Aquele Idiota: Camisa 10 joga bola até na chuva! escrita por Gleici Carvalho


Capítulo 2
Você quer jogar?




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Existe uma coisa que eu preciso contar sobre Luciana Êvan: ela é uma doente.

Eu sei que é algo bem ruim de se dizer sobre alguém que mal conheço, mas é só o que consigo pensar quando saio da sala do Diretor. Eu não posso acreditar que ela tenha concordado mesmo com esse plano ridículo. Fala sério, a garota não vai ganhar absolutamente nada "me ajudando" e, ainda assim, topou entrar nessa loucura de professorinha de reforço. Monitora, é como eles chamam.

Eu estou me sentindo humilhado, não há outra definição a não ser essa. É como se, de uma hora para outra, aquele trio, comandado pela minha mãe, tivesse tirado total a minha liberdade de escolha, me julgando um incapacitado.

Cara, eu não sou burro. Minhas notas nunca foram as piores. É só falta de empenho mesmo. E paciência de encarar os professores e fazer deveres que não vão me levar a lugar nenhum. A verdade é que eu estou de saco cheio do colégio e de tudo isso... Desde a primeira série, para ser preciso. São 12 anos suportando essa rotina, então, eu saturei mesmo. Quem pode me culpar?

— Eu avisei ao Tadeu para vir te buscar mais tarde, então não suma como da última vez. — minha mãe fala comigo, mas o celular é quem tem a sua total atenção. — Desculpe, Olavo, não foi com você, estou falando com meu filho... Ah, sim, claro, reunião às três horas? Sim, sim...

— Eu tenho um compromisso.

— Cancele. Você está de castigo. — responde, prontamente. — Não, não, é o meu filho aqui ainda, Olavo. Nossa reunião continua de pé!

Eu deixo a Dona Célia ocupada falando com seus subordinados e saio sem me despedir, antes que ela também ache que sou seu funcionário para obedecer aos seus caprichos e ter que marcar hora na agenda para falar com ela. Aliás, esse deve ser o sonho da minha mãe: dar ordens em tudo e em todos.

Depois do que aconteceu na sala do Diretor, não tenho saco nenhum para ir para a classe e ter aula. Cabular, nesse caso, não é uma escolha, mas, sim, obrigação. Alicia já me encheu de mensagens a essa hora no WhatsApp, mesmo fazendo menos de meia hora que a gente se viu. Eu sinto vontade de jogar o celular na parede. Se alguém me der bom dia agora, capaz de eu matar.

— Bom dia, Pedro!

— E aí, Pedro, como foi as férias, cara?

— Oi, Pedro!

Foi só eu pisar os pés no corredor que a enxurrada de cumprimentos começou. Eu aceno para alguns que conheço de vista; da maioria, eu nem sei o nome. As pessoas vivem achando o máximo essa história de ser popular, quando, na verdade, não tem graça nenhuma em nada disso. Eu nunca fiz nada para merecer tais "privilégios". Tudo o que faço é jogar futebol, ir em algumas festas e pegar mulher bonita. Nunca fiz questão de exibir um crachá de popularidade pendurado no pescoço. Só aconteceu.

No fim do corredor, eu desço pelas escadas de emergência e saio pelos fundos, em direção ao prédio C. É lá que ficam os laboratórios de Química — que estão em reforma desde... Sei lá, sempre? Por algum motivo inexplicável, a obra nunca fica pronta. Dizem até que o lugar é mal-assombrado. História de quem não tem o que fazer, porque, se tivesse mesmo algo sobrenatural vagando por aqui, eu já teria encontrado.

O prédio é bem grande, excelente para quem quer matar aula para fumar maconha, transar ou jogar baralho escondido. Mas, acredite ou não, eu nunca vim aqui por nenhum desses três motivos. Subo pelas escadas íngremes e cobertas de areia da construção até o topo do prédio na sala de controle, justamente onde deveria ter algum segurança de olho para que ninguém invadisse o local.

O Pentágono é uma piada.

A sala de controle é um espaço pequeno com uma mesa, uma cadeira e um radinho de pilhas que funciona a base do tapa. Costumo guardar alguns arquivos do time aqui e, de alguma forma, esse passou a ser o meu escritório. Tenho uma coleção de fitas dos jogos em algumas caixas, pranchetas preenchidas com jogadas ensaiadas e alguns nomes de possíveis novos atletas. O treinador divide comigo algumas tarefas para que eu me sinta com mais autonomia como capitão. Norberto possui seus defeitos, contudo, ninguém pode dizer que ele não se dedica ao trabalho.

Sento na cadeira empoeirada, decidido a tirar uma soneca. Em cima da mesa do escritório, há um computador branco daqueles bem idosos dando seus últimos rugidos. Ninguém mais costuma vir aqui, porque só eu tenho a chave, por isso, reajo com estranhamento quando percebo que a tela do monitor está piscando, como se alguém tivesse se esquecido de desligá-la. Eu não mexo nessa coisa há séculos.

Inspeciono com mais atenção o local e encontro, sobre o teclado antigo, um cd que não me recordo de ter visto ali antes. Giro o disco entre os meus dedos, enquanto franzo as sobrancelhas.

Isso não é meu. Alguém mais entrou e deixou aqui.

Três perguntas: quem, como e por que?

Curioso, eu aperto o botão para ligar a CPU e, enquanto espero, ajusto o radinho de pilhas em uma estação de músicas antigas. Ele precisa de três tapas para desengasgar.

Lou Reed. Reconheço de imediato os primeiros acordes de walk on the wild side. Enquanto o som tranquilo invade o local, eu tento absorver a calmaria que permeia agora o ambiente. Não dá muito certo, mas o que vale é a tentativa, né? Demora uns 10 minutos para a velharia me mostrar a tela inicial do Windows. Tiro um pouco do pó do visor do monitor e coloco o CD na área de discos da CPU. Assim que a leitura é feita, clico para abrir o arquivo que surge na pasta.

Fico petrificado na cadeira assim que reconheço o vídeo. Meu corpo continua ali, contudo, a minha mente dá um giro de 360°.

Eu cresci sendo um encrenqueiro de marca maior. Aprendi a brigar ainda no Jardim de Infância, quando o Léo, um moleque idiota sardento, roubou todas os meus cards do Yu Gi Yo. Nunca vou me esquecer daquele dia. Cara, eu fiquei uma fera. Aliás, eu fiquei puto.

Virou questão de honra: tinha que recuperar os meus cards.

Hoje, olhando para trás, eu acho besteira aquele estresse todo só por causa de uns pedaços de cartolina. Porém, quando eu tinha seis anos, considerava aqueles cards como a minha vida — os bens mais preciosos que eu tinha. Foi por isso que, na hora de ir embora, eu cerquei o Léo na saída do colégio.

O moleque estava se mijando de medo. A mãe dele costumava vir busca-lo horário, porém, justo nesse dia (para minha sorte e azar dele), ela se atrasou um pouco. Léo ficou me olhando com aquela cara de merda — no recreio, quando ele estava com o bando dele, bancava o maioral (roubava o lanche dos moleques menores, empurrava quem visse pela frente e puxava o cabelo das meninas), mas, quando estava sozinho, era outra pessoa.

Era um cagão.

— Quero meus cards de volta. — falei, sem rodeios.

— E-Eu... — gaguejou, nervoso. Ele não era gago, mas quando ficava muito nervoso não conseguia falar direito. — N-não sei do que v-você está falando, Pedro.

— Ah, não sabe? Me explica o que é isso aí no teu bolso, então.

O otário enfiou a mão no bolso da jaqueta do uniforme, melecando os meus cards com aquelas mãos grandes, suadas e nojentas — ele tinha um problema nas glândulas sudoríparas, por isso estava sempre todo suado.

— Esses s-são os meus cards, o meu pai que me deu.

— O quê?

— São meus. — ele repetiu a mentira, os lábios trêmulos. — E-e não adianta v-você q-quer-er me tomar... Vou contar para a prô Eunice e você vai ficar f-fe-ferrado, Pedro. Esses c-cards agora são meus!

Trinquei os dentes, meus punhos cerrados.

— Seus? — questionei, ameaçador.

Léo deu um passo para trás, se borrando de medo.

— É. E-eu vou ficar com eles agora. Você vai tentar p-pe-pegar eles de volta? Eu vou cha-chamar alguém se tentar!

Fiquei parado, apenas encarando o otário. Acho que a minha cara não devia estar das melhores, já que o Léo estava suando até pelas orelhas.

— Não. — respondi, com a voz calma. — Pode ficar com eles.

Ele arregalou os olhos, incrédulo. Sabia que os cards eram importantes para mim e foi justamente por isso que tinha me roubado. Estava com raiva porque eu era o único que não me intimidava quando ele estava com sua turminha de mini delinquentes.

— Sé-sério? — duvidou. — Vo-você não vai te-tentar pegar de mim?

Dei de ombros, desinteressado.

— Já falei que você pode ficar. Como você disse, Léo... Eles agora são seus, não é? — sorri e Léo suspirou aliviado. Ele começou a se virar para ir embora e não percebeu que eu tinha me aproximado. — Mas fica com isso aqui também!

No primeiro soco, ele já caiu de joelhos. No segundo, já estava tombado.

Léo abriu o bocão, chorando desesperado. Ainda cheguei a deferir mais três socos nele antes de sair dali, deixando o babaca estirado no chão. Ele tinha me roubado 40 cards, então deveria ter dado 40 socos e pontapés para ficarmos quites, entretanto, fiquei com medo de que alguém chegasse. Saiu no lucro ainda, o imbecil.

Foi a primeira vez que bati de verdade em alguém e, por mais que tenha levado uma bronca dos meus pais e ficado de castigo por uma eternidade, até hoje não me arrependo do que fiz. Principalmente toda vez que via o Léo, numa versão crescida e ainda mais otária do que nunca, andando pelos corredores do Pentágono. Tinha que aguentar o imbecil até na quadra — já que alguém teve a ideia brilhante de achar que aquelas mãos nojentas dele serviam para agarrar alguma coisa.

E o pior é que deu certo: ele era o melhor goleiro que tínhamos. É por isso que, mesmo o detestando, era obrigado a ter que controlar meus impulsos e não socar a cara do otário, que nem eu fiz no Jardim de Infância. Eu não podia simplesmente nocautear o Léo na saída do colégio e arrastar a cara dele no asfalto — já não andava nas graças do Diretor, se fizesse isso, seria expulso sem pensar duas vezes. E ninguém era corajoso ou bom o bastante para conseguir o feito.

Pelo menos, assim eu pensava. Até que ela mudou tudo.

Era um jogo normal, estava tudo numa boa. Nós estavamos ganhando de 2 a 0, a torcida estava animada. Já não via a hora do árbitro apitar o fim da partida e podermos começar a festa de comemoração. Então, quando eu estava distraído, enquanto tentava recuperar o fôlego, uma cor me chamou atenção no meio da arquibancada. Ou melhor, uma confusão de cores! Vermelho. Laranja. E o mais estranho: na cabeça de uma pessoa.

Encarei a garota por cerca de uns 30 segundos. Já a tinha visto antes pelos corredores, era a tal esquisita que todo mundo zoava. Vivia enfurnada na biblioteca ou escondida atrás de algum livro, não falava com ninguém — o boato era que ela nem tinha amigos.

Não sei o que me levou a ficar encarando-a por tanto tempo e nem sei que força foi aquela que me atraiu. Foi algo muito esquisito. Sabe quando está um sol de rachar e a sua mãe diz pra você levar um casaco por que vai chover? Foi algo assim. Quero dizer, não exatamente. Eu sei, isso é confuso.

Fato é que eu fiquei encarando a garota como se soubesse que algo aconteceria — como um pressentimento. Um segredo que me fora contado ao pé do ouvido por ela.

Olhar para a ruiva era como olhar para um céu nublado. Você observa os raios, ouve o barulho dos trovões... E espera a chuva vir e te molhar — a catástrofe acontecer. Aquela garota era indicação de uma tempestade em alto-mar, e eu sabia muito bem receonhecer os sinais quando os via.

Eu observei com exatidão o momento em que aquela catástrofe aconteceu. As luzes da quadra piscaram. Uma, duas, três vezes. A última oscilação pareceu durar uma eternidade. Eu ouvi um barulho alto, como o de uma pancada, estalando nas proximidades. Houve um grito pavoroso, em meio a escuridão. Quando as luzes se acenderam de novo, havia choque, pânico e horror.

Confuso, constatei que, antes de a iluminação oscilarar, a garota ruiva na arquibancada segurava uma lata de refrigerante nas mãos; uma lata muito parecida com a que estava rolando pela quadra, como em uma dança enlouquecida, espalhando o líquido borbulhante por todo lado.

Frazi o cenho, sem acreditar no que tinha acontecido, mesmo estando ali para ver com os meus próprios olhos. Fixei meus olhos na ruiva, querendo encontrar nela alguma nova resposta. Havia um monte de gente gritando ao meu redor, pessoas correndo... Não me movi, continuei encarando-a.

Ela me viu também; arregalou um par de olhos castanhos (ou cinzas — não dava para ver direito, devido a distância) e saiu correndo da arquibancada, desviando das pessoas que gritavam.

Depois que ela se foi, finalmente pude olhar para trás.

E lá estava o Léo: estirado no chão, com um arrombo na cabeça, sendo socorrido pelos outros jogadores e pelo professor de Ed. Física — que, nessa partida, tinha sido escalado como árbitro. A cena era assustadora — sangue no chão, gente gritando, uma confusão sem fim —, mas não consegui deixar de sorrir.

Aquela garota ruiva na arquibancada, de aparência frágil e pouco impositiva, tinha feito o que ninguém mais — nem mesmo eu — teve coragem. Nocauteou o Léo. O Léo, cara — o moleque tinha crescido pra cacete, parecia um troglodita (e se comportava como um também) —, o LÉO tinha sido nocauteado por uma garota!

Ri para valer depois disso, a sorte é que ninguém prestou atenção em mim.

Depois, é claro, deu uma confusão danada — teve até polícia no meio. Os pais do Léo queriam processar quem tinha jogado aquela latinha na cabeça oca do filho querido e não paravam de encher o saco do Diretor, exigindo as fitas das câmeras do ginásio. Fitas estas que, em um golpe do destino (se é que isso existe), tinham vindo parar em minhas mãos.

Vi centenas de vezes Luciana Êvan (era o nome da tal ruiva) atirar aquela latinha na cabeça do goleiro. Reprisei a fita incansavelmente — e toda às vezes me matava de rir. E a admirava em segredo.

Sem saber disso, Luciana Êvan tinha virado uma lenda para mim. A ruiva era a minha maior heroína. Até hoje sinto que estou em dívida com ela — se a nerd não tivesse feito aquilo, o Léo nunca teria saído do colégio e eu provavelmente teria o matado e agora estaria atrás das grades (isso, se a minha mãe não tivesse me assassinado primeiro para resguardar o nome da família).

Sendo assim, sou obrigado a ter que dividir a culpa do acontecido junto com ela. Somos uma dupla no crime — ainda que ela não saiba. E nosso segredo estava a salvo. Até agora... Parece que não sou só eu que tenho as fitas daquele dia. E quem tem aquelas gravações sabe muito bem o que faço, quais são meus esconderijos e os meus passos. Ou este CD não estaria justo aqui me esperando.

Eu olho ao redor, sentindo um calafrio tomar conta do meu corpo. Uma sensação esquisita de estar sendo vigiado.

Sem querer, percebo que acabei indo parar em um jogo de tabuleiro e não faço ideia de quem é meu oponente.

E muito menos de quem é a vez de jogar.


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Notas finais do capítulo

E, aí! Gostaram? :D



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