As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 1
— Uma reunião histórica




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Uma reunião histórica!

Pela primeira vez na história todos os doze líderes das Terras Zodiacais se encontravam juntos no mesmo lugar. O local escolhido para a reunião foi a Terra de Áries, o motivo que os levou a se unir era maior do que todos e não havia ninguém ali presente que não reconhecia isso. Suas diferenças foram completamente esquecidas, todas as intrigas do passado, apagadas. Ao menos por enquanto. O único problema que eles tinham em mente agora era Kaira.

 Kaira é o nome do homem que reinava sobre o Quadrante A da galáxia e que declarou guerra a todo o Quadrante B. Não havia ninguém nas doze Terras capaz de lhe fazer frente, o que se contava a seu respeito é que ele era poderoso o suficiente para destruir a Via Láctea inteira com um só golpe. Por sorte sempre foi um homem calmo, um rei benévolo e razoável. Até hoje. Hoje alguém despertou sua ira e todo o universo iria sofrer as consequências. 

 O salão principal da Terra de Áries, onde se tomavam todas as decisões de cunho político, era grande o bastante para receber todos os representantes dos outros planetas, felizmente. As conversações aconteciam ao redor de uma mesa dourada gigantesca, que foi posta no centro daquela enorme sala de pisos brancos. O saguão estava lotado de repórteres e curiosos, contidos pela guarda.

A palavra agora era de Yume, atual primeira ministra da Terra de Áries. A moça alta de pele clara, cabelos castanhos curtos, olhos marrons e feição infantil discursava de pé, atrás da maior cadeira da mesa, com os braços esticados ao longo do vestido azul royal de alças brancas que estava usando. Ela não tinha a seu lado uma dupla de seguranças parrudos e mal encarados, mas um velho e um menino. Um garoto pardo de cabelos lisos extremamente negros, olhos azuis claros e de compleição saudável para alguém de sua altura. Seu nome era Arashi. Uma criança aparentemente normal. 

 Fora Yume e o velho Hanzuki — um senhor nanico, de cabeça quase raspada e expressão severa, vestido como um sacerdote da Idade Média — ninguém entendia porque Arashi estava ali e todos se faziam essa pergunta, mas nenhum dos que ali estavam, até o presente momento, tentou repeti-la em voz alta. O garoto, de pé ao lado de Hanzuki, os dois a poucos metros de distância da cadeira de sua líder, era alvo constante de olhares desconfiados e curiosos.

No minuto que Yume acabou de falar, o líder da Terra de Câncer, um rapaz loiro de olhos verdes da idade dela, tomou a palavra muito irritado, sem pedir licença:

— Até onde sabemos, a culpa disso tudo é toda sua, ariana! O desgraçado do Santsuki, seu amigo de infância, nascido aqui, foi o causador de tudo isso! Se já tivessem eliminado aquele verme, nada disso estaria acontecendo!

Yume ouviu tudo quieta. No fundo concordava com ele. O "boato" que corria era que o já mencionado Santsuki havia assassinado a esposa e o filho unigênito de Kaira, que há anos vinha pedindo a prisão dele aos arianos. Furioso, o poderoso rei considerou todo o quadrante B culpado pelo ocorrido e estava determinado a destruí-lo totalmente, não permitindo que uma só alma, criança ou idosa, civil ou guerreira, saísse viva. Isso segundo as informações chegadas aos cancerianos pelos espiões do primeiro ministro. 

Mas a ministra ariana estava certa de que isso havia acontecido. Na última vez que o viu, Santsuki prometeu mudar para sempre a história da galáxia, jurou que não voltaria a dar as caras por um acontecimento indigno de ser classificado como "histórico". E aí estava. Todas as mortes que viessem a acontecer, toda a destruição, seria culpa dela, que devia tê-lo matado. Teria que aceitar e viver com essa dor na consciência. Se necessário, Yume morreria para consertar tudo. 

— O canceriano tem razão! — O primeiro ministro da Terra de Peixes, homem forte, alto, de cabelos e barba branca, muito mais jovem que Hanzuki no entanto, esmurrou a mesa. — Foram flexíveis demais com aquele miserável...! Incompetentes!

Arashi era um dos poucos ali que achava injusta a forma como estavam tratando Yume. Pretendia permanecer calado, mas ao olhá-la e vê-la pela primeira vez de cabeça abaixada, sem forças para se defender, decidiu intervir:

— Em primeiro lugar, quero pedir que se lembrem de suas posições. São os representantes das maiores potências da Via Láctea, interrupção e gritaria é coisa de estudante ginasial. Depois, lembrem-se que estão na nossa casa. Nos respeitem. — Começou, deixando todos boquiabertos. Todos, com exceção da primeira ministra da Terra de Libra, que mantinha no rosto um sorriso de deboche e continha as risadas. — Agora, no seu lugar eu mediria as palavras ao falar sobre quem tem culpa por Santsuki ainda estar vivo. Os senhores, Câncer e Peixes, mais do que qualquer um de nós, sabem que capturá-lo ou mesmo matá-lo não é coisa fácil. 

O ministro de câncer cerrou os punhos. 

— Garoto insolente...!! — Disse o canceriano, ajeitando-se na cadeira. 

— Garoto corajoso. Ou tem um futuro brilhante à sua espera ou uma vida muito breve. — Pensava a líder da Terra de Libra, ainda lutando para não permitir que as risadas que continha escapassem. 

As reações à fala do menino foram mistas. Um burburinho intenso se espalhou pela sala e parou quando o capricorniano, segundo guerreiro mais forte da mesa, pediu, sentado de braços cruzados, cabeça abaixada e olhos fechados, a fala: 

— Não querendo questionar suas escolhas para guarda-costas, ariana, mas o que uma criança faz entre nós? 

A jovem Ministra Escorpiana, ali mais velha apenas que Arashi, achou a pergunta dele e todas as discussões paralelas irrelevantes e entrou na conversa:

— Isso é o de menos agora. Estamos nos desviando do assunto que viemos tratar aqui.

Yume lhe deu razão:

— Vamos voltar a discutir o que faremos. Se queremos vencer essa guerra, precisamos lutar juntos e usar toda a força de que dispusermos. Eu me responsabilizo por Santsuki se isso nos unir frente a esse propósito, mas o inimigo que temos adiante é alguém que mesmo ele não ousou enfrentar sozinho. Me responsabilizo por ele, peço perdão por todo o mal que ele causou e peço a ajuda de vocês para evitar a nossa extinção!

A ariana, com lágrimas nos olhos, se curvou, numa atitude que causou espanto em todos. Tal gesto era inédito, Yume era reconhecidamente mais poderosa do que qualquer um ali dentro e por isso não era lá uma pessoa muito humilde. Calmos, um a um, os líderes que se exaltaram e dispararam ofensas a ela e aos outros começaram a se desculpar. A de Libra, única que ficou de boca fechada o tempo todo, continuava a sorrir discretamente. Foi pra lá esperando uma coisa chata, imaginando que se entediaria, mas admitiu seu erro para si mesma. Nunca me diverti tanto. 

 Ao término da reunião, Arashi recebeu de Yume a ordem de voltar sozinho para casa enquanto ela e Hanzuki se ocupavam de outras coisas. Ele, que respeitava sua liderança mais do que qualquer um naquele planeta, a admirava e sentia por ela o amor que um filho sente pela mãe, entendeu sua razão e a obedeceu sem fazer perguntas; passou pelos repórteres e pelos curiosos e calmamente foi andando para casa.

A tarde daquele dia era fria e chuvosa. O céu estava cheio de nuvens cinzas, as árvores e a grama balançavam com as ventanias. As ruas, apesar disso, estavam lotadas de gente, em sua maioria visitantes de outros planetas, viajantes vindos de uma outra ponta da galáxia. A curiosidade se espalhava como um incêndio, todo mundo queria saber o motivo da reunião dos doze ministros. 

Como que alheio a todo o movimento ao seu redor, Arashi retornava para casa com as mãos dentro dos bolsos de seu casaco preto de capuz com mangas curtas. Não parava de pensar no modo como sua líder se curvou na presença dos outros líderes, na maneira dela de falar e na culpa gigantesca que devia estar sentindo. A culpa é um sentimento perigoso, o garoto bem sabia.

Seus olhos, claros, cristalinos e azuis como o céu numa manhã ensolarada, refletiam perfeitamente as ruas incolores pelas quais ele andava. Sempre ouviu histórias sobre o tal do Kaira, seu caráter e sua força, por isso nunca deixou de temer o dia que o teriam como inimigo. Ao se referir a ele, Yume tinha seu humor alterado de uma forma radical, sua fala e suas expressões faciais projetavam um misto de respeito com assombro de um jeito que ela não esboçava por mais ninguém. A ministra só falava do poderoso rei do quadrante A quando era necessário, entre as paredes de seu gabinete de trabalho e, mesmo assim, o mais rápido possível mudava completamente de assunto, propondo como pauta uma questão mais positiva e limitada à Terra de Áries. 

O que ele não sabia — e ninguém mais sabia — era que a poderosa ariana se afligia por saber que, num eventual ataque de Kaira à Terra de Áries, ela se veria impotente diante do poder aterrador dele. Feria seu orgulho de guerreira saber que não podia proteger seu mundo dele. Que talvez fosse por isso que ela poupou a vida de Santsuki: para, derrotando-o de novo e de novo, provar a si mesma que ainda tinha algum valor como uma retalhadora.

No meio do caminho para casa resolveu ir ao ginásio pois imaginava que lá encontraria Kin, filha mais velha de Yume. A menina, dona de uma longa cabeleira encaracolada e loira como os fios lisos do pai, com um par de desafiadores olhos castanhos escuros que puxou do pai também, treinava de camisa branca sem mangas, calça cumprida preta, pés descalços e uma espada na mão, com a qual desferia cortes no ar e treinava suas técnicas, sozinha, no meio daquela imensa quadra de basquete forrada com tatame cor de rosa. 

— Sozinha? Pensei que o Keita e a Kande também estariam aqui. — Disse pra ela, aproximando-se a passos desapressados. Até pouco tempo atrás Kin o odiava, invejava o orgulho que sua mãe demonstrava por ele e se irritava com a quantidade de vezes que ela falava seu nome, sentia-se negligenciada. Só recentemente se tornaram amigos de verdade. 

Kin fez uma pausa no treinamento. 

— Foram embora há meia hora. — Respondeu, pegou a toalha que estava em cima do cercado de ferro verde que rodeava a quadra e enxugou o rosto suado com ela. — A reunião acabou agora? 

Ele respondeu que sim com a cabeça. 

— As notícias não são muito animadoras, mas todos os doze líderes aceitaram se unir contra o Kaira na guerra. — Contou.

Ela deu uma risada, deu de ombros e retrucou:

— Nenhuma surpresa. Tá todo mundo borrado de medo. 

Kin tinha uma série de sardas vermelhas espalhadas pelo nariz que ganhavam mais cor quando ela estava assustada, em perigo ou em combate. Era magra para alguém da sua altura e com sua força, seu rosto era pequeno e seu nariz, fino, embora o descrevesse "comprido demais" para o seu gosto. Sua pele era tão clara que qualquer toque lhe deixava uma marca, nisso não havia puxado nenhum de seus pais. 

Arashi encostou no corrimão, respirou fundo e cruzou os braços.

— O cenário não tá nada bom, Kin. Seria bom ter o seu pai aqui. — Falou, sem nenhum receio de mostrar preocupação. 

— Se ele estivesse, acha que nossas chances aumentariam? 

— Talvez. Se sua mãe e ele lutassem juntos contra o Kaira, quem sabe... Não dá pra dizer nada com certeza, não conhecemos os guerreiros que ele tem como aliado. Contamos com a chance do desgraçado do Santsuki se unir a nós. — Essa última parte era a primeira vez que Arashi falava em voz alta, mas ele achava que, no fundo, todos desejavam isso. 

— É possível. Ele sabe que está morto se o Kaira puser as mãos nele. Eu adoraria cravar a minha espada no coração desse maldito, alguma coisa me diz que ele é o culpado por tudo isso! — Kin pôs pra fora o que sentia. 

Arashi sabia que Yume não permitiria que sua filha participasse das devastadoras batalhas que estavam porvir, mas estava tentado a, pela primeira vez, desobedecê-la. Kin era um talento que não podiam ignorar num momento tão crítico, além de, com apenas onze anos, ser mais poderosa do que a maioria dos adultos, ela herdou do pai uma habilidade única, uma técnica em meio a qual nem o mais resistente dos homens ou dos escudos restava inteiro. Se atingido, nem Kaira sobreviveria. 

— Lutaria na guerra, se tivesse a chance? — Sabia exatamente que resposta estava para ouvir da loira, só queria pensar melhor antes de dizer que sabia um jeito de colocá-la em campo. 

— Tá brincando? Eu queria poder estar com a minha mãe quando ela for enfrentar o Kaira!

Arashi fez uma longa massagem nas têmporas. Sua única preocupação, é claro, não era desobedecer uma ordem direta de Yume, temia mais do que tudo pela vida de Kin. Se a pusesse no campo de batalha e ela perdesse a vida, jamais se perdoaria. Iria para o túmulo com uma culpa, uma dor sem tamanho. Fora, obviamente, se tornar incapaz de olhar a mãe dela nos olhos de novo. Não sabia o que seria de si se Kin morresse lá pelo que estava prestes a fazer, mas acreditava sinceramente que a menina poderia ser de grande ajuda. 

— Vai pra casa. — Deu as costas pra ela, andou alguns passos com as mãos nos bolsos do casaco e disse. — Eu vou ver o que posso fazer pra te colocar numa das batalhas, mas não espere muito. Depois conversamos.

 Kin não escondeu a felicidade, deu vários pulos de alegria depois que ele se foi. Achava que enfim ganharia a oportunidade de provar para todos que não era só a filha da primeira ministra e do lendário Azin, que Arashi a notaria e que orgulharia seus pais — mesmo tendo vencido vários torneios e sendo, de acordo com todos os seus professores, muito mais habilidosa do que todos os seus colegas de classe, o orgulho dos pais e o coração do garoto que gostava eram coisas que ela não sentia que tinha, sem as quais acreditava que nunca se sentiria completa.

Havia um homem de pé sobre um asteroide perdido no infinito. Esse homem, cujo corpo se mantinha íntegro ante as hostilidades do espaço como se estivesse em um campo de orquídeas, inspirava temor aonde quer que seu nome fosse proferido. A morte era companheira dele em tudo o que ele fazia, só o que restava dos locais que recebiam sua visita eram uma enorme pilha de escombros e uma chuva de cadáveres retalhados. O ódio, a sede por vingança o perseguiam como se fossem sua sombra. Não havia sequer uma alma naquela galáxia que não o quisesse morto. 

Um terno preto, uma gravata azul escura e uma camisa abotoada branca manchada com sangue fresco eram seu visual de agora. Uma figura esguia, de pele quase tão branca quanto a de um defunto e de cabelos castanhos cacheados, arrumados para trás, tinha um par de olhos vermelhos que transmitia a bestial vontade cega em seu interior de pulverizar qualquer coisa que estivesse em seu campo de visão. Ele sabia que não podia se deixar levar. A fome por um oponente digno o mantinha lúcido. 

— Santsuki! — Um homem caído poucos metros atrás, alguém que acreditava ter acabado de matar, gritou seu nome. Com a mesma feição séria no rosto, Santsuki se virou para ele. O sujeito estava a beira da morte. — Não t-tem... não tem ideia do que fez! Não sabe o que provocou! Kaira vai te matar... você é um homem morto!

 Santsuki foi andando pacientemente na direção do moribundo, que lhe gritava as mais violentas profecias na esperança de ter como última visão a sua face amedrontada. O que o viu esboçar, porém, foi o exato oposto: um sorriso espontâneo, do tipo que nenhum ator seria capaz de reproduzir.

— Mal posso esperar! — Exclamou o facínora de terno meio segundo antes de pisar a cabeça do infeliz que predizia seu epílogo, esmagando-a por completo. Após remover da sola do sapato os restos mortais de sua vítima, avançou até a borda do asteroide, sorriu mais uma vez e falou consigo mesmo: — Hora de ver como vão as coisas na Terra de Áries... Será que estão sentindo a minha falta? 

...


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