As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 4
— Paralelos natalinos




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Paralelos natalinos 

Nevava abundantemente no Reino de Órion. O céu estava nublado, quase que cem por cento branco, mas alguns raios de sol bem mirradinhos se esgueiravam entre as nuvens para aparecer através de suas frestas. Não haviam pássaros voando ou ventos soprando, um poeta, observando aquele natal, poderia apontar esses fatos para levar seu leitor a imaginar que mesmo a natureza compreendia que ele significava paz, união.

Época em que a criminalidade caía junto com a temperatura e graças à ela, todo ano naquela semana os retalhadores se davam férias, somente uns poucos continuavam a trabalhar — porque recebiam mais. As ruas ficavam desertas, só se ouviam as canções que ecoavam das caixas de som instaladas nos postes de energia. Era um dia de reflexão.

Kin estava ao telefone com Arashi. Um gorro vermelho igual ao do Papai Noel cobria o topo de sua longa cabeleira loira cacheada, um cachecol branco com listras azuis contornava seu pescoço e um vestido cor carmesim de saia rodada com mangas curtas compunham seu atual figurino. Não maquiou o rosto, por insistência de Mari pintou os lábios com um forte batom rubro. 

Olhando sua expressão qualquer um diria que ela estava frustrada. Apoiada de cotovelos à mesinha de madeira onde o telefone ficava em sua sala de estar, ouvia os motivos dele para chegar um pouco mais tarde. Ela mesma não se importaria, mas a severa coordenadora da pequena comunhão faria todo mundo esperar sua chegada para comer. 

A organizadora de tudo, uma mulher caucasiana na casa dos trinta anos, de cabelos negros lisos, compridos, brilhantes e olhos escuros, passeava pela sala com um gorro natalino sobre metade da testa quando a loira terminou de explicar que ele precisava chegar na hora. 

— Dá aqui. — Pediu. Sua feição parecia carinhosa mas sua voz, apesar do tom amável, sugeria que uma ameaça estava por vir. Quando Kin lhe deu o telefone, ela falou: — Oi Arashi, aqui é a Mari. São meio-dia, né? Escuta, eu sei que você tem essa fama de não temer nada, tem o trocadilho do "frio como o gelo", mas se chegar um minuto depois das treze aqui, você vai saber o que é medo. Até depois. 

E bateu o telefone. Kin ficou embasbacada.

— Quando tiver um tempo me ensina a fazer isso. Por favor.

Hayate estava na cozinha — sua segunda opção de carreira, caso falhasse como retalhador. O delicioso cheiro de seus pratos, descritos como "divinos" por Mari e Kin, espalhou-se a casa inteira. As duas ofereceram ajuda, mas o segundo ministro dispensou com gentileza, então elas se contentaram com enfeitar o lar e aguardar no sofá.

Kin voltou a cuidar da árvore de natal. Ela tinha quase dois metros de altura, foi posta próxima à janela, adornada no pico com uma estrela branca brilhante, enfeitada com neve artificial e envolta por luzes pisca-pisca. Mari desceu com Haru, que dormiu um pouco demais naquela manhã e estava se arrumando.

Ruivo de cabelos desgrenhados e espetados, seus olhos castanhos claros eram mais ferozes que os de Kin. Sua camisa, sem mangas e de capuz, era branca e seu bermudão mais parecia uma calça. Tinha só seis anos, dez anos menos que sua irmã. Procurava por Hayate.

O pequeno não se importava com o natal e nem com os presentes, queria que o ministro o ajudasse a despertar sua essência ou lhe ensinasse alguma técnica. 

 — Ué, o Hayate não está aqui? Eu jurava que tinha escutado a voz dele! — Estranhava o ruivinho. 

Mari estava de pé sobre a mesa do centro da sala, ajeitando a única lâmpada que irradiava luz por todo o cômodo.

— Haru, o Hayate está na cozinha. — A morena avisou. Logo em seguida se arrependeu de ter contado isso pra ele. — Se atrapalhá-lo, eu vou guardar você dentro da lata de lixo! Tô falando sério!

— Ahh, eu não vou atrapalhar, só quero pedir uma coisa pra ele! 

— Aham, até parece que isso significa outra coisa. — Desceu da mesa e, com a mão na cintura, olhou em volta. Tudo pronto, respirou satisfeita. — Fica sentadinho ali no sofá, ele já está terminando, e aí você poderá pedir o que quiser.  

Haru se cansou de ouvir que quando tinha seis anos Kin já era a melhor aluna do colégio dela, que Arashi era o mais inteligente, com as melhores notas e o comportamento mais elogiado. Queria crescer fora das sombras deles e da de seus pais, nunca mais ser comparado a ninguém. Hayate gostava disso nele porque se identificava

O segundo ministro contou para Haru que cresceu entre dois retalhadores brilhantes, Hizashi e Keiko, e que teve que viver à sombra deles até fazer algo por si mesmo: descobrir qual era o seu lugar no mundo e de que modo poderia ajudar o reino onde vivia. Para ver o ruivinho trilhar o mesmo caminho, jurou treiná-lo pessoalmente. Vários meses atrás.

Por isso o garoto saiu correndo do quarto quando soube que Hayate estava em sua casa. Mas quando descobriu que o ministro estava ocupado como sempre, foi se sentar no enorme estofado bege da sala com os braços cruzados, os pés apoiados na mesinha de madeira preta e a cara fechada. Obviamente não desistiu de fazê-lo cumprir com o prometido.

Meio-dia e meia. Arashi ainda não deu as caras, Mari começava perder a calma. Ele deve estar me desafiando, pensava. Lembrou, no entanto, que Kin lhe falou que naquele dia o guerreiro glacial tinha o costume de visitar os túmulos de seus pais e irmãos, então recuperou a paciência e se sentiu mal por apressá-lo tanto. 

Tantas perdas, tão novo. Kin e ele eram as pessoas mais fortes que conhecia. Os dois não sabiam, porém embora fosse ela a adulta, Mari os admirava profundamente como pessoas. Também os amava como se eles fossem seus filhos. Incluindo Haru. Seria capaz até de morrer por eles, eram a família que ela tinha e por nada nesse mundo abriria mão dela. 

Sentou-se ao lado do baixinho no sofá para contemplar o estado da casa. Os pisca-piscas alternavam entre vermelho, azul, verde, roxo, amarelo e rosa, as paredes brancas amareladas da sala de estar serviam-nos de tela artística. O tapete estava corretamente esticado, na direção certa, o piso estava limpo. Todos estavam bem vestidos. 

Ajeitou com os dedos a camiseta branca e a saia jeans, culpando a maneira como se sentou no sofá por tê-los amarrotado. Alguém bateu na porta, Kin correu para atendê-la. Era Arashi, como o previsto. Com uma jaqueta de couro marrom por cima de uma camisa branca de gola v, calças jeans, tênis brancos e uma garrafa de refrigerante na mão esquerda, ele limpou a sola dos sapatos no tapete de boas-vindas e entrou.

 — Desculpem a demora, eu estava organizando uns papéis antes de vir. — Elas sabiam que ele estava mentindo, não era de seu feitio falar de suas tragédias e dramas pessoais.

Os cabelos dele estavam molhados e brancos por causa da neve, Kin os limpou com as mãos, o levou até o sofá e antes de lhe dizer para sentar deixou claro que o desculpavam pela demora:

— Não tem problema, agora é só esperar que logo, logo o almoço estará pronto!

 Mari olhou para um dos enfeites em especial que estava sobre as cabeças deles e não perdeu a oportunidade de zoar:

— Humm, olha quem parou debaixo do visco! E você dizendo que seríamos eu e Hayate, né, Kin? Parece que eu ganhei uma aposta!

Eles ficaram vermelhos de vergonha. Paralisados, sem fala. Deixar Mari notar isso foi o maior erro deles: ela começou a cantarolar "beija, beija" e a aplaudir animadamente, mexendo a cabeça para um lado e para o outro. O casal percebeu que não tinham opção de lugares para esconder a cara e nem uma desculpa aceitável para não fazer o que a morena propunha.

Então Hayate chegou com a comida e os dois respiraram aliviados. Não que não quisessem aquilo, o verdadeiro problema era que eles nunca tinham beijado alguém antes e, na primeira vez que fossem fazer isso um com o outro, não queriam cometer erros. Queriam que fosse perfeito.

Mari e Haru atacavam os pratos que Hayate ia pondo à mesa, Kin deu a volta no sofá pela esquerda para chegar nas sobremesas. Vez ou outra lançava um olhar discreto para Arashi. Quando seus olhares se esbarraram, eles sorriram timidamente e, desajeitados, desviaram a atenção rapidamente para cantos aleatórios, mais corados do que antes. 

...

Uma imensa arena de pedra muito mal iluminada. Um menino de descendência asiática que aparentava ter menos de dez anos. Um garoto loiro da mesma idade e peso que ele. Os dois a vinte metros de distância com a guarda erguida um para o outro, cercados de outras crianças desmaiadas, algumas mortas, espalhadas pelo chão como se fossem lixos. 

 As mãos do asiático estavam sujas de sangue, seu nome era Sora. O loiro, por sua vez, não transpirava e não tinha uma só mancha de sujeira no corpo. Como animais prestes a lutar para defender sua cria, um não perdia o outro de foco. Nenhum movimento da parte dos lutadores. 

Havia uma plateia, mas ela não se achava em torno do campo de batalha e não era formada por bandos de zés ninguém. Só um grupo seleto de homens e mulheres tinha acesso e conhecimento daquele lugar, bem como de o que ocorria ali. Gente podre de rica descia lá para apostar. 

Tal esquema rendia muito dinheiro aos responsáveis, mas nenhum centavo aos que o sustentavam — em sua maioria crianças e adolescentes. Os combatentes só saíam de lá para o cemitério. Os favoritos dos apostadores eram Sora e o guerreiro que ele estava prestes a enfrentar. 

 O melhor recebia tratamento especial: um bom quarto com ar condicionado e colchão de qualidade para dormir, a comida que quisesse, tv a cabo, música. Sora nunca havia perdido um único confronto, estava ali desde que tinha cinco anos. 

O sino tocou, um correu na direção do outro. Os apostadores, a maioria homens de terno e gravata com dois seguranças parrudos a postos e copinhos de uísque na mão, ficaram apreensivos. Eles assistiam o embate do conforto de cabines refrigeradas, instaladas nos quatro lados das paredes verdes da arena. 

Sora começou atacando com uma sequência ininterrupta de jabs e diretos, os mais velozes que estavam a seu alcance, queria finalizar aquela luta em um minuto. Seu oponente, mesmo que com muita dificuldade, desviava-se de todos eles, só não via as brechas certas para contra-atacar.  

Um movimento imprevisível partiu de Sora, uma cotovelada que atingiu em cheio o queixo do alvo, o fazendo tombar sete passos para trás com a mandíbula ferida. Sora não parou por ali, correu até ele, saltou e aplicou um soco em seu rosto, mais um certeiro. O loirinho, a ponto de cair, se reergueu dando um cruzado na cara do Sora, que não saiu do lugar.

 Eles estavam sorrindo. Eram o primeiro inimigo digno um do outro após muito tempo. Sora deu um chute frontal, o outro defendeu-se com a mão e tentou acertar um soco giratório, Sora aparou a técnica com a mão direita, o golpeou no queixo com um gancho de esquerda, deu um salto mortal lateral muito rápido e lhe atingiu o peito com as duas pernas, arremessando-o contra a parede e atolando-o nela. 

— Venha. — O asiático o desafiava, o chamava com a mão, sorridente. 

 Se soltou da cratera que seu corpo formou sobre a parede durante o impacto, foi para cima de Sora muito mais tranquilo do que antes, investiu com um uma série de socos fortes e velozes, não acertou nenhum, arriscou um chute, errou também, arriscou vários outros com ambas as pernas, Sora deteve todos com as mãos mas levou uma joelhada no estômago. 

Se recuperou da joelhada em instantes e agrediu seu concorrente com um cruzado de direita, seu antagonista aproveitou o impulso que o cruzado recebido lhe deu para a esquerda, girou no ar e lhe chutou na cara. Os dois caíram ao mesmo tempo, mas se puseram de pé também simultaneamente. Passaram a se estudar. 

A batalha se transformou em uma intensa troca de socos e esquivas, tão impassível que um era incapaz de relar o outro. Sora encaixou um direto no nariz dele, esquivou-se de dois socos, contra-atacou com um cruzado de esquerda, um de direita e um chute lateral em suas costelas que o fez rodar um passo e meio para trás. 

Acabou, pensou, segundos antes de dar fim à luta com um chute no queixo de seu desafortunado adversário, que subiu dois metros pela força do golpe e caiu inconsciente. A maioria dos apostadores, feliz, aplaudiu o resultado de pé. A minoria, enfurecida, atirava seus copos contra as paredes.

— Me prometeram uma cela com ar condicionado, filme bom e batata frita! — Cobrou Sora, com as mãos erguidas.

Uma dupla de seguranças fechou suas mãos com algemas e o levou para o quarto prometido. Até a porta, de madeira, era bonita. Eles a abriram para ele, que sorriu quando viu que Kikuchi era um homem de palavra. "Obrigado", disse para os servos daquele monstro.

Bateu a porta na cara deles, tomou um longo banho quente para fazer o suor e o sangue descerem pelo ralo e, ainda envolto na toalha branca com que se secou, se jogou na cama. 

Feliz natal, mundo, desejou em pensamentos. Cruzou as pernas esticadas ao longo do colchão, atirou uma batata frita na boca, ligou a tv e deitou os braços atrás da cabeça. Feliz natal...

 ...

Duas garotinhas trocavam socos e chutes no pátio de um casarão, debaixo de uma forte tempestade, ao som de ensurdecedoras trovoadas. Elas estavam sob a supervisão de um homem quinquagenário, carrancudo, de pele bronzeada, quimono negro e postura firme. Seu olhar severo não voava para longe das duas, seus braços não se descruzavam. 

Elas lutavam próximas a uma árvore, o máximo de abrigo que seu responsável permitiu que elas tivessem. Ele disse que iria notar se alguma delas entregasse a luta para sair logo dali e mandaria que começassem tudo de novo. Então era pra valer. Sem mencionar que as duas queriam vencer, o objetivo era saber o quanto progrediram. 

 A mais nova tinha oito anos, se chamava Yue. Sua pele era clara, seus cabelos bastante lisos, levemente violetas e curtos principalmente, não alcançavam seus ombros. Tinha lábios róseos finos, um delicado rostinho arredondado, pequeno nariz arrebitado e um par de muito tristes olhos cor de mel. Ainda que com o coração carregado de angústia, a pequena continuava a lutar — não sabia por quem e nem por quê, só não parava. 

A mais velha, Sayuri, tinha doze anos e era sua irmã. As duas usufruíam de um rosto parecido. Sayuri era dez centímetros mais alta, possuía olhos um pouco mais escuros, cabelos castanhos descoloridos nas pontas e pesava dez quilos mais. A vantagem, até pela idade, nitidamente lhe pertencia. 

Yue se mostrava uma talentosa artista marcial, compensava a falta de força e velocidade com técnica. Seu pai, o sujeito que as observava, achou isso elogiável, ficou feliz. Porém sabia que esse fator não a manteria em combate por muito mais tempo, previa a rápida chegada da derrota. 

 Sua profecia não tardou a se concretizar: Yue ganhou um soco no meio do rosto e voou com as narinas sangrando contra o corrimão de madeira que rodeava o casarão. Fim de jogo. Seu pai meneou com a cabeça e entrou sem sequer querer saber se ela estava bem. Yue sentou-se onde caiu. Com um braço em volta do joelho, tentava estancar o sangramento. Sayuri ofereceu a mão para ajudá-la a ficar de pé, Yue, que pouco tinha de orgulhosa, aceitou.

— Me desculpe pelo sangue. — A mais velha, se sentindo mal pelo modo que a golpeou, lhe deu um pano para pôr no nariz. — Se eu tivesse feito menos, ele reclamaria e nos deixaria mais meia hora nesse aguaceiro... 

— Tudo bem. — Sorriu, com dor em todo o rosto. Pressionou o machucado com o pano e disse: — Me ajuda a colocar o nariz no lugar que a gente fica okay. 

Elas se sentaram no terceiro degrau da escadaria de madeira que dava para a casa onde residiam, ali poderiam conversar sem ser ouvidas e o teto as protegeria da chuva. Sayuri a cobriu com uma toalha verde e apontou:

— Você está melhorando. Será uma grande artista marcial. 

Mais cética, Yue retrucou:

— Que nada. Você nem despertou sua essência e já é melhor do que eu. É a menina dos olhos do nosso pai. 

— Eu sou mais velha. É natural que eu me saia melhor, tive que aturar por mais tempo os mandos e desmandos do Stalin de quimono... — Contra-argumentou, arrancando uma risada dela. — E você também ainda não despertou a essência. Sei que será uma grande retalhadora.

As duas se abraçaram. Yue deitou a cabeça em seu ombro e sorriu ao lhe desejar feliz natal, Sayuri afagou os seus cabelos e retribuiu. A única demonstração de afeto que recebiam vinha uma da outra, e mesmo assim em momentos não selecionados. O patriarca da família ficou mais duro desde que a matriarca adoeceu, era como se vê-la tão frágil o fragilizasse também e, ao invés de expressar, ele preferisse esconder sendo rigoroso com a disciplina das filhas. 

...


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