A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 32
31: Raposas no quarto.


Notas iniciais do capítulo

Como o título diz, esse capítulo está cheio de raposas... quais suas opiniões sobre elas? ^_^

GLOSSÁRIO:

Nikuman: também conhecido como Baozi ou bao é um tipo de pão cozido no vapor de origem chinesa, com um aspecto de coque. Está presente em várias cozinhas orientais, com diversas variações de recheios e preparações.

Makuragaeshi: Literalmente “Virador de travesseiros”.

Wagasa: Sombrinha tradicional japonesa.



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Quando acordou, Mayu avistou uma sombra cruzando rapidamente o seu campo de visão, mas ao virar-se e afastar as cortinas semitransparentes em volta de seu leito, deparou-se com o quarto vazio.

—Então a honorável esposa já está de pé tão cedo pela manhã. — a ugaikyo comentou daquela forma condescende de sempre, fazendo a superfície de seu espelho ondular. — Eu deveria lhe dar “bom dia”, eu suponho.

—Bom dia Oma. — olhou em volta mais uma vez — Havia mais alguém aqui?

A superfície do espelho de mão ondulou novamente e a tsukumogami emergiu dali.

—O honorável marido já saiu há algum tempo. — respondeu sentando-se e arrumando as saias debaixo das pernas.

Mal havia terminado de falar quando a porta se abriu e Satoshi entrou carregando uma bandeja.

—Oh, você já está de pé, e eu queria surpreendê-la.

Mayu arqueou as sobrancelhas, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.

—Esse é o meu desjejum?

—Pode acreditar que sim. — confirmou sorrindo, sentando-se ao lado dela e deixando a bandeja diante deles. — Eu tive que brigar com uma porção de youkais pela honra de servi-lo.

É claro que ele estava brincando. Não é?

—Não precisava ter feito isso. — comentou tocando-lhe a mão.

—Ah, muito pelo contrário, pois certamente o honorável marido não se perdoaria se fosse negligente ao ponto de permitir que sua amada e frágil esposa desmaiasse de fome novamente. — Oma intrometeu-se calmamente.

Dias antes quando estiveram junto a Furin, presos em seu território encantado, eles haviam acabado por ficar ali muito mais tempo do que realmente se deram conta, então quando percebeu Mayu já havia desmaiado de fome e exaustão.

E, segundo Akihiko, a primeira coisa que o pai e o irmão dele pensaram em fazer naquele momento foi acusar Furin!

—Você! O que fez à Mayu?! — Satoshi reclamou amparando-a nos braços.

Por sorte Furin não se sentiu ofendida com aquilo, ao contrário de seu filhote, que rosnou e mostrou os dentes.

—Eu dei-lhe chá e nikuman. — respondeu calmamente enquanto dava Akio para Akihiko.

—E o que havia nos pães?! — Akira perguntou agressivamente.

—Acho que o recheio era de carne de porco e alguns tinham pasta de feijão. — respondeu despreocupada pegando o pulso de Mayu para medir sua pulsação e levando a mão ao seu rosto para sentir sua respiração sugeriu: — Talvez ela esteja grávida de novo?

—O que?! — com o susto Satoshi quase a deixou cair — Mas não tem nem um ano que Akio nasceu! Isso… seria possível?

—Não, na verdade não parece o caso. — Furin fez beicinho, parecendo levemente decepcionada — Eu deveria ter oferecido antes, mas é que já faz tanto tempo que não convivo com humanos…

—O que ela tem? — Satoshi arregalou os olhos, apertando Mayu um pouco mais em seus braços.

—Você deveria saber melhor do que eu, afinal é o marido e está com ela há séculos, não deveria estar mais habituado à biologia frágil dos humanos? — a raposa o censurou dando leves tapinhas do rosto de Mayu para despertá-la — Quando humanos passam um dia inteiro sem beber ou comer eles esmorecem. Mayu-chan, Mayu-chan acorde…

E as primeiras palavras que Mayu se lembrava de ouvir quando recobrou a consciência foram as de Akira perguntando:

—Um dia inteiro, há quanto tempos estamos aqui?

—Quanto tempo? — Furin refletiu — Bem eu diria que uma noite inteira e a maior parte de um dia…

—O que aconteceu? — Mayu murmurou levando a mão à cabeça, e piscando enquanto tomava consciência da situação ao seu redor — Eu sinto muito, estou um pouco tonta, não sei o que…

Desculpou-se se apoiando nos ombros do marido para se levantar.

—Mamãe não se levante a…!

Akihiko começou a dizer preocupado, mas foi interrompido por Furin quando ela agarrou as mãos de Mayu e começou a falar:

—De forma alguma minha querida Mayu-chan! Eu é que deveria estar me desculpando agora, tome pegue alguns nikuman, coma quantos quiser, e tome algum chá também…! Na verdade, é melhor que vocês voltem agora à corte do dragão para que possa descansar um pouco, mas não se preocupe, podem levar todos os pãezinhos que quiserem! — enquanto ela falava as kudagintsune rapidamente embrulharam os pãezinhos em uma trouxa, inclusive aqueles que Anko ainda iria comer, fazendo-o reclamar em protesto. — E não se preocupe, quando Tamaki retornar com notícias daquele filhote rebelde eu os avisarei.

—A senhora disse “corte do dragão”?  — Akihiko perguntou abismado.

E ao ver que, na verdade, todos a olhavam de forma semelhante, Furin sorriu-lhes de forma lenta e enigmática.

—Estão sob sua hospitalidade e nem se preocuparam em saber o que ele é? Acho que meu filhote os deixou muito mal acostumados a confiarem demais. — Ryosuke-sama um dragão… por isso ele emanava toda aquela surpreendente aura de poder. — Irá anoitecer novamente em um par de horas, creio, então é melhor irem logo antes que Mayu-chan desmaie de fome novamente, não acham? — e não apenas Mayu, mas Akio também estava começando a ter fome, pois começou a acordar choramingando pedindo pelo leite — Vou abrir meu território para que possam sair, mas eu diria que a forma mais rápida de voltarem seria voando…

E desde então Satoshi vinha-a tratando como se estivesse comendo por dois novamente.

—Satoshi, eu posso comer sozinha. — Mayu reclamou suspirando quando o marido levou uma porção de arroz à sua boca.

—Eu sei disso. — ele assentiu, mas ainda assim a fez comer.

—Furin-sama não deu nenhuma notícia? — desistindo, abriu a boca obediente quando ele lhe ofereceu um pedaço de peixe cozido.

—Não, nada. Miso?

—Obrigada. — fez questão de pegar a tigela das mãos de Satoshi para conseguir beber ao menos isso sozinha. — Achei que poderia ter alguém aqui quando acordei, talvez fosse Yuri-chan.

Afinal mesmo que Oma houvesse lhe dito que não havia ninguém, os indivíduos ao seu redor — e isso incluía seus próprios filhos — tendiam a ignorar a presença de qualquer ser não perigoso, como já acontecera antes quando Yuri-chan a estivera seguindo.

Mas Satoshi estava balançando a cabeça, enquanto oferecia-lhe mais peixe.

—Não, de jeito nenhum, ela foi uma entre as quais eu tive que brigar para trazer seu desjejum. Mas havia alguém aqui?

—Não havia ninguém. — Oma respondeu.

—Eu provavelmente imaginei, talvez tenha sonhado. — Mayu refletiu pegando o chá para beber.

—Entendi. Hã… eu sei que já está quase na hora das aulas e que você está se dedicando muito a isso também, mas hoje poderia me dedicar um pouco de seu tempo antes? — pediu tirando uma tesoura de dentro do quimono — O meu cabelo já está quase cobrindo os olhos.

Mas coincidentemente Satoshi não era o único a estar tendo problemas com os cabelos.

Akira sempre mantinha os cabelos aparados curtos, mas Akihiko, por outro lado, os mantinha longos, batendo pouco abaixo dos quadris da mesma forma que Gintsune-sama, mas geralmente os amarrava em um rabo de cavalo longo… e observe bem, eu disse geralmente, pois hoje todos os cordões de seda, fitas de tecida e barbantes coloridos que ele costumava usar para amarrá-los havia simplesmente desaparecido.

—Não está aqui, nenhum, sumiram todos. — constatou chocado enquanto revirava pela quinta vez as gavetas e compartimentos da pequena caixa de madeira, com os cabelos caindo soltos sobre suas costas e ombros.

—Eu não percebi ninguém no quarto. — o makuragaeshi que os servia ali se desculpou mordendo o polegar direito enquanto olhava a volta, a procura de mais alguma coisa que pudesse estar fora de lugar.

Ele parecia com uma criança pequena, com menos da metade da idade de Akihiko, que tinha olhos redondos, faces cheias e rosadas, cabelos lisos e escuros cortados no formato de uma tigela, e um minúsculo par de chifres em sua testa — fato que levou os garotos a o confundirem com um filhote de oni num primeiro momento —, sempre usava vestes de monge muito maiores que o seu tamanho e constantemente estava carregando debaixo do braço um dos travesseiros dos garotos e/ou arrumando e desarrumando seus futons e o cesto onde Akio dormia.

—Mas alguém entrou obviamente. — Akira declarou retirando sua espada do suporte na parede e prendendo-a junto ao quadril — Irmão esqueça isso, rasgue uma tira de tecido qualquer e amarre os cabelos de uma vez!

Antes Akihiko costumava amarrar os cabelos somente com tiras de tecido rasgadas e um ou outro barbante que encontrava aqui e ali, mas Ryosuke-sama era inegavelmente um anfitrião bastante generoso.

—Se tivesse sido as suas coisas que sumiram você não estaria falando assim! — Akihiko reclamou.

Akira suspirou.

—Olhe, Haru-san já está quase chegando para levar o bebê para a mamãe amamentar, então nós temos que ir para a aula agora, porque se nos atrasarmos sensei vai nos fazer carregar aqueles barris cheios de areia e seixos de novo, mas quando voltarmos eu prometo que te ajudo a…

Interrompeu-se ao ouvir o som de palmas diante de seu quarto, pouco antes da porta deslizar para o lado, revelando Haru-san curvada no batente e acompanhada de Juu Ni e Kiyuu, também curvados, que traziam consigo as bandejas com o desjejum dos garotos.

—Obrigado. — Akihiko agradeceu ajeitando-se junto ao irmão enquanto os criados dispunham as bandejas diante deles e a mulher sem rosto se encaminhava diretamente ao cesto no canto do quarto onde Akio estava — Haru-san, você por acaso não teria visto meus laços de cabelo?

Haru estendeu a mão para afastar o mosquiteiro que rodeava o cesto de Akio, mas parou e ergueu a cabeça em silêncio, e quando todos olharam naquela direção, surpreenderam-se ao verem um guaxinim de pelos negros e castanhos, observando-os meio escondido entre as vigas do teto.

Akira arqueou as sobrancelhas.

—Mas o que…?

Foi uma confusão instantânea, o guaxinim saltou das vigas e caiu sobre Juu Ni o derrubando de costas no chão.

—Ele está com minhas fitas! — mas na pressa de se levantar Akihiko tropeçou na bandeja diante de si e espalhou todo o conteúdo.

O danadinho tentou escapar pela porta da frente, mas se atrapalhou quando um travesseiro foi arremessado sobre si, fazendo-o dar várias cambalhotas no chão, espalhando a maioria dos cordões, fitas e barbantes, nesse momento Akira quase conseguiu agarrá-lo pela cauda, mas ele conseguiu escapar por um triz, mudou de direção por três vezes, causando ainda mais caos no quarto, mas para todo lado que se virava havia alguém tentando apanhá-lo, e o cerco já estava quase completamente fechado quando a porta lateral abriu-se.

—Que bagunça toda é essa aqui?! — quis saber Satoshi, e o animal aproveitou aquela oportunidade para escapar por entre suas pernas. — Opa! Mas o que…?

—Não o deixe fugir! — Akira gritou voando atrás dele.

Mais atrás, Mayu estava acabando de se vestir e prender os cabelos com a ajuda de Oma e o animalzinho quase se chocou contra as duas, ele conseguiu desviar no último instante, mas Akira não teve tanta habilidade, derrubando ambas, assim o guaxinim estava quase alcançando a porta da frente quando alguém o agarrou por trás e o ergueu do chão.

—Mas o que é que está acontecendo aqui? — Satoshi perguntou intrigado, erguendo o pequeno animal que se debatia e rosnava enfurecido, bem acima da cabeça.

Akira estava ajudando a mãe e a ungaikyo a se levantar, e Akihiko havia acabado de chegar à porta lateral juntamente com Haru e Akio quando a porta principal abriu-se.

—Ora, então era aqui que estava o último dos pequenos invasores. — Ryosuke-sama constatou sorrindo.

—Mestre! — Oma curvou-se, perdendo instantaneamente todo o desdém característico de sua voz, sendo logo imitada por Haru também.

—Hã… desculpe, mas o senhor disse “pequenos invasores”? No plural? — Mayu indagou.

Ryosuke-sama anuiu entrando no quarto com uma caixa de madeira nas mãos que se sacudia sem parar.

—Ah sim, uma dúzia inteira mais ou menos, na verdade eles são bastante inofensivos, quase não possuem presença alguma então seria bem difícil achá-los, mas estavam causando uma bagunça e tanto, parece que estavam procurando por alguém.

—Mas esse aí estava roubando as minhas coisas! — Akihiko acusou entrando no quarto e apontando para o guaxinim ainda se debatendo na mão do pai.

O dragão de um olhar bem humorado ao animalzinho que, cansado de debater-se, pendia mal-humorado com as patas dianteiras cruzadas e o rosto virado para o lado.

—Talvez ele tenha roubado algo desses amiguinhos também? — sugeriu sorrindo e pondo a caixa debaixo do braço.

—Então esses aí não são tanukis? — Satoshi apontou a caixa.

—Não, apenas um bando de kudagitsunes.

Respondeu, fazendo Satoshi, a esposa e os filhos se entreolharem.

—Raposas tubo? — Akira repetiu.

—Sim, mas são completamente inofensivas, então vou levá-las para interrogatório e saber o que querem, depois vou libertá-las. — confirmou Ryosuke-Sama — Assim como esse rapazinho aqui, não precisam se zangar com ele, afinal é só um filhotinho de… — ele estava prestes a pegar o tanuki, mas deteve-se — Isso não é um filhote de tanuki. — resmungou.

—Não? — Satoshi estranhou olhando para o animalzinho em sua mão.

Ryosuke-Sama sorriu de lado.

—Esse é um belo disfarce que você tem aí amiguinho, de fato quase me enganou. — elogiou admirado.

Quando ele voltou a reaproximar sua mão, o guaxinim quase enlouqueceu, ele entrou em pânico debatendo-se e tentando escapar a qualquer custo, mas Satoshi o segurava bem firme, chegando inclusive a tentar morder a mão de Ryosuke-sama antes de ele conseguir agarrar sua cara.

—O que está fazendo? — Mayu perguntou chocada.

O guaxinim se debateu e tentou empurrar a mão de Ryosuke-sama, e Mayu ofegou assustada quando o dragão começou a arrancar sua face.

—O que está fazendo? — repetiu com a voz aguda de terror, já fazendo menção de dar um passo a frente.

Por que Satoshi não estava fazendo nada também?

Mas quando Ryosuke-Sama arrancou a face do pobre animalzinho, ela revelou-se apenas uma máscara de tanuki feita de madeira, e agora o que Satoshi carregava já não era mais um guaxinim de pelos castanhos e negros, e sim um filhote completamente negro de…

—Você! — Akira arregalou os olhos, irritado. — O que está fazendo aqui?!

O filhote de raposa olhou-o mal humorado e tornou-se num garotinho suspenso pelo colarinho do quimono.

—Será que dá para me colocar no chão agora? — reclamou.

—Olá. — Mayu sorriu aproximando-se — Foi você quem eu vi mais cedo?

Ele fungou esfregando o nariz.

—Eu entrei por um buraco no teto, a máscara ocultava minha presença, e estava me movendo por entre as vigas porque ninguém nunca olha para cima.

—E por que estava roubando minhas coisas? — Akihiko reclamou passando a mão pelos cabelos para tirá-los da cara.

—Só para ver sua cara de idiota. — o menino raposa olhou-lhe arrogantemente e mostrou-lhe a língua.

—Ah querido, venha aqui, eu vou arrumar seus cabelos para você. — Mayu o chamou gentil — Oma, você pode pegar os pentes na caixa de cosméticos?

Oma assentiu e afastou-se, enquanto Ryosuke-Sama observava o garotinho.

—Então esse é o filhote da raposa feiticeira que está na floresta em minhas terras de quem vocês me falaram, eu suponho. — comentou, girando a máscara de tanuki de um lado para o outro na mão — É um trabalho muito bem feito.

—Sim, e é da minha mãe!

O menino saltou tentando recuperar a máscara, mas Ryosuke-sama ergueu a mão afastando-a do alcance dele, no entanto ele aproveitou a deixa e surrupiou a caixa de debaixo de seu braço, correndo para o canto do quarto em seguida.

—Esse selo é coisa de amador. — declarou mordendo a ponta do polegar e esfregando o sangue entre a tampa e a caixa.

A tampa foi atirada para longe com uma explosão de kudagitsunes que saíram voando em um furacão de risadas, cumprimentos estridentes e gritos de comemoração pela liberdade reconquistada, fazendo voarem cosméticos, pincéis, escovas de cabelo e roupas.

—Como eu disse são inofensivas, mas causam uma bagunça e tanto.

Gargalhou Ryosuke-Sama guardando as mãos nas mangas enquanto Haru encolhia-se com Akio e recuava de volta para o quarto dos meninos quando algumas raposas tubo se avultaram ao seu redor tentando pegar o bebê, enquanto as outras kudagitsunes se dividiam em grupos para puxar as asas dos meninos, os cabelos de Mayu e as roupas de Satoshi.

—Finalmente os encontramos! — comemoravam as raposas — Queridos amigos, trazemos uma mensagem! Uma muito importante!

—Que tipo de mensagem?

Satoshi questionou ao mesmo tempo em que tentava espantar as raposas que puxavam as mangas de suas roupas, enquanto Ryosuke-sama ainda ria ao fundo.

—Haru venha até aqui. — o dragão chamou entre risadas — Eu vou aju…

Subitamente virando a cabeça o sorriso despreocupado morreu em seus lábios e foi substituído por um semblante sério e sombrio.

—Mestre? — Oma chamou-o preocupada ao perceber a súbita mudança de humor, já que todos os outros estavam ocupados com a algazarra das raposas. — Algo errado?

—Alguém muito perigoso vem se aproximando. — declarou com ar soturno — E ousado também, para se atrever a por os pés em terras tão pacificas carregando uma aura tão violenta. — e então se voltando mais uma vez para a bagunça caótica dos aposentos, forçou um sorriso despreocupado ao declarar: — Queiram perdoar-me, mas preciso me retirar agora para resolver alguns assuntos de urgência. — mas antes de fechar as portas ofereceu um último conselho: — Tentem recolocar as raposas na caixa.

Àquela altura Akio já chorava reclamando de fome, mas Haru havia recuado de volta para o quarto dos garotos e se trancado ali fugindo das traquinas raposas ainda em sua caótica comemoração e, em meio a toda aquela bagunça, ninguém notou o quanto o menino raposa havia empalidecido no canto do quarto com as palavras de Ryosuke-Sama.

—Colocá-las de volta na caixa, ele disse! — reclamou Satoshi capturando duas raposas tubo em cada mão, seus corpinhos longos e flexíveis se retorcendo e enroscando ao longo de seus antebraços — E como fazemos para impedir que as raposas fujam quando abrirmos a caixa para colocarmos mais?

Debatendo-se e praguejando os garotos ainda tentavam afastar as kudagitsunes que os atormentavam, até que Mayu, já no limiar da paciência, levou dois dedos à boca e um assovio alto, longo e agudo ressoou no recinto, machucando os ouvidos dos presentes.

—Agora já basta. — censurou com tal dureza que até mesmo as raposas tubo que davam nós em seus cabelos se afastaram — Vocês estão felizes por estar livres, sim isso nós já entendemos, mas disseram que têm uma mensagem para nós, então digam de uma vez.

O silêncio reinou ali por alguns breves segundos, até ser entrecortada pela risada baixa da ungaikyo.

—Faz realmente jus a alcunha de “furiosa esposa”. — comentou logo antes de retornar para o interior de seu espelho.

Mayu fungou e crispou os lábios, não gostando do título, mas deixou aquilo de lado.

—E então? — instigou às raposinhas.

Duas delas pegaram pentes de madeira e começaram a desembaraçar os nós em seu cabelo que elas próprias haviam feito, enquanto uma terceira pairou diante do seu rosto:

—Nossa mestra nos deu ordens para avisá-los que devem retornar à floresta!

As raposas tubo nas mãos de Satoshi ainda se contorciam, mas uma delas disse:

—O mestre retornou e trouxe novidades!

Outras duas raposas voavam em volta da cabeça de Akira e Akihiko, a que rodeava Akira disse:

—Mas é melhor se apressarem, ou eles poderão se tornar impacientes!

E aquela que rodeava Akihiko completou:

—E ninguém quer ver o mestre impaciente!

De repente arregalando os olhos e afastando os lábios de forma a deixar os dentes â mostra, Akira virou a cabeça na direção do menino raposa.

—Se sabia disso por que não disse antes? — exigiu saber.

Mas o garoto já havia sumido.

É claro que o menino não estaria mais ali, principalmente considerando-se que ele sabia exatamente quem havia adentrado nas terras do dragão e a julgar pela distância com a qual a fúria dele foi sentida, sem dúvida o mais seguro era sumir dali de uma vez, se ao menos ele conseguisse voltar para a floresta sem ser percebido… se aquele dragão idiota não tivesse ficado com a máscara de sua mãe…

Mas o dragão havia sim ficado em posse da máscara, e ainda a estava segurando em uma das mãos quando parou no meio da ponte diante dos portões principais em seu castelo, atrás de si podia ouvir cada um de seus sentinelas se colocando de prontidão sobre as muralhas do castelo, muitos rosnando e, certamente, expondo as garras enquanto outros tantos preparavam seus arcos e flechas, ouviu até o deslizar de metal sobre coro quando espadas foram desembainhadas aqui e ali, embora houvesse dado ordens explícitas de não atacarem sobre circunstância alguma, diante de si, sua sempre tão vívida e barulhenta cidade agora parecia-se mais a uma zona abandonada, todos haviam fugido e se escondido às pressas e somente uma única figura restava de pé ali.

Desafiante e hostil, a mulher possuía cabelos curtos e repicados à altura das bochechas, que brilhavam prateados como uma lâmina afiada sob o luar, e seus olhos, que a primeira vista podiam parecer negros, eram na verdade cinzentos, escuros, duros e inflexíveis como um rochedo, havia uma máscara negra com feições de raposa presa no alto da lateral de sua cabeça, estava descalça e usava um quimono negro masculino, posto de forma tão descuidada que o obi estava frouxo e parecia prestes a desatar a qualquer instante, as bordas do quimono estavam abertas e uma boa parte da pele alva entre seus seios e de sua barriga exposta, parecendo perigosamente a apenas um mero sopro de acabar desnudando um dos seios, ou ambos.

—Não tenho intenção de permitir derramamento de sangue ou violência desnecessária nessas terras de paz, portanto, se veio em paz lhe dou as boas vindas. — Ryosuke declarou-lhe — Do contrário lhe darei uma chance, e apenas uma, para que recue.

A mulher nem sequer piscou, estendeu a mão a frente e exigiu:

—Vim buscá-lo, onde ele está?

—Você é uma das raposas que está na floresta. — Ryosuke observou-a, havia uma família de raposas naquela floresta, ele agora sabia: um casal e o filhote de ambos. Aquela raposa exalava uma aura de perigo e quase selvageria, mas não lhe parecia ser a feiticeira… — Nenhum mal foi feito ao seu filhote. — disse ainda assim, e jogou a máscara de tanuki que girou pelo ar como um disco e foi parar direto nas garras da selvagem raposa prateada — Ele estava brincando com alguns de meus convidados, conhecidos seus certamente, posso pedir que o chamem.

Ofereceu delicado, mas a cabeça da raposa virou-se repentinamente para a esquerda, detectando ali um movimento quase imperceptível.

—Anko. — chamou — É melhor sair daí agora antes que eu vá te pegar pessoalmente.

Durante um longo momento não houve resposta alguma, mas então alguns cestos caíram e um filhote de raposa com pelos negros saiu dali de trás com a cabeça baixa e o rabo entre as patas.

—Venha aqui. — A raposa prateada chamou rispidamente, a presença do dragão parecia ter se tornado insignificante agora.

Quase se arrastando o filhote aproximou-se e sentou-se cabisbaixo aos calcanhares da mulher de rosto pétreo, regougando um lamento:

—Eu pensei que sua atenção estaria toda no dragão e eu poderia escapar despercebido, papai.

A raposa prateada abaixou-se e pegou-o pela pele frouxa do pescoço, erguendo-lhe até a altura dos olhos e fazendo o filhote se encolher ainda mais.

—Minha atenção está sempre voltada para a minha família. — a raposa declarou — E se você estava tentando escapar sem ser visto, então sabe que fez algo errado. — afirmou severa enquanto os olhos se semicerravam. — Você magoou sua mãe, Anko, me dê agora mesmo um bom motivo para não deixá-lo pendurado pelas orelhas durante uma dúzia de dias.

O filhote encolheu-se ainda mais e fungou um lamento de partir o coração, mas como isso não sensibilizou seu pai, ele começou a regougar:

—Eu disse que poderia trazer o recado, que os ajudantes só iriam se distrair e ficar brincando com todas as coisas novas e interessantes e não cumpririam a missão.

O pai sacudiu-o.

—Se a sua mãe diz que ainda é novo demais então és! — ralhou, e ergueu os olhos para olhar para o dragão ainda parado a poucos metros diante de si e para além dele — E quanto aos nossos amigos? Eles receberam o recado?

Dessa vez o filhote pareceu quase exultante ao responder:

—Não! Todos os ajudantes ficaram brincando e passeando no castelo, e foram capturados pelo dragão e selados numa caixa!

O pai arqueou-lhe uma sobrancelha.

—Ah, então você deu o recado? — Mas o filhote encolheu-se com o rabo entre as patas. — Ou ficou brincando e passeando pelo castelo?

Mas eu

—Talvez eu devesse colocar você em uma caixa, e presentear sua mãe com ela. — ameaçou semicerrando os olhos.

Ryosuke sentiu a chegada das raposas tubo poucos instantes antes de elas passarem por ele como uma lufada de ar fresco que ergueu seus cabelos, os jogando sobre seus olhos e derramando risadas alegres em seus ouvidos, antes de alcançarem as raposas adiante e anunciarem entre risadas enquanto voavam em um redemoinho a suas voltas:

—Nossos amigos virão logo, mestre, a mestra ficará tão feliz!

—Ela vai sorrir!

—E nos parabenizar!

Então dispararam para o céu e desceram em arco, mergulhando e sumindo na floresta quilômetros adiante com uma velocidade espantosa.

—Ela vai ficar feliz e sorrir. — ponderou com uma suavidade que até então lhe parecia desconhecida tocando as feições femininas, logo antes de desaparecerem como uma sombra — Você vai se desculpar com sua mãe. — ordenou-lhe por entre os dentes, e o filhote encolheu-se tanto que nitidamente diminuiu de tamanho — Vai se prostrar arrependido e pedir desculpas à sua mãe. Você. Entende. Anko?

 Limitando-se a ganir e fungar o filhote encolheu ainda mais e balançou a cabeça para cima e para baixo, e o pai baixou a mão, ainda segurando-o pela pele frouxa do pescoço, como se ele fosse uma trouxa de pano, olhou para o dragão e inclinou a cabeça no mais breve e displicente dos gestos antes de lhe dar as costas e retornar para a floresta, levando consigo toda aquela onda maciça de violência inerente a si.

O sol brilhava forte àquela altura da manhã, mas dentro da floresta já era noite escura e profunda e bolas de fogo de raposa azul fantasmagóricas iluminavam os galhos das árvores… talvez as raposas houvessem estendido ainda mais o seu território ali, ou então elas confiavam neles o suficiente para lhes mostrar uma parte maior dele já que agora eram todos “amigos” — fosse lá o que “amigos” pudessem querer dizer para aquelas raposas.

Em muitos momentos Gintsune sabia como ser uma criatura bastante encantadora, mas ele também sabia ser assustador ou um completo despudorado quando queria, e é claro que ele tinha a quem puxar; eles encontraram as raposas na mesma clareira de antes, mas agora ela parecia ter sido moderadamente limpa e a grande maioria dos ossos espalhados pelo chão haviam desaparecido — mas não todos — enquanto Furin estava sentada a um lado da clareira em um estrado repleto de almofadas sob um wagasa azul celeste com um turbilhão de pétalas brancas estampada, duas lanternas japonesas flutuavam próximo a ela e sentado diante do estrado, de costas para os recém-chegado, estava o filhote de raposa.

—O seu irmão sempre amou e ansiou pelas cidades também, mas ele nunca me desobedeceu quando eu lhe dizia para não ir, meu querido filhote era um filho amável e gentil. — estava dizendo Furin com aquele seu tom de voz delicado, com o rosto virado levemente de lado enquanto encobria a metade inferior dele com a manga do uchikake negro e lágrimas brilhavam como pérolas por entre os cílios espessos e escuros — Mas você, meu raio de luz, você é teimoso e intransigente tal qual a Minha Flor, porém ela precisava ser ameaçada e arrastada para sequer se aproximar das cidades e você… o que farei com você? Eu deveria atar-te um sino por acaso? Como pôde mentir e roubar de sua própria mãe? — fungou trêmula — Você me magoou.

E o filhote encolhia-se a cada repreenda enquanto Akira observava aquilo com um sorriso de escárnio.

No centro da clareira o pai de Gintsune estava em pé de costas para eles sobre as raízes da jubokku, com metade da parte superior do quimono caído, deixando seu braço direito e parte de suas costas expostas, como se a peça houvesse escorregado, mas não tivesse se dado ao trabalho de por no lugar, enquanto segurava um balde de madeira numa mão e uma concha na outra, com a qual ele pegava e jogava grandes doses de vinho, não, vinho não, sangue, sobre as raízes da árvore, mas mesmo estando de costas havia uma nítida mudança nele, seu corpo parecia menor e mais delgado…

—As raízes da jubokku se espalham sob o solo de toda essa clareira e um pouco além, quase nada pisa aqui sem ser consumido, mas ela tem sido nossa anfitriã durante todos esses meses, por isso devemos mostrar nossa sincera gratidão. — a raposa prateada disse em voz feminina sem se virar.

Então era assim que aquelas raposas haviam começado a viver na clareira da jubokku? Uma relação de simbiose na qual ela lhes proporcionava um lugar sossegado para se estabelecerem, permitindo até mesmo que desancassem entre seus galhos e eles a alimentavam? Mas enquanto olhava o pai de Gintsune jogar aquelas grandes doses de sangue nas raízes da árvore, Satoshi não conseguia deixar de pensar se isso apenas não fazia parte de mais um dos feitiços de Furin.

—Eu consegui noticias sobre o nosso filho.

A raposa prateada informou-os virando-se com toda a falta de vergonha que o próprio filho ostentava, pois um de seus seios estava exposto e ele não parecia ligar o mínimo para isso, é claro que muitos youkais não se incomodavam se estavam cobertos dos pés à cabeça ou completamente nus, mas ainda assim aquilo parecia ser algo com o que Mayu — que já vivia ali há séculos — e tampouco Satoshi — que era um youkai — jamais seriam capazes de se acostumar plenamente, de forma que o tengu rapidamente desviou os olhos para o céu escuro e Mayu instintivamente moveu-se para trás dos filhos e cobriu seus olhos precariamente com as mãos.

Satoshi quase podia ouvir a voz de Gintsune zombando no fundo de sua consciência: Se meu corpo é feminino o bastante para te deixar constrangido qual o problema de eu dividir o banho com sua esposa?

Aquele cretino! Logo se via de onde vinham seus maus hábitos.

Akihiko estava absurdamente vermelho, mas Akira não exibia reação alguma, ele e o irmão já haviam visto coisas daquele tipo milhares de vezes, afinal tomavam banho junto com a mãe desde bebês, então qual era a diferença?

—Furin. — a raposa prateada chamou erguendo a voz. — Eles estão aqui.

Furin ergueu os olhos, interrompendo-se em seu sermão e piscando para afastar as lágrimas, ela fez beicinho.

—Tamaki, por que ainda está assim? Eu disse para se arrumar melhor antes de nossos amigos chegarem. — suspirou sentida — Talvez seja por isso que meu raio de luz também se sente tão confortável em me ignorar…

O filhote fez um som baixo e indignado, mas Tamaki limitou-se a inclinar a cabeça.

—Eu estava alimentando a árvore e perdi a noção do tempo. — justificou-se deixando o balde de madeira no chão com a concha dentro e levando as mãos às costas…

…quando Mayu se deu conta do que ele estava fazendo ela arquejou e puxou os filhos para se virarem, enquanto Akio se remexia atado às suas costas, antes que a raposa acabasse de tirar as roupas por completo.

—Nós temos comida. Então comam.

Tamaki anunciou em voz masculina, mas ainda assim Mayu não ousou virar-se ou deixar os filhos se virarem até Satoshi tocar-lhe o ombro avisando-lhe de que já era seguro.

O filhote havia sumido e Tamaki se sentou usando hakama preta e kosode branco ao lado da esposa quando os quatro se acomodaram nas almofadas dispostas em forma de semicírculo diante do estrado enquanto kudagitsunes colocavam bandejas com comidas e serviam saquê a todos.

—Quando Tamaki encontrou a casa de nosso filhote ele conheceu a nekomata que foi nomeada por ele certa vez, e tem estado ao seu serviço desde então.

As sobrancelhas dos garotos se arquearam.

—Tama? — disseram.

—Nosso filhote sempre foi tão despreocupado que duvido muito que ele tenha percebido a real extensão do que fez… — Furin suspirou. — De qualquer forma, ela entregou isso a ele.

E tirou da manga uma younomi de borda lascada e tinta desbotada que, à principio, nenhum dos quatro reconheceram, até que a Yunomi abriu um único olho e piscou letargicamente.

—Mas… é a yunomi de Gintsune! — Mayu piscou surpresa.

Furin colocou a yunomi diante deles e suspirou.

—A gata disse que ela não parava de correr a três dias e, enquanto Tamaki trazia-a até aqui, ela tentou se sacrificar atirando-se do céu por nove vezes em uma única noite, e desde que não conseguiu tem estado assim apática desde então… provavelmente algo aconteceu ao meu querido filhote.

—Essas xícaras não funcionam. — Satoshi deixou escapar de repente.

Bebendo em silêncio Tamaki o olhou longamente por cima da taça de saquê e a cabeça do filhote surgiu no decote de Furin quando ela perguntou-lhe delicadamente:

—O que quer dizer com isso, Satoshi-kun?

Satoshi mexeu-se desconfortável com aquele tom e pigarreou:

—Bom… essa não é a primeira yunomi que se instala debaixo da casa de Gintsune, digo… tempos atrás havia outra, e certo dia ela simplesmente ficou louca correndo desesperadamente por toda a casa até que um dia subiu ao telhado e jogou-se de lá, mas… nada aconteceu. Então Gintsune decidiu que essas coisas eram inúteis e depois essa apareceu.

Tamaki estendeu a taça de saquê já vazia para ser servido novamente, mas a expressão de Furin era indecifrável quando perguntou:

—Foi isso o que ele disse? Meu querido filhote realmente nunca prestou muita atenção às aulas. — com um único dedo coçou distraidamente sob o queixo do filhote negro e continuou — Nem sequer lhe passou pela cabeça que talvez algo de ruim tivesse acontecido com alguém que ele amava? — Seus olhos eram dourados como ouro derretido, mas estavam frios e implacáveis, pequenas descargas elétricas começaram a estourar ao seu redor, mas logo pararam — Tamaki quase não sobreviveu ao nascimento de sua última cauda e se ele tivesse morrido eu teria morrido com ele, e isso sem falar de Nossa Flor… querido, há quanto tempo não temos notícias dela?

Tamaki esvaziou a taça de saquê novamente antes de responder:

—Cento e noventa e oito anos.

—É verdade. — os dedos de Furin continuavam acariciando sob o queixo de seu filhote — Ela sempre foi uma menina tão distante e insensível então nunca nos preocupamos muito, mas… enquanto Tamaki estava fora eu estive refletindo bastante, sabiam? — pegou a yunomi com ambas as mãos e esperou até que uma das raposas tubo se aproximasse para servi-la de chá. — Diferente do que a maioria pensa atualmente, o mundo humano não é realmente completamente inalcançável. — começou a dizer, mas fez uma pausa para tomar um gole de chá — A transição apenas se tornou extremamente difícil, e mesmo que consiga atravessar, não há garantias que encontre uma forma de voltar… se tiverem dúvidas podem perguntar ao amigo dragão de vocês, talvez ele saiba de algo, eu ouvi dizer que ele visita o mar constantemente e acho que ali é uma área onde talvez se consiga atravessar.

Mayu levou a mão à boca quando quase cuspiu a comida e, em seu choque, acabou falando de boca cheia:

—Isso é realmente verdade?

—São apenas teorias. — Furin admitiu girando o chá entre as mãos antes de beber mais um gole — Mas segundo a gata dele, meu querido filhote havia apenas saído para caçar na montanha quando desapareceu.

—Sim, a montanha da minha vila. — Satoshi confirmou.

Furin assentiu.

—Tamaki investigou ali também e não acho provável que ele tenha encontrado uma passagem, então acho que talvez meu querido filhote tenha sido invocado.

—Invocado…? — Akihiko repetiu incerto.

—É como um chamado para que algo ou alguém se manifeste. — ela explicou paciente — Meu antigo mestre me ensinou que há várias maneiras de se fazer uma invocação…

A taça de saquê se estilhaçou na mão de Tamaki.

—Ah… desculpem-me. — ele falou lentamente, com o rosto inexpressivo enquanto sacudia a mão molhada pela bebida — Mas quando ouço falar daquele homem eu sinto vontade de matá-lo novamente…

E estendeu a mão para receber uma taça nova das raposas tubo enquanto exalava uma aura cada vez mais assassina, que os fizeram se remexerem desconfortáveis e Satoshi se aproximar um pouco mais da esposa.

—Mas no caso de invocar algo tão poderoso quanto meu filho para um mundo tão distante seria necessário, no mínimo, uma boa reserva de poder, algum tipo de ligação direta com ele e o conhecimento de seu verdadeiro nome. — Furin seguiu falando, ignorando completamente a situação — E como meu querido filhote não contou o nome dele nem mesmo a vocês, que são sua segunda família, eu só consigo pensar em uma pessoa. — ela fez uma pausa e olhou longamente para o interior da yunomi, suspirando em seguida — É exatamente como eu pensava.

E ofereceu a yunomi ao marido, mas ele fez uma careta e grunhiu:

—Sabe que não consigo ler as folhas de chá como você. — mas ainda assim deu uma espiada no interior da yunomi antes de fixar o olhar no rosto da esposa. — Mas você está pensando nela, não é?

Furin suspirou, enquanto em seu decote a cabeça do filhote emergiu e ele lançou um olhar curioso ao interior da yunomi.

—Minha Flor sempre foi uma filhote tão distante e fria, e nunca conheci alguém tão habilidoso em ocultar naturalmente a própria presença… mas jamais pude imaginar que ela estaria presa entre os humanos, seu próprio inferno pessoal… como pudemos ser tão relapsos, meu amor? E é claro que se tratando dela, iria recorrer ao irmão mil anos antes de sequer pensar em pedir ajuda a qualquer um de nós dois.

Concluiu deixando a yunomi diante de ambos, o pequeno tsukumogami sentou-se ali e piscou letárgico antes de fechar o único olho e parecer cair em sono profundo.

—A irmã dele o chamou? — Mayu repetiu tão incrédula que nem sabia se havia ouvido direito.

Saltando para fora do decote da mãe o filhote aproximou-se da yunomi adormecida e farejou-a por um momento antes de erguer a cabeça e regougar algo para os pais.

—Não, meu raio de luz. — Furin respondeu passando lentamente a ponta dos dedos pela yunomi. — Mas estão vulneráveis, talvez estejam feridos, pode até ser que meu Querido Filhote tenha sido apanhado na mesma armadilha que aprisionou a Minha Flor…

Satoshi piscou preocupado.

—E o que fazemos agora?

Furin e Tamaki seguraram as máscaras de raposa diante dos rostos.

—Estamos aqui com a yunomi do nosso filho e ele está lá com o seu chapéu, então temos uma ligação, não uma ligação forte, mas uma ligação mesmo assim. — disse Furin.

—Então acho que já está mais do que na hora de tentar contatá-lo. — concluiu Tamaki.

*.*.*.*

A teoria dos seis graus de separação afirma que no mundo são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas… em Higanbana esses números tendiam obviamente a ser bem menores, por exemplo, o farmacêutico era marido da sobrinha de um dos clientes mais assíduos e antigos da pousada, mas Yukari tentou não pensar muito nisso e agir normalmente enquanto comprava ataduras e soro fisiológico pela segunda vez naquela semana, claro, havia outra farmácia no centro comercial, mas ela ficava há apenas sete metros da loja de quimonos da família de Kaoru e isso era ainda pior.

Quer dizer, não que o fato de ela estar comprando ataduras fosse fazer alguém suspeitar que estava abrigando duas raposas sobrenaturais em seu quarto e uma delas estava machucada… mas só por garantia colocou também na cestinha protetor labial, reparador de pontas e pastilhas para a garganta.

A maioria dos ferimentos de Gintsune havia sarado de forma extraordinária como sempre, mas aquela pata queimada era o que mais a preocupava, porque ela não estava cicatrizando, e é obvio que Yukari não tinha a mínima ideia do que estava fazendo, mas ainda assim continuava a tratar da queimadura o melhor que podia, limpando-a e trocando as ataduras e empurrando anti-inflamatórios na goela dele a cada doze horas.

E é claro que Gintsune havia lhe dito uma vez que youkais não necessitavam comer todos os dias, mas ela tinha certeza que onze dias já era um pouco demais, isso sem falar dos séculos que a irmã dele havia passado lacrada sem comer coisa alguma… então um pouco de mingau de arroz empurrado pelas goelas deles todas as noites não era nada demais.

Estava terminando de colocar as ataduras novas de Gintsune quando a irmã dele arfou e sua respiração ficou repentinamente acelerada e ruidosa, e se ela fosse alérgica a arroz?! Yukari levantou-se com um pulo, não, não podia ser o arroz, ela estava dando aquilo a eles há praticamente duas semanas por que ela só teria uma reação agora? E Gintsune havia dito que youkais eram imunes às doenças humanas, então ela concluiu que isso obviamente incluía alergias alimentares também! Por outro lado, ele também havia mencionado algo sobre youkais terem suas próprias doenças… sua mão paralisou no ar quando olhos incandescentes cor de ouro fundido abriram-se e fixaram-se nela.

A raposa então substituiu sua respiração alterada por um som baixo e constante, como o de um pequeno motor, estava rosnando.

Yukari engoliu em seco recuando a mão.

—Olá… acho que você deve estar um pouco confusa, mas…

Quando a raposa atacou-as saltando sobre ela, Yukari gritou aterrorizada e tentou fugir, mas tropeçou em seus próprios pés e caiu de costas batendo a cabeça na mesa e ainda estava, portanto, vendo o mundo girar quando sua barriga e peito foram esmagados, tendo o ar expulso de seus pulmões.

A raposa estava sobre ela agora, rosnando com os dentes bem próximos à sua traquéia… e tão rápido quanto surgira, o peso desapareceu também.

Pois Gintsune havia despertado.

As raposas rolaram uma sobre a outra, rosnando e mordendo até se chocarem contra o guarda-roupa fazendo-o estremecer e quase cair sobre elas e, enquanto a irmã ainda se debatia, Gintsune retornou à sua forma humana — pela primeira vez desde aquela noite — e entrelaçou suas pernas às patas traseiras dela, passou o braço em volta de seu corpo, prendendo as patas dianteiras dela junto ao corpo e levou a outra mão ao pescoço segurando logo abaixo de focinho, mantendo-lhe a cabeça erguida e imobilizando-a.

—Irmã fique calma, sou eu, To-chan, você se lembra? — disse-lhe tranquilamente — está tudo bem agora, você já está segura.

Aos poucos a respiração acelerada da raposa foi se acalmando e Gintsune afrouxou o aperto que a mantinha presa, deixando-a relaxar o suficiente para retornar à sua forma humana.

—Isso… tudo bem, tudo bem… — ele murmurou passando a mão em seus cabelos — Desculpe ter demorado tanto.

—Yuki? — a mãe de Yukari chamou lá debaixo, pondo os três imediatamente tensos novamente. — Que barulho todo foi esse aí em cima?

Yukari olhou com os olhos arregalados para o par de raposas sentadas no chão a poucos metros dela, e se a mãe subisse até ali?!

—Foi… eu me assustei com um pássaro que entrou voando pela janela. — respondeu — Mas ele já foi.

—Ah bom, então deixe a janela fechada por um tempo.

Yukari suspirou aliviada.

—Você está bem? — Gintsune lhe perguntou de pé próximo a ela, estendendo-lhe a mão para ajudá-la a levantar.

—Sou eu quem devia estar lhe perguntando isso. — sorriu aceitando a ajuda.

Soltando-a, Gintsune fixou os olhos nas ataduras enroladas em seu braço direito, desde pouco abaixo de seu cotovelo até a ponta dos dedos, amarrando-os todos unidos.

—Você fez isso?

—Sim, todos os seus ferimentos cicatrizaram normalmente, mas a sua pata continua queimada. — confirmou.

—Entendi, obrigado, os ferimentos espirituais são realmente um pouco mais complicados. — ele sorriu-lhe e colocou-se ao seu lado, repousando a mão sadia no meio de suas costas. — Irmã. — chamou — Eu sei que essa humana olhou-te e falou-te diretamente, mas nós estamos no território dela, além de que devemos um grande favor a ela, então será que dessa vez você poderia poupá-la?

A irmã de Gintsune levantou-se do chão e olhou-os brevemente, passando seu olhar de um para o outro, antes de suas sobrancelhas se arquearem brevemente.

—Compreendo. — respondeu fria e distante — Eu fui precipitada, por favor, queira perdoar-me, irmão.

Juntou as mãos sobre as coxas e inclinou-se levemente.

Ela era como uma pintura da antiguidade que havia ganhado vida e tudo em si, desde a forma como se movia, levantando-se e arrumando as camadas de roupas, até o som da sua voz pareciam essencialmente fora de lugar e anacrônicos ali no espaço simples do quarto de Yukari.

Gintsune suspirou relaxando e afastou-se de Yukari, colocando-se entre as duas.

—Obrigado. Então vamos recomeçar aqui. — pigarreou — Irmã, essa é Yukari e ela é importante para mim, Yukari, essa é minha irmã, ela atende como Momiji… — hesitou olhando para a irmã — Você ainda usa esse nome, não é?

Momiji sorriu por um breve momento.

—É o nome de minha preferência. — anuiu.

Mas esse não havia sido o nome pelo qual Gintsune a havia chamado na noite em que… de repente arregalando os olhos e cobrindo a boca com ambas as mãos, Yukari deu-se conta de que naquela vez havia simplesmente escutado o nome verdadeiro dela.

—Oi, você está machucada?

Gintsune estava atrás dela agora, com as mãos em seus ombros.

—Eu bati a cabeça. — Yukari confirmou esquivando-se. — Mas estou bem.

—O que? — ele veio atrás dela — Me deixe ver.

—Não foi nada. — ela continuou a esquivar-se.

—Como nada? — ele insistiu — Yukari, às vezes os humanos morrem por uma batida na cabeça, Tsubaki quase não foi mais capaz de acordar!

—Isso e aquilo foram coisas completamente diferentes. — continuou a esquivar-se.

—Então me deixe dar uma olhada…! — ele segurou-lhe o ombro, já prestes a virá-la novamente.

—To-chan. — Momiji o chamou olhando em volta — Onde estamos?

—Ah. — Gintsune afastou-se de Yukari, pegou a irmã pelas mãos e a guiou até a cama, onde a fez se sentar e ajoelhou-se diante dela, ainda sem largar suas mãos — Essa é a habitação de Yukari, depois que quebrei o selo eu estava muito fraco então acabei procurando abrigo aqui para nós… — fez uma pausa — Na verdade já faz algum tempo que estou instalado aqui.

—Compreendo. — ela anuiu. — Por quanto tempo eu estive fora?

Gintsune hesitou.

—Hum… na verdade, irmã, há muitas coisas que preciso lhe falar ainda.

Ele levantou-se a trazendo consigo e assim num piscar de olhos ambos haviam desaparecido, como se nunca houvessem estado ali.


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Notas finais do capítulo

E a partir de agora as "duas linhas do tempo" na história estão novamente sincronizada YEY! ^_^

BESTIÁRIO:

Makuragaeshi:
São uma classe de youkai que geralmente assumem a forma de crianças jovens vestidas como monges ou samurais, e assombram os quartos de uma residência fazendo pequenas travessuras, sendo a principal mudar o travesseiro de lugar, mas há casos em que eles também podem tornar-se hostis.



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