banco, em frente à sua bateria. O outro postou-se diante da sua mesa de mistura.

Clara deu um salto e um gritinho. Crispou as mãos junto ao peito. O Doutor continuava a abraçá-la pelos ombros.

Escutou-se o riff distorcido da guitarra elétrica de apoio tocada por Mike. Apareceu Dave e depois Brad. Os três avançaram para a frente do palco. E veio Chester, agitado e imparável.

A multidão aplaudiu, assobiou, moveu-se.

A primeira canção, registo irreverente de um Rock poderoso, o primeiro single e o primeiro êxito dos Linkin Park. A ligação foi estabelecida e não se iria perder mais – banda, público, instrumentos e voz, efeitos e compasso, o Doutor e Clara. O dia terminava e o pôr-do-sol incendiava o horizonte em pinceladas abruptas de vermelho, fogo e sangue, os pactos eternos com o universo. A noite prometia a glória dos heróis, música e veneração, chão e céu. E o Doutor continuava a sorrir.

Ele nunca tinha chegado a apagar-lhes a memória. Acreditou neles. Não precisou de nenhum contrato ou contrapartida. Simplesmente, quis acreditar e naquele assunto ele não iria enganar-se. Porque também acreditava na Clara e a sua companheira confiava nos rapazes que mostravam o seu som ao mundo no anfiteatro de Milton Keynes.

— Doutor! Que espetáculo maravilhoso! Estás a gostar? Eu estou a adorar!! – gritou ela aos pulos.

Ele disse:

— Não faço a mínima ideia onde estão as mensagens políticas na letra de uma canção em que se grita ‘Cala-te quando estou a falar contigo, Shut up when I’m talking to you’, ‘Não me vou desperdiçar contigo, I won’t waste myself on you’ ou ‘Quero encontrar um lugar onde possa pertencer, I wanna find somewhere I belong’.

— Ah, para de ser tão rezingão! Tenho a certeza de que estás a gostar! A música é excelente e as letras contêm uma mensagem… ao adolescente que existirá eternamente em nós.

— Passei a minha adolescência em Gallifrey, Clara Oswald.

— E enquanto adolescente de Gallifrey não tiveste os típicos problemas da puberdade? Um corpo sempre a mudar, ninguém gosta de mim, sou um génio incompreendido, não consigo ficar parado num único lugar, tudo me aborrece, tudo me alegra, estou sozinho, jamais irei conhecer o amor?

As sobrancelhas dele surgiram por cima das armações dos óculos escuros.

— Creio que descreveste a minha vida nestes últimos anos, dentro de uma caixa azul.

— Oh!

E ela tinha, de facto, descrito a existência do Doutor. Piscou-lhe o olho, num indício bastante arrojado.

— Então, deves incluir a música dos Linkin Park na tua discoteca, na TARDIS. Verás que eles descrevem alguns momentos da tua brilhante existência eterna, errando através do universo. Incluindo as dores da regeneração.

E apontou para Chester que berrava no refrão de uma canção, franzido, encolhido, a emular um sofrimento que provinha do espírito e das entranhas. Fundo, invisível e dilacerante.

— Essa é uma afirmação bastante ousada.

— Sou ousada. E os Linkin Park são geniais. Admite-o, Doutor. – Ela esticou um braço. – Todas estas pessoas não podem estar enganadas. Os fungos avaza não estavam enganados. E os daleks não saberão mais do que um senhor do tempo.

— Os daleks…

— Foram os daleks que escolheram o concerto dos Linkin Park para invadirem a Terra. O meu pesadelo! E se os daleks souberam reconhecer quem são os Linkin Park, tu, Doutor, também o poderás fazer, mas com um objetivo mais nobre. Em vez de destruição… reconhecimento.

— Certo, Clara Oswald! Vou arrumar os Linkin Park junto aos meus discos de vinil de Ludwig van Beethoven. Será um excelente duelo… de genialidade.

— Excelente. Isso só demonstra que tens bom gosto!

O Doutor riu-se e apertou-a contra si. Sussurrou-lhe:

— Continuo a pensar que o Mike é o mais inteligente de todos eles.


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Notas finais do capítulo

Não tenho colocado notas nas histórias, ou tenho colocado notas mínimas, porque as notas serão eliminadas na nova versão da plataforma, mas para quem tiver curiosidade, deixo a ligação para o show em Milton Keynes, completo, dos Linkin Park de junho de 2008:
https://www.youtube.com/watch?v=VEljwjZen-A

Próximo capítulo:
Os amigos distantes.