A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 31
30: O preço pela… amizade.


Notas iniciais do capítulo

Olá.. eu tive particularmente um porquinho de dificuldades para conseguir corrigir esse capítulo.
Então entre uma procrastinação e outra, pode ser que eu tenha deixado alguns errinhos passarem, me avisem se encontrarem algum. XD

GLOSSÁRIO:

Furin: Sino dos ventos.

Jubokku: Literalmente “árvore criança”.

Kudagutsune: “raposa tubo” ou “raposa cachimbo”.

Tessen: leque de aço.



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Quando bebê, Akira fora uma criança irritadiça e agitada, daquelas que mal se podia desviar os olhos por mais de meio segundo sem que ele tivesse incendiado, quebrado ou rasgado alguma coisa, Gintsune costumava rir das incontáveis vezes em que Mayu e Satoshi precisavam persegui-lo e dizer que cada um deles precisava estar em três lugares diferente só para conseguir vigiar o menino, isso sem falar de todos os golpes, mordidas, gritos e arranhões, já Akihiko havia sido bastante tímido e chorão, muito agarrado à mãe, ele chorava até mesmo quando Satoshi tentava pegá-lo no colo — embora parecesse bastante calmo quando Gintsune o carregava, o que levava Satoshi a se irritar e acusar a raposa de ter “enfeitiçado seu filho”.

Portanto Akio vinha sendo até então o filho mais tranqüilo que Mayu já tivera, sempre calmo e quieto, ele nunca estranhava fosse quem fosse que o pegasse no colo, não chorava ou gritava, não acordava durante a noite, nunca havia puxado o cabelo de ninguém e mesmo quando tinha fome ou precisava ser trocado, suas reclamações se restringiam a um choro baixinho e alguns soluços… mas era compreensível que mesmo ele tivesse alguns dias ruins — embora mesmo em tais momentos os seus choramingos e reclamações ainda não pudessem ser comparados aos berros dos irmãos mais velhos naquela mesma idade.

—Talvez ele esteja com fome. — Botan sugeriu acompanhando Mayu enquanto ela caminhava pelos jardins embalando o filho.

—Não, acabei de amamentá-lo. — Mayu suspirou — E não está sujo, também não é sono, ele só acordou há umas duas horas, e também nunca chorou para dormir antes…

Haru aproximou-se se inclinando preocupada sobre o bebê enquanto apertava as mãos junto à barriga.

—E cólica? — Botan tentou novamente. — Poderíamos lhe dar um pouco de chá de…

—Talvez eu possa ajudar. — Ryosuke-sama sugeriu se aproximando.

—Mestre, boa tarde! — Botan exclamou curvando-se junto com Haru.

Mayu não fazia a mínima ideia do que passara a Ryosuke-sama dessa vez, mas ele estava encharcado e havia fumaça se desprendendo de suas roupas e cabelos.

—Boa tarde, Ryosuke-Sama. — cumprimentou-o com um inclinar de cabeça.

—Olá. — sorriu-lhe estendendo as mãos — Posso?

Mayu anuiu suspirando e entregou-lhe o filho, já não sabia mais o que fazer.

—Oi bebezinho vamos lá, sorria um pouco, a Haru gosta de rostinhos sorridentes, sabia? — Ryosuke-sama começou a falar afavelmente com Akio, erguendo-o acima da cabeça — Eu sei que você consegue fazer melhor do que isso.

Os dedos de Ryosuke-sama começaram a se abrir lentamente, e os olhos de Mayu arregalaram-se quando ela deu-se conta do que ele estava fazendo.

—Ryosuke-sama…! — arfou dando um passo à frente.

Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Ryosuke-Sama abriu as mãos e largou seu filho… que saiu flutuando no ar.

Mayu parou pasma vendo seu bebê subir cada vez mais alto no ar, e seu choro cessar lentamente enquanto ele olhava ao redor, confuso e curioso, até que parasse a uns bons três metros do chão e começasse a rir.

—Pronto, está vendo só? — disse Ryosuke-sama mexendo os dedos com as mãos erguidas, como se manuseasse um boneco de títere — Ele tem parte tengu, por isso supus que fosse gostar de voar um pouco.

De ponta cabeça, Akio viu o rosto pálido da mãe e pareceu achar aquilo muitíssimo engraçado.

—Hã… Ryosuke-sama. — Mayu tocou-lhe hesitante no antebraço — Isso parece perigoso, será que pode descê-lo agora?

—Oh não, não é nenhum pouco perigoso, eu sei o que estou fazendo. — Ryosuke-sama garantiu.

—Hã… tenho certeza que sim. — concordou engolindo em seco — Mas agora não acha que seria melhor… ah!

Exclamou surpresa quando seus próprios pés deixaram o chão, e de repente Mayu viu-se completamente sem peso, com suas roupas e cabelos flutuando ao seu redor e, constrangida, apertou os joelhos e segurou as saias no lugar o melhor que pôde quando percebeu que elas começavam a se abrir.

—Viu só? É completamente seguro. — Ryosuke-sama reafirmou agora a olhando de baixo.

—Sim Ryosuke-Sama, fantástico, agora será que pode descer-nos logo, por favor? — perguntou apressadamente.

—Tem certeza? Akio está se divertindo. — comentou sorrindo calmamente.

Mas ainda assim fez um gesto de puxar com a mão direita que a atraiu lentamente em sua direção, e estendeu a mão para ampará-la e Mayu já estendia as mãos para tocá-lo — ansiosa em ancorar-se a qualquer ponto de terra firme que pudesse encontrar… quando de repente foi arrebatada do ar.

A princípio ela não conseguiu compreender o que havia acontecido, em um momento estava flutuando, descendo muito lentamente em direção aos braços de Ryosuke-sama e de repente foi atingida e arrancada com brusquidão do ar.

E agora se encontrava envolvida por um aroma tão agradável quanto familiar, algo que cheirava a mais verde que as próprias florestas, sentia o tecido pinicando seu rosto e braços firmes, porém gentis, a abraçando, passando ao redor de suas costas e por debaixo de seus joelhos, mantendo-a junto de um calor reconfortante enquanto uma batida incessante e acelerada ressoava contra sua bochecha, espalmou uma mão naquele peitoral enquanto a outra subiu procurando por um ombro ao qual se apoiar, afastando ligeiramente o rosto para só então erguer os olhos e vislumbrar o rosto do marido.

—Você chegou cedo hoje.

—Honorável esposo, nós não o esperávamos tão cedo! — Botan o cumprimentou acenando alegremente.

—De fato eu nem mesmo senti a sua aproximação, então essa é a lendária agilidade dos tengus? — Ryosuke-sama comentou admirado.

—Sim eu percebi que não estavam esperando me ver.

Satoshi resmungou mal humorado, voltando-se para eles ainda com Mayu nos braços.

—Satoshi, está tudo bem com você? — ela perguntou-lhe estranhando aquele comportamento — Aconteceu alguma coisa?

E arregalou os olhos surpreendendo-se quando o marido simplesmente inclinou a cabeça em sua direção e cobriu-lhe a boca com a sua, beijando-a tão intensamente que ela agradeceu mentalmente por ele estar carregando-a, do contrário teria caído ali mesmo.

Sob todos os aspectos, os youkais eram considerados criaturas selvagens e bestiais para os humanos, mas um dos critérios que serviam como parâmetro para essa ótica era justamente aquilo que Mayu mais amava naquele mundo: a liberdade e a transparência com a qual sentiam e agiam.

Suspirou entrelaçando os dedos por trás de seu pescoço.

—Nossa, o honorável esposo está mesmo carinhoso hoje!

Botan comentou entre risadinhas, relembrando a Mayu de que eles não estavam sozinhos ali e fazendo seu rosto tornar-se tão vermelho quanto uma cereja e empurrar os ombros de Satoshi para que ele parasse com aquilo, mas foi só quando o marido ergueu a cabeça e fixou um olhar penetrante no mestre do castelo que ela deu-se conta do que se passava ali.

Satoshi ainda achava que Ryosuke-sama estava cortejando-a de alguma forma?! A conclusão deixou-a tão irritada que Mayu acertou-o no ombro direito com o punho e começou a sacudir as pernas, lutando para ser posta de volta no chão.

—Você está bem animado hoje, meu amigo. — disse Ryosuke-sama propositalmente ignorando as querelas do casal enquanto movia distraidamente próximo ao rosto os dedos da mão direita, fazendo Akio pairar entre risadas em volta de sua cabeça. — Aconteceu algo bom na floresta hoje?

—Francamente! — Mayu bufou ajeitando suas roupas ao ser posta no chão.

E sem querer ouvir mais uma palavra do que o marido tinha a dizer, afastou-se praticamente marchando, indo em direção a Ryosuke-sama e resgatando seu filho do ar com um pequeno — e quase cômico — saltinho.

—Muito obrigada por tudo, Ryosuke-sama! — agradeceu de tal forma que parecia que poderia passar por cima de qualquer um a cruzar seu caminho naquele momento.

—Senhora espere, por favor! — Botan chamou-a agarrando o braço de Haru e já se virando para segui-la.

—Eu encontrei Gintsune na floresta hoje! — Satoshi revelou de repente.

Mayu parou incrédula e, já esquecida da irritação, olhou-o por cima do ombro.

—O que foi que disse? — perguntou lentamente.

—Gintsune estava na floresta hoje, eu o encontrei. — repetiu convicto.

—“Gintsune”? — Ryosuke-sama repetiu ocultando as mãos em suas mangas — Então realmente o encontrou? Saber disso deixa-me feliz por você. — apertou os lábios pensativamente — Ele é realmente um tipo bem problemático, não é? Por que causar tantos transtornos?

Satoshi cruzou os braços.

—Porque mesmo sendo meu amigo inestimável, não posso negar que ele é uma completa praga quando quer… e principalmente andava muito entediado também.

—Mas… mas era realmente ele? — Mayu perguntou retornando.

—Sim era. — Satoshi coçou a cabeça — Estava sentado em uma árvore rindo de mim, o cretino, usava a mesma forma de criança que sempre usa quando está aprontando, mas acha que pode evitar levar bronca, os cabelos estavam escuros, mas estava usando o meu chapéu, aquele marau.

—E então? — parou ansiosa diante do marido.

Inconformado, Satoshi fez uma careta e virou a cara.

—Eu o chamei, então ele riu da minha cara, saltou da árvore e fugiu, acabei perdendo-o.

—Fugiu? — surpreendeu-se arqueando as sobrancelhas — Mas se era realmente Gintsune, por que ele fugiria?

—Para atormentar-me, porque é assim que aquele patife é. — respondeu convicto — Ele fazia isso o tempo todo na Vila Tengu também, sabe que teve uma vez em que ele deixou-nos praticamente uma volta inteira da lua sem nos deixar dormir? Sim, ele vinha quase todas as noites e acordava os mais velhos puxando suas penas, causava o maior escarcéu fazendo todo mundo o perseguir e aí desaparecia!

—Tem certeza que era ele? — Ryosuke-sama questionou. — Raposas são mestras da ilusão… especialmente quando você quer muito ver algo.

—Não era uma raposa qualquer! — Satoshi insistiu batendo o pé — Ele é meu irmão raposa, tenho que aguentá-lo desde filhote então acho que sei perfeitamente reconhecer sua assinatura energética quanto a sinto e aquele era ele!

—Bem, então… — Mayu umedeceu os lábios e, finalmente, se permitiu sorrir animada — Então ele realmente conseguiu voltar do mundo humano, isso é maravilhoso! O que fazemos agora?

—Foi justamente por isso que retornei. — ele pegou a mão da esposa — Eu vim buscar você e os garotos para irmos procurá-lo.

—Vai começar a escurecer em menos de três horas, então eu preferia que vocês fossem apenas amanhã. — Ryosuke-sama confessou já se afastando — Mas como não posso impedi-los, desejo-lhes apenas boa sorte. Botan, Haru, vamos.

Quando ouviram as boas novas, Akira e Akihiko teriam disparado voando como flechas na frente se não fosse pelo pai impedi-los, segurando ambos pelos ombros.

—Calma lá, nós vamos todos juntos. — determinou.

—Mas pai! — os garotos protestaram.

—Sem “mas”!

Cortou-os enquanto Mayu acabava de prender os cabelos no alto da cabeça com um par de grampos compridos e colocava a máscara nova de hannya com a qual Yuri-chan a presenteara e que ela simplesmente não tivera como recusar — agora sim tinha certeza que sua alcunha de “a furiosa esposa” se alastraria como fogo.

—O senhor não vai nos obrigar a ir andando vai? — Akira reclamou.

—Vocês têm pernas, exercitem-nas um pouco antes que acabem iguais a um par de tenagas.

Declarou girando os olhos e empurrando-os de leve para que começassem a andar de uma vez, antes de oferecer o braço à esposa.

Izumi não estava em seu posto dessa vez, mas o homem de fumaça silvou ao vê-los se aproximar.

—Outra vez? E dessa vez trouxe a família toda, vão a um passeio tranquilo? — caçoou — Ou quem sabe já estejam de partida? Vai escurecer em breve, querem uma escolta?

E apontou um rapaz de aspecto selvagem vestido em peles sentado ali perto enquanto roía um grande osso — o okuri-okami em sua forma humana — uma floresta enfeitiçada não era um dos ambientes mais confiáveis pelos quais se perambular, especialmente quando a escuridão já estava prestes a cair sobre eles, o que era uma ótima razão para aceitarem serem escoltados pelo lobo youkai… e uma maior ainda para recusarem-na imediatamente.

—Ficaremos bem. — Satoshi garantiu.

O enenra não discutiu.

—Façam como quiserem. — replicou esvaindo-se em fumaça e deixando a passagem livre para eles.

Entre as árvores era como se a noite já houvesse chegado, Mayu quase havia se esquecido de como as florestas poderiam ser escuras, ela segurou-se mais firmemente ao braço do marido.

—Apenas por curiosidade, mas o quão boa exatamente é a visão noturna de vocês?

—Não se preocupe, eu não vou deixar que nada te aconteça.  — Satoshi garantiu tocando-lhe o rosto com as costas das mãos — O que me lembra… garotos! Há uma jubokku nas proximidades, então tenham cuidado!

—Pode deixar pai! — ambos gritaram de algum lugar.

Mayu piscou olhando para as sombras e formas obscuras da floresta ao seu redor.

—Você está conseguindo vê-los? — perguntou preocupada, soltando o braço de Satoshi.

—Não. — ele olhou lentamente ao redor — Como é que foram sumir assim tão rápido?

—Ah céus! Aposto que seria mais fácil se eu os amarrasse às minhas costas como faço com o irmão deles! — Mayu reclamou pondo as mãos em volta da boca para gritar: — Meninos! Onde vocês estão? Podem nos ouvir?

As vozes dos filhos responderam de uma dúzia de direções diferentes:

—Estamos aqui!

—Mamãe, cadê você?!

—Meninos! —Mayu olhou de um lado para o outro os procurando — Satoshi, eu não consigo encontrá-los!

Mas quando o sol se pôs e os últimos resquícios de luz se despediram naquele dia… ela estava sozinha, somente com o calor emanando do bebezinho amarrado ás suas costas restava para confortá-la.

Um rosnado profundo ecoou por entre as sombras.

—Ah… que ótimo. — murmurou enfiando cuidadosamente a mão dentro do kosode e puxando seu tessen dali.

Um par de ferozes olhos prateados estreitou-se a espiando da escuridão com desconfiança.

Não era possível, de jeito nenhum, era tênue, mas… seus sentidos só poderiam estar enganando-o. Sim, ele estava começando a ficar velho. Só podia ser isso… mas e se não fosse?

A criança já conseguia sentir que algo estava errado, pois começou a chorar baixinho enquanto a mãe pisava cautelosamente por aquele terreno desconhecido, ao contrário do filho do meio que, não muito longe dali, precisou ser puxado para trás quando ele quase caiu dentro d’água.

—Olhe por onde anda! — ralhou o mais velho. — Papai não acabou de dizer-nos para termos cuidado?!

—Sim, mas com uma jubokku que há aqui nas proximidades e não… onde estão papai e mamãe?

A trilha pela qual tinham vindo e os sons da cidade haviam sumido por completo, mesmo que eles mal houvessem dado vinte passos floresta adentro.

—Mas o que está acontecendo aqui? — Akira perguntou desconfiado, levando a mão ao cabo da espada.

—Eu não sei… — Akihiko respondeu também levando a mão ao cabo da espada e se afastando cautelosamente sem desviar os olhos da água, foi quando viu uma silhueta nadando sob a superfície, grande demais para ser um mero peixe, mas não o bastante para ser um kappa, por exemplo — Ei, o que é a…?

—Tem um chapéu ali!

Ouviu o irmão mais velho exclamar de repente, fazendo-o erguer a cabeça.

—Onde?

—Ali, na outra margem! — aproximou-se apontando — Se parece com o chapéu do papai, não é? Talvez Gintsune-Sama esteja por aqui.

—Então vamos lá dá uma olhada!

Akihiko chamou-o animando-se.

Mas os dois garotos mal haviam voado metade da distância quando algo saltou da água agarrou as pernas de Akira e, em menos de um segundo, o puxou de volta para baixo quase sem fazer som algum.

—Akira! — Akihiko gritou assustado, pairando acima da água — Akira cadê você?!

Ele voou em círculos sobre a água, mas não conseguiu ver nada ali, pois sua superfície continuava tão calma e parada como se nada houvesse acontecido.

E então as bolhas começaram a subir.

Debaixo d’água, Akira lutava às cegas contra seja lá quem ou o que fosse que o havia atacado, enquanto bolhas escapavam por detrás de sua máscara com formato de bico de pássaro, mas seu captor tinha as pernas bem presas em volta de seu corpo, com os tornozelos cruzados sobre sua barriga, prendendo firmemente seu braço direito e suas asas junto ao corpo, enquanto um braço pressionava sua traqueia.

Debatendo-se, o garoto tengu atacou violentamente com as garras por sobre o ombro, surpreendendo a criatura desconhecida que involuntariamente afrouxou o aperto, dando a Akira a chance para libertar o braço e acerta-lhe com o cotovelo e então chutá-lo para longe.

Finalmente livre Akira tomou impulso e nadou para longe sentindo o coração martelando em seus ouvidos, só parando mais de um metro depois e virou-se olhando a volta a procura de seu agressor e ao mesmo tempo, instintivamente, levando a mão ao cabo da espada… apenas para arregalar os olhos ao descobrir que ela não estava ali.

—… ra…! …de você?! — ouviu a voz do irmão chamando-o a distância.

E então nadou naquela direção.

—Aqui! — ofegou estendendo a mão para o ar.

Imediatamente Akihiko agarrou seu pulso com ambas as mãos e o içou de volta para a margem.

—O que foi que aconteceu lá? — perguntou deixando o irmão cair sentado na terra.

—Alguma coisa… roubou… minha espada. — Akira respondeu enquanto tossia.

—Como é?! — Akihiko pousou a sua frente — Mas foi o papai quem te deu aquela espada!

—E você acha que eu não sei?! — limpou a boca com as costas da mão — Por que não mergulhou para me ajudar?

—Eu não tive tempo. — respondeu surpreso.

—Como não? Eu devo ter passado mais de quinze minutos debaixo da água! — reclamou apoiando os antebraços nos joelhos dobrados.

—Não foram nem dez segundos! — o mais novo protestou.

Calaram-se quando escutaram o som de água e ao olharem viram um pequeno filhote de raposa com pelos negros saindo de dentro do lago arrastando na boca a espada de Akira.

—Isso é meu! — o garoto protestou colocando-se de pé com um salto.

O filhote olhou-os e, por um momento, os últimos raios de luz do sol daquele dia pareceram se refletirem em olhos dourados, mas antes que eles tivessem certeza, a raposinha virou-se se tornando numa criança nua com uma longa trança negra e fugiu levando consigo a espada de Akira e o chapéu de palha.

—Ei! — os garotos o chamaram.

E impetuosamente dispararam voando atrás da criança, desaparecendo por entre as árvores sem nem se darem conta de que justamente ali poderia estar se ocultando o maior dos perigos.

—Vai ficar tudo bem, meu amor, vai ficar tudo bem. — Mayu sussurrou para o filho segurando defensivamente o leque a altura do peito — Tenho certeza que seu pai e seus irmãos virão logo…

—Mãe!

—Mamãe!

Os garotos surgiram voando por entre as copas das árvores.

—Meninos! — Mayu chamou-os aliviada — Onde vocês estavam?!

—Nós? — Akira repetiu pairando no ar junto ao irmão — A senhora que sumiu!

—Não, eu…

—Onde está o papai? — Akihiko olhou agitadamente ao redor.

—Também o perdi quando…

Sua voz foi abafada por um grito que ecoou pelas árvores e fez seu coração saltar até a garganta.

—É o papai! — Akihiko exclamou sumindo por entre as árvores.

—Vamos mãe, papai está com problemas! — Akira a chamou seguindo ao irmão — Venha conosco!

—Garotos voltem! — na pressa de segui-los, Mayu deixou seu leque cair no chão — Não vão por aí, podem se perder de no…!

Atado às suas costas, Akio começou a chorar, agarrando e puxando as roupas da mãe.

—Pare, é uma armadilha! — Satoshi deteve-a agarrando seu pulso e puxando-a de volta.

Ele precisou segurá-la firmemente pelos braços quando Mayu começou a debater-se, lutando e gritando para que ele a soltasse.

—Solte-me, solte-me! Meus filhos! — Mayu gritava tentando golpeá-lo no peito, ombros e rosto — Meus filhos! Meu marido!

—Mayu! — Satoshi a puxou contra si, abraçando-a protetoramente, e só então ela começou a se acalmar — Sh, eu estou aqui.

Passou a mão carinhosamente por seus cabelos e sentiu quando as mãos dela fecharam-se agarrando o tecido de suas roupas.

—Satoshi? — sussurrou tremula — O que aconteceu?

—Fomos pegos em uma armadilha de raposa. — respondeu taciturno.

—O que? Mas eu o ouvi gritar e então os meninos foram atrás de você… oh não os meninos! — agitou-se novamente. — Temos que ir atrás deles, precisamos encontrá-los, eles foram atrás de você e…!

—Mayu! Mayu! — Satoshi pegou-lhe o rosto com ambas as mãos e obrigou-a a focar-se nele. — Não era real, foi uma ilusão, fomos presos numa armadilha de raposa, eles a usaram para nos separar.

—Oh… — Mayu piscou, e seus olhos recuperaram lentamente o foco novamente. — Mas então como você pode estar aqui? Como escapou?

Satoshi soltou-a estalando a língua.

—Eu não convivi todos esses anos da minha vida ao lado daquele patife para no final das contas não aprender absolutamente nada. — declarou, erguendo o braço e rasgando com os dentes um pedaço de sua manga — Ainda precisamos procurar os meninos, mas não podemos mais nos separar um do outro, entendeu?

 

 

Instruiu enquanto usava uma ponta da faixa de tecido para amarrar o pulso da esposa e indicava-lhe que ela fizesse o mesmo com o seu usando a outra ponta.

—Sim, tudo bem.

Ela concordou engolindo em seco e entrelaçando seus dedos ao do marido antes de adentrarem a florestas juntos, sem se darem conta de que haviam deixado o leque de aço de Mayu para trás.

Aquele tengu entendia sobre raposas… mas não o suficiente.

Sorrindo astutamente, ele afastou os galhos de lado e revelou-se por entre as sombras, uma figura alta e esbelta vestida um quimono preto e uma longa capa com capuz que praticamente misturava-se com noite, mas quando se abaixou para pegar o leque abandonado no chão o capuz acabou escorregando de sua cabeça relevando cabelos prateados que cintilavam contra a escuridão.

Ele precisava certificar-se antes, pois não poderia de forma alguma iludi-la com esperanças vãs, mas se fosse verdade aquilo a deixaria exultante, sorriu consigo mesmo girando o leque entre os dedos antes de sustentá-lo contra a palma da mão, experimentando seu peso.

Seria realmente autêntica?

Fechou a mão firmemente e trouxe o objeto para junto do rosto, fechando os olhos enquanto aspirava à fragrância ali deixada, e de repente todo o seu corpo retesou-se e sua cabeça jogou-se para trás, como se houvesse sido eletrizado diretamente na espinha.

Era autêntica. Sorriu bestialmente apertando o leque na mão e então desapareceu agilmente com um único movimento por entre as árvores e as sombras novamente.

Era uma pena para o pequeno filhote negro não conseguir ser assim tão ágil também, pois por mais que ele se esquivasse, corresse, e saltasse, não conseguia de forma alguma tirar aqueles dois pirralhos do seu encalço! Por que eles conseguiam se mover ali dentro…?!

—Pare aí seu bandido! — Akira gritou — Essa espada é minha!

Durante a sua fuga o filhote havia recuperado outras coisas que pareciam ter sido deixadas ao acaso pela floresta: um quimono verde oliva e um obi, aos quais ele vestiu e amarrou as pressas de qualquer forma durante a perseguição, um tubo de bambu preso a um pedaço de barbante, que ele amarrou em volta dos quadris, e um par de sandálias de palha, embora não tenha tido tempo de calçá-las.

—Quando eu conseguir te pegar eu vou puxar essa sua cauda fedorenta e então usá-la para te amarrar numa árvore da beira de um precipício bem alto seu pilantrinha! — Akira ameaçou irado.

Mas suas palavras acabaram surtindo um efeito totalmente inesperado no filho negro que se deteve repentinamente, levantando uma espessa cortina de poeira com seu movimento brusco.

 —Quem disse que a minha cauda fede?! — reclamou ofendido.

—Agora eu te peguei! — Akira gritou vitorioso mergulhando com os braços estendidos, pronto para capturar o ladrão.

Mas infelizmente para o seu azar, o pequeno meliante demonstrou-se ágil demais e conseguiu, mais uma vez, esquivar-se, usando sua cabeça como ponto de apoio ao saltar.

—Parece que ainda não foi dessa vez otário! — o filhote comemorou…

…Mas esqueceu-se do segundo irmão.

Akihiko caiu sobre ele, e os dois acabaram indo ao chão, lutando ente socos, chutes, puxões e arranhões.

—Me solte seu fedelho! — reclamou enfiando um pé na cara do filhote de tengu.

—Só quando você devolver a espada do meu irmão!

Akihiko reclamou de volta, enrolando a grossa trança negra do garoto em volta do pulso e a puxando com toda força enquanto a outra mão tentava alcançar desesperadamente a espada do irmão mais velho, que a pequena raposa negra mantinha o mais longe possível dele.

Foi quando aconteceu: sem que Akihiko percebesse, o filhote negro desceu sua mão até o tubo de bambu pendurado ao quadril e abriu-o usando o polegar, fazendo a tampa saltar e repentinamente uma dúzia de serpentes brancas fantasmagóricas saltarem dali e enroscarem-se ao peito, braços, pernas e asas do menino tengu, arrancando-o velozmente de cima do filhote de raposa e desaparecendo com ele nas alturas, gritando surpreso, dando a oportunidade ao filhote para se recuperar e fugir dali.

—Espere seu ladrão! — Akira gritou colérico pronto para voar ao seu encalço novamente.

—Socorro! — Akihiko gritou com a voz sumindo a distancia.

O meio tengu parou hesitante por um instante, olhou para as copas das árvores acima de sua cabeça por entre as quais o irmão mais novo havia desaparecido e novamente para a direção pela qual o larápio fugira, antes de grunhir com frustração e disparar como uma flecha diretamente para cima.

Akihiko havia sido levado pelas serpentes em uma velocidade surpreendente cada vez mais para o alto, sendo arranhado e tendo as roupas rasgadas, e até espantando vários pássaros ao passar pelas copas das árvores, enquanto lutava e gritava, mas o irmão só foi consegui-lo encontrá-lo quando já estava vários metros acima da floresta.

—Argh! Mas o que são essas coisas?!

Akira reclamou ao agarrar uma das serpentes brancas pelo pescoço para puxá-la para longe do irmão, pois as “serpentes” apesar de seus corpos longos e flexíveis, na verdade tinha rostos de raposas e possuíam dois pequenos pares de pernas, tão minúsculos que ele nem sequer as teria notado se elas não tivessem começado a usá-las para arranhá-lo.

E quanto mais eles lutavam, mais enroscados os dois irmãos acabavam, e suas vozes gritando revolta e indignações atravessaram inclusive a densa vegetação que se estendia abaixo.

—Espere. — Satoshi deteve a esposa — Está ouvindo?

Mayu concentrou-se tanto quanto pôde, apurando ao máximo os ouvidos.

—São os garotos?! — assustou-se. — É outra ilusão?

—Não, são eles mesmos. — ele afirmou, olhando a volta, procurando pela origem dos gritos.

—Mas de onde…!

Gritou surpresa quando, sem nenhum aviso prévio, o marido a enlaçou pela cintura e a arrancou do chão, atravessando as copas das árvores e cruzando o ar em uma linha reta para o alto em direção aos filhos que lutavam no alto, enroscando-se com um grupo de criaturas que Mayu nunca vira na vida.

—O que são aquilo?

—Kudagitsunes! — Satoshi respondeu levando a mão livre ao cabo da espada.

Mas assim que se aproximaram as estranhas raposinhas imediatamente largaram os garotos e se dispersaram rapidamente em incontáveis direções diferentes, de forma que seria impossível tentar segui-las.

—Meus filhos!

Mayu gritou quando seus filhos, repentinamente libertos, passaram por eles em alta velocidade, despencando do céu, os garotos tentaram abrir as asas para recuperar o vôo, mas estavam próximos demais, chocando-se e atrapalhando-se um com o outro durante a queda.

—Acho que você quebrou minha clavícula. — Akihiko gemeu estatelado no chão.

—Quebrei nada. — Akira gemeu sentando-se com uma mão sobre o olho direito — Você acertou meu olho com seu cotovelo!

Akihiko estava se sentando também, quando foi jogado novamente no chão pela rajada de vento causada pelo pai quando pousou junto com a mãe de ambos ali.

—Ah, meus meninos, vocês estão bem?!

Mayu perguntou agitada puxando-os para si e abraçando-os o melhor que podia com um braço só, já que o outro pulso continuava amarrado ao do marido.

—Ah, mãe, corta essa. — Akira reclamou envergonhado quando a mãe começou a distribuir beijos por seus rostos — Nós estamos bem.

Satoshi recolheu as asas e bagunçou os cabelos do filho do meio.

—E quanto ao relatório de danos? — questionou sorrindo.

—Akira quebrou minha clavícula. — Akihiko reclamou.

—Quebrei nada! — Akira defendeu-se.

—Você não quebrou nenhuma clavícula. — Satoshi constatou quando se abaixou para examinar o filho — Mas seu ombro esquerdo saiu do lugar.

—O meu o…? AI! — gritou ao ter o ombro puxado de volta ao lugar sem nenhum tipo de aviso prévio — Isso doeu!

Satoshi passou a mão pelo queixo e estudou os filhos cautelosamente antes de concluir que estavam bem e levantar-se, esfregando a nuca com um olhar severo ao interrogá-los:

—Agora podem dizer o que aconteceu aqui? Como foi que se meteram numa confusão daquelas com aquele grupo de kudagintsunes?!

—Então era assim que aquelas coisas se chamavam? — Akira quis certificar-se.

—Sim, era. — confirmou. — E o que vocês aprontaram para serem atacados daquela forma? Esse tipo de youkai costuma ser muito tímidos e pacíficos e não tacam a menos que seriamente provocados ou, sob as ordens de um mestre…

Foi parando de falar lentamente, conforme a compreensão tomava conta de seu pensamento.

—Foi aquele moleque ladrão, ele as jogou sobre nós! — Akira acusou irritadamente, confirmando os pensamentos do pai.

—Um moleque ladrão? — Mayu repetiu surpresa.

—Um filhote de raposa preto! — confirmou Akihiko — Ele roubou a espada do meu irmão e fugiu, mas quando estávamos prestes a capturá-lo, ele jogou aquelas coisas em nós!

—A sua espada?

Mayu virou-se para o filho mais velho que corou e chutou o irmão por ter uma boca tão grande.

—Mas isso não faz sentido algum. — refletiu Satoshi — Um mero filhote não seria capaz de comandar tantos shikigamis, a menos que…

Sua voz foi abafada quando os cinco foram repentinamente envolvidos por um tornado.

As kudagitsunes estavam de volta, cercando-os entre risadas e sibilos enquanto os arranhavam e puxavam seus cabelos e roupas.

—Mas o que é isso?! — Satoshi reclamou sacudindo o braço livre na tentativa de livrar-se deles, incapaz de sacar a espada sem correr o risco de atingir seus filhos ou sua esposa. — Saiam! Deixem-nos em paz!

E tão rápidos quanto haviam reaparecido, as pequenas raposas voltaram a se dispersar.

Mas agora só restavam três deles, pois a faixa de tecido amarrada ao pulso de Satoshi jazia esfarrapada e mastigada, e Mayu e Akio haviam desaparecido.

—Mayu! — chamou-a em pânico.

—Mamãe! — gritaram os meninos.

A resposta foi um eco distante trazido pelo vento:

—Me ajud…!

Diferente do filho, Mayu não foi erguida acima das árvores, mas ao invés disso foi levada por entre elas, sendo puxada, carregada e jogada de um lado para o outro não conseguia ver nada além dos borrões turvos e indistintos da mata fechada passando velozmente por seu campo de visão e nem de ouvir algo que não fosse o som do vento rugindo em seus ouvidos, de seus próprios gritos e das risadas extasiadas de Akio.

Ao menos alguém ali estava se divertindo!

A parda foi tão repentina que a cabeça de Mayu chicoteou para frente e todo o ar fugiu de seus pulmões.

—Ah, aqui está ela! — comemorou uma voz melodiosa. — Essa é ela, não é meu amor?

—É ela. — confirmou uma segunda voz, bem mais áspera que a primeira, quase um rosnado.

Ainda recuperando-se, Mayu foi deixada gentilmente no chão pelas pequenas raposas, mas suas pernas não conseguiram sustentar o peso de seu corpo e ela caiu sentada no chão, sua máscara de hannya havia se perdido em algum lugar da floresta, as roupas estavam descompostas e chumaços de seu cabelo escorregavam e desprendiam-se de seu penteado, as raposas tubos ainda voaram a sua volta por alguns segundos, antes de se afastarem e voarem todas na direção da dona daquela voz melodiosa.

Uma linda mulher com cabelos negros e olhos dourados estava sentada entre as raízes de uma árvore, seu quimono era imaculadamente branco, mas um uchikake negro com detalhes dourados estava amontoado em volta de seus quadris, e os lábios estavam pintados de verde e a maquiagem em torno de seus olhos era vermelha e marcante, havia um par de orelhas negras de raposa sobressaindo-se no alto de sua cabeça, com um kanzashi de flores rosadas e fitas vermelhas preso logo abaixo da orelha direita e, preso do lado esquerdo de sua cabeça, estava uma máscara de raposa branca.

Toda a clareira parecia estranhamente iluminada, até Mayu se dar conta das esferas de fogo azul flutuando ao redor do perímetro.

A dama sorriu e ergueu uma das mãos para acariciar as kudagintsune que se avultavam ao seu redor, lambendo as pontas de seus dedos e tocando suas bochechas com os focinhos molhados entre risadinhas antes de voarem todas de uma vez de volta para dentro do tubo de bambu que ela segurava na outra mão, o qual ela tampou e guardou dentro de sua manga.

—Quando ouvi sobre você eu quase não pude acreditar, tinha que conhecê-la. — a mulher raposa afirmou levantando-se e deixando seu uchikake negro para trás ao aproximar-se sorrindo enquanto folhas secas estalavam sob seus pés.

—A-a mim? — Mayu gaguejou.

—Sim. — a raposa inclinou-se sobre ela, acariciando sua bochecha com as costas da mão antes de ergue-lhe o queixo com a ponta dos dedos, ficando com o rosto a centímetros do seu — Você é humana, não é?

E foi então que, com crescente horror, Mayu percebeu que aquilo que estalava sob os pés da mulher raposa não eram folhas secas.

Eram ossos.

Assustada, Mayu arregalou os olhos e afastou-se se arrastando sobre os pés e as mãos.

—O que quer de mim?!

—Como assim “o que”? Você é humana! — a mulher raposa repetiu tirando os pés do chão e unindo as mãos ao lado do rosto, em um gesto maravilhado — Isso é inacreditável! De onde foi que veio? Como chegou até aqui?

Mayu virou-se e levantou-se para tentar fugir correndo dali, mas antes que pudesse ultrapassar as bolas de fogo azul e alcançar as árvores, a mulher raposa surgiu a sua frente com os braços entendidos, como se fosse abraçá-la.

—Nós deveríamos ser amigas!

Mayu continuou a fugir e esquivar-se, ouvindo ossos quebrarem e estalarem sob seus pés, mas para onde quer que corresse ou se virasse, ali estava a raposa, flutuando bem diante de seus olhos.

E de repente teve ambas as suas mãos capturadas.

—E podemos tomar banho juntas!

—Banho? — repetiu atordoada.

—Sim, nós e seu lindo bebê também, claro.

A resposta veio por detrás dela, embora a raposa ainda estivesse bem ali a sua frente segurando suas mãos, e antes que Mayu pudesse entender o que estava acontecendo, as amarras em suas costas afrouxaram-se e o peso de Akio desapareceu, bem como a imagem da mulher de olhos dourados que segurava suas mãos.

—Ele é seu filho, não é?

A raposa perguntou flutuando de um lado para o outro, meio sentada meio deitada no ar enquanto balançava Akio nos braços quando Mayu se virou.

—Devolva meu bebê! — exigiu com os braços estendidos tentando alcançá-los, mas foi completamente ignorada.

—Ele também é humano?

Dessa vez a pergunta foi dirigida à árvore no centro da clareira e, por um instante, Mayu achou ter visto algo se movimentar entre os galhos.

—Eu não pude conferir. — respondeu a mesma voz áspera de antes.

—Ah, mas ele é tão bonitinho! — a mulher comentou alegremente enquanto tirava e livrava-se despreocupadamente dos panos de Akio — Ei, mas ele não é humano! — ela reclamou agarrando o bebê pelo tornozelo e erguendo-o, despertando um grito de diversão no garotinho e um de puro horror em sua mãe — E o que é isso nas costas dele? São asas?

As penas de Akio apenas haviam começado a nascer.

—Não o segure dessa forma! — Mayu gritou em pânico.

Algo dentro do quimono da mulher se mexeu e de repente a cabeça negra de um minúsculo filhote, do tamanho de um esquilo, emergiu de seu decote, de olhos fechados o filhote farejou o ar até encostar seu focinho molhado à testa de Akio, e então se afastou abrindo os olhos e ergueu a cabeça regougando para ela, chamando-lhe a atenção.

—E onde eles estão? — perguntou surpresa ao filhote.

—Estão aqui. — respondeu a voz áspera que se ocultava por entre os galhos da árvore que ocupava o centro daquela clareira — Eles seguiram a mãe até aqui, juntamente com o pai, mas não conseguem encontrá-la… estão começando a se desesperar e achar que a jubokku a devorou.

—Mas isso é terrível! — a mulher raposa exclamou devolvendo o bebê à mãe tão distraidamente que quase o deixou cair antes de sair voando em direção à árvore — Você sabe bem o quão terrível eu acho separar uma família! Especialmente tirar os filhotinhos de uma pobre mãe! — E cruzou os braços, apertando o filhotinho em seu decote. — Ah, eu quero conhecer todos!

Ela rodopiou no ar abrindo os braços.

—Mãe!

—Esperem gar…!

Quando se virou, Mayu quase foi derrubada por ambos os filhos que se atiraram sobre ela, de braços abertos e a derrubaram sentada no chão.

—Meninos, cuidado com o irmão de vocês. — repreendeu-os sorrindo, permitindo-se sentir-se aliviada por um momento.

—Que bom que a senhora está bem. — Akihiko desabafou aliviado, escondendo o rosto em seu colo, com os braços em volta de sua cintura, sem querer soltá-la.

Akira sentou-se sobre os calcanhares.

—A senhora foi levada tão depressa…! E de repente seu rastro desapareceu também, estávamos pensando que a senhora havia sido consumida pela jubokku!

De repente as mãos de Satoshi envolveram o rosto de Mayu e o puxaram para cima, e ele passou vários segundos encarando-a diretamente no fundo de seus olhos antes de finalmente relaxar com um suspiro aliviado.

—É mesmo você, que bom. — desabafou. — Eu achei… — um osso partiu-se sob seu joelho e o deixou em estado de alerta instantaneamente de novo, ele ergueu-se a carregando nos braços: — Mas agora precisamos sair daqui! Não é seguro especialmente para você, aquela árvore é uma…!

—Mas já vão assim tão cedo? — A mulher raposa lamentou-se aparecendo repentinamente diante deles com as mãos no rosto, fazendo Satoshi dar um salto instintivo, e perigoso, para trás. — Fiquem mais um pouco, comam e bebam conosco!

Satoshi abraçou Mayu protetoramente.

—E quem é você? — perguntou desconfiado.

A mulher olhou-o desanimada.

—Ora você não sabe? Mas se nos procurou durante todo esse tempo! Nós o vimos, sabia? Tão tolinho andando em círculos por aí… — cobriu os lábios com as pontas dos dedos, dando uma risadinha.

—Uma raposa. — Satoshi ficou sem ação por um instante — Mas há um engano aqui, pois quem eu estava procurando era…

A cabeça do filhote negro reapareceu em seu decote, olhando-os com curiosidade e quando seus grandes olhos dourados encontraram os olhos de Akira e Akihiko, eles se arregalaram e ele saltou dando um mortal no ar, após o qual pousou no chão não mais como um pequeno mamífero, mas como um garoto quase da mesma idade de Akihiko de sorriso arteiro e longos cabelos negros trançados, que vestia um quimono verde oliva desgastado e tinha um chapéu triangular de palha trançada pendurado à parte de trás de seu pescoço.

—Então parece que os ajudantes não os levaram direto para a lua afinal de contas, sorte de vocês. — zombou.

—Oras seu…! — Akira trincou os dentes enquanto arregaçava as mangas e avançava, já pronto para brigar.

—Gintsune! — Satoshi exclamou colocando a esposa no chão de repente, atraindo a atenção do garotinho.

Seus filhos o olharam estranhamente.

—Ele? — Akira indagou cético e incrédulo ao mesmo tempo — Pai, o senhor está falando sério? Não tem como esse pirralho ser Gintsune-Sama!

Satoshi franziu o cenho para os filhos, achava que os havia treinado melhor para verem através dos truques daquele pilantra.

—Não estão sentindo? — instigou-os — A sua forma é diferente, mas a energia e o cheiro são o mesmo!

—Bem, eu não tive tempo de sentir muita coisa além do pé dele na minha cara. — Akihiko comentou insatisfeito esfregando a ponta do nariz com a palma da mão.

—E eu estava preocupado em não me afogar. — concordou Akira.

Mas agora que estavam prestando atenção, realmente havia qualquer coisa de muito familiar naquele moleque de sorriso atrevido, era quase como se de repente estivessem novamente frente a frente com Gintsune-Sama, mas ainda assim parecia haver algo de terrivelmente…

—Errado. — Satoshi concluiu de repente, agachando-se diante do garotinho — Isso está errado, ele não é Gintsune… mas como pode ser possível? É praticamente como se fosse ele, mas ainda assim está errado.

A decepção era nítida em seus olhos quando ergueu a mão para tocar o rosto do menino, mas ele esquivou-se dando um mortal para trás e sendo amparado pela mulher raposa, com quem compartilhava os mesmos cabelos negros e olhos dourados, novamente na forma de um pequeno filhote.

—Mas que coincidência tão inusitada. — ela comentou guardando o filhote de volta dentro do quimono e arrumando a gola — Parece que vocês conhecem meu precioso filhote.

—Seu filhote? — Mayu repetiu

—Mas a real pergunta aqui é… o que vocês querem com ele?

A pergunta dita em meio a um rosnado áspero e pouco amigável vindo de algum lugar atrás de Mayu fez os pelos de sua nuca se eriçassem completamente e instintivamente ela abraçou Akio com um pouco mais de força que também pareceu sentir o perigo no ar, pois agarrou as roupas da mãe e começou a chorar baixinho, e embora ela tenha conseguido coragem o suficiente para virar-se, logo a mulher sentiu-se congelar onde estava ao deparar-se com a imensa raposa prateada de olhos cinzentos que se aproximava dela com a cabeça baixa e os dentes ameaçadoramente a mostra.

—É um engano. — Satoshi se interpôs rapidamente entre os dois, embora tenha evitado levar as mãos ao cabo da espada, por não querer mostrar-se hostil, seus filhos também correram para o seu lado — Nós confundimos o seu filhote com um conhecido nosso, ele…

—É Gintsune, sim, nós já ouvimos!

Braços delicados, mas fortes, passaram ao redor do pescoço e ombro de Mayu, e antes que ela soubesse o que estava acontecendo, foi puxada repentinamente para trás e, mais rápido do que olhos humanos seriam capazes de acompanhar, a raposa prateada interpôs-se entre ela e sua família, impedindo-os de alcançá-la.

—Esse é o nome que o meu precioso filhote costuma usar, ele é o mais carinhoso dos meus filhotes, tão querido! Mas um desnaturado, sim, ele e a irmã, minha bela flor, são ambos os filhotes desnaturados! — a mulher fungou dramaticamente abraçando-se à Mayu e apoiando o queixo em seu ombro.

Akihiko cutucou o irmão mais velho com o cotovelo, sem acreditar no que ouvia.

—Essa é a mãe de Gintsune-Sama? — murmurou abismado.

—Acho… que estou vendo as semelhanças. — Akira piscou desconcertado.

Ambos aparentemente — e de forma inacreditável também — já haviam se esquecido da presença ameaçadora da fera que os cercava, mas aquele sorriso, a sua insistência em ignorar o espaço pessoal alheio, disfarçada de mera falta de noção, e o jeito tão leviano de agir… tudo naquela mulher gritava “Gintsune-Sama”!

E se aquela era a mãe, então o filhote irritante oculto em suas roupas, e a grande besta rodeando-lhes eram…

 —Eles nos deixaram, podem acreditar? Que filhote abandona a sua própria mãe? A minha flor é a pior! — prosseguiu a mãe de Gintsune — Uma criança tão insensível aquela menina, depois que nos deixou nunca mais procurou-nos, se a vimos por duas ou três dúzias de vezes durante todo esse tempo foi apenas mero acaso, mas ela é realmente boa em se ocultar, a melhor que já vi, e agora nós já não a vemos há cento e oitenta e oito anos, mas meu precioso filhote era mais atencioso, no inicio nunca se passava mais de meia década sem que nos víssemos por uma ou duas vezes, mas depois… a frequência foi diluindo gradativamente conforme o mundo ludibriava e roubava-me esse filhote também. — afastou-se de Mayu, e levou as mãos ao peito — E agora já fará setenta anos no próximo outono que não o vemos!  Quase pensei que fosse morrer de solidão! — levou as costas da mão à testa e “desfaleceu” no ar — Minha Flor e meu Precioso Filhote nem sequer sabem sobre seu irmãozinho, ainda. — girando no ar, ela apoiou o queixo sobre os dedos entrelaçados enquanto flutuava em volta de Mayu — Agora me diga querida, há quanto tempo vocês conhecem meu querido filhote?

—Desde que nascemos… — Akira respondeu, enquanto o irmão concordava veementemente ao seu lado.

—Desde que eu era um filhote. — respondeu Satoshi — Pode ser que tenha uns… dois séculos e meio? Ou quase isso…

—Ah… hum, uns duzentos anos? Eu acho… — Mayu hesitou.

O sorriso da mãe de Gintsune desapareceu.

—Não querida, isso não pode ser verdade.

—Não? E por que não?

A mãe de Gintsune sentou-se sobre os calcanhares no ar, apoiando os braços em suportes imaginários e erguendo o queixo com um olhar altivo e nobre antes de responder seriamente:

—Humano algum, exceto talvez Urashima Taro, vive por tanto tempo, e principalmente o meu querido filhote nunca, nunca, esconderia uma humana de mim por tanto tempo sabendo o quanto eu os amo! Talvez você tenha me entendido mal, por isso irei repetir a pergunta, então por que não pensa melhor no que vai me dizer? — ela sorriu-lhe, mas havia qualquer coisa de diferente em seu sorriso dessa vez, estava mais distante. — Muito bem… — pigarreou voltando a flutuar alegremente em volta de Mayu — Quando foi que conheceram meu querido filhote?

Juntou as mãos entrelaçando os dedos ao lado do rosto, com um sorriso que, de tão amigável, parecia até ameaçador.

—N-nós já dissemos. — Akihiko gaguejou — Conhecemos Gintsune-Sama desde… sempre.

A mãe de Gintsune-Sama voou tão rápido em sua direção que ele caiu sentado no chão com a surpresa.

—Sim, garotinho, eu já os ouvi. — respondeu-lhe fazendo beicinho enquanto voava de braços cruzados com o rosto muito próximo ao seu. — E o que eu estou dizendo, é que simplesmente não posso acreditar nisso, pois meu querido filhote nunca me esconderia uma humana tão preciosa assim, durante todo esse tempo.

—Mas é a verdade! — Satoshi insistiu, esticando um braço entre o filho e aquela mulher.

A raposa prateada rosnou.

—Você mencionou ter “convivido com um patife por muito tempo”, por acaso estava se referindo a nosso filho? — perguntou.

Então eles já estavam observando-o desde àquela hora? Claro que sim, afinal eles foram pegos em uma armadilha de raposa, com certeza fora ele quem a conjurara…

—Eu não disse isso com a intenção de ofender. — retratou-se, até porque como poderia ofender Gintsune chamando-o de “patife” se era exatamente isso o que ele era? — Eu cresci tendo seu filho cuidando de mim… e me atormentando bastante, na verdade, mas apesar de ele ser um cínico irresponsável bandido… — deteve-se pigarreando — Eu, na verdade o tenho em alta conta, o considero como um irmão e tenho certeza de que é assim que ele tem a mim também.

O filhote ressurgiu no decote da mãe, esfregando a cabeça com a patinha antes de abrir os olhos e regougar algo para a mãe.

—Oh. — ela piscou afastando-se do menino meio tengu e pousando no chão esfregando o queixo com ar pensativo — Tem razão meu raio de luz… — murmurou pensativa. — Sim é isso! — ela escondeu as mãos atrás do corpo, sorrindo travessamente — Se realmente é alguém assim tão próximo ao meu Querido Filhote, então suponho que possa nos dizer seu nome, não é mesmo?

Os quatro ali hesitaram.

—O nome dele? — repetiu Satoshi.

—É evidente! — a mãe de Gintsune sorriu inocentemente. — Afinal se meu filhote o tem em tão alta estima, e confia e o quer como a um irmão, não resta dúvidas de que ele lhes daria seu nome, estou certa?

—Sim, é verdade. — o tengu concordou sem saber mais o que dizer — Mas…

—Gintsune-sama nunca nos disse seu nome. — Akira pronunciou-se — E sempre se recusou a saber os nossos.

A mãe de Gintsune piscou.

—Verdade? Ora mas que infelicidade… — de repente ela arregalou os olhos — É verdade, que indelicadeza a minha! Eu me esqueci de perguntar seus nomes! Como vocês se chamam?

—Nós, hum… — Mayu umedeceu os lábios — Eu me chamo Mayu.

—E eu sou Satoshi. — completou o tengu — Esses são nossos filhos: Akira, Akihiko e Akio.

Indicou respectivamente cada um dos garotos.

A mãe de Gintsune sorriu lentamente, e o pai, olhando-a pelo canto dos olhos, de uma hora para outra simplesmente relaxou e afastou-se de Satoshi e os garotos e foi para junto da esposa.

Algo não estava certo ali.

Satoshi e Mayu se entreolharam e começaram imediatamente a caminharem em direção um ao outro.

—Satoshi, Mayu, Akira, Akihiko e Akio. — disse a mãe de Gintsune lentamente, como se experimentasse os nomes primeiro.

Os braços do tengu rodearam a esposa e o bebê, mas… algo estava faltando. O que estava faltando? Ambos se entreolharam confusos e em silêncio, e então olharam para os filhos, que também tinham a mesma impressão, mas igualmente não eram capazes de dizer o que lhes faltava…

Ainda assim, algo definitivamente estava faltando.

—Agora vejo. — continuou a mãe de Gintsune — Vocês definitivamente não são tão próximos ao meu filhote quanto tentaram me fazer acreditar, do contrário ele certamente os teria alertado… sobre o perigo de entregar seus valiosos nomes a qualquer um.

E de repente, as palavras de Ryosuke-sama retornaram às suas mentes:

“… a raposa que está ali é uma feiticeira poderosa capaz de se ocultar até mesmo de mim…”

Só então eles deram-se conta do que faltava.

O tengu arregalou os olhos, olhando chocado para a mulher raposa:

—Roubastes nossos nomes! — acusou-a.

Ao lado dela o marido trocou a forma animal pela humana, um homem alto e com uma expressão severa no rosto, que se vestia com um quimono negro, e possuía escuros olhos acinzentados e cabelos prateados que brilhavam levemente na penumbra, mas que estavam cortados curtos, e eram bagunçados e espetados para todos os lados, como se ele próprio os houvesse cortado com uma lâmina cega. Havia uma máscara negra de raposa presa ao lado direito de sua cabeça.

A mulher coçou afetuosamente debaixo do queixo de seu filhote.

—Roubei? — indagou cinicamente — Realmente pode me dizer isso depois que vocês mesmos os entregaram a mim de tão boa vontade? Mas não fiquem chateados comigo, meus queridos, pois agora sim nós poderemos ser verdadeiros amigos, já que eu terei a certeza de que estão sendo sinceros comigo. — Finalizou colocando as mãos dentro das mangas e deslizando lentamente de lá o tubo de bambu do qual libertou novamente o seu pequeno bando de kudagitsunes. — Preparem-nos um pouco de chá, por favor.

—Sim senhora!

Responderam em conjunto antes de se dispensarem em várias direções diferentes e sumirem por entre as árvores.

—Agora, por que não recomeçamos? — a mãe de Gintsune sugeriu sorridente, passando por eles e indo se sentar novamente entre as raízes da jubokku, sem se importar com os diversos pequenos ossos quebrando-se e estalando sob seus pés.

—Sim, a começar pela razão para estarem atrás de nosso filho. — acrescentou o pai de Gintsune sentando-se com as costas apoiadas em uma das árvores que delimitava a clareira e deixando o antebraço sobre o joelho dobrado — E é melhor que eu goste das respostas, porque minha amada Furin ficaria muito chateada comigo se eu arrancasse as entranhas de seus novos amigos.

Um riso alegre como um sino dos ventos ressoou.

—Não liguem para meu marido, às vezes Tamaki diz coisas tão tolinhas. — a mãe de Gintsune afirmou sorrindo, enquanto arrumava os braços dentro das mangas do uchikake — Admito que realmente seria uma lástima se isso acontecesse, mas não há nada que eu poderia fazer para evitar, afinal meu amor sempre levou proteger a família muito a sério.

Aquela mulher tinha seus nomes presos, não havia como tentarem fugir dali.

Satoshi apertou o maxilar, desejando profundamente que Gintsune estivesse ali agora… para ele poder socá-lo no meio da cara!

Gintsune quase nunca falava sobre a família, apenas alguns escassos comentários pegos no ar ao longo dos séculos, mas nunca algo muito exato, apenas coisas como:

 “Minha irmã ama as flores, mas ainda assim sua estação favorita sempre foi o outono…”;

“Isso me lembra minha mãe, no inverno ela costumava usar o velho e eu como aquecedores.”;

 “Não foi nada demais, uma vez mamãe arremessou a minha irmã tão longe que o velho precisou procurá-la por nove dias…!”;

“Talvez eu tenha sido um filhote superprotegido? Não apenas meus pais, mas a irmã também costumava fazer sempre a minha vontade, tratavam-me como o seu “pequeno e querido e precioso príncipe” e o velho por sua vez sempre fazia todas as vontades de mamãe, um verdadeiro circulo vicioso, acho…”;

“… parando para pensar é até um pouco surpreendente como a mana e o velho são parecidos, ambos são seres de poucas palavras, entende? Mas o velho costuma estar sempre sujo de sangue, e a mana… ela prefere ficar mais limpa.”;

Mas ele nunca havia dito nada sobre seus pais serem do tipo que primeiro rasgam as gargantas e depois perguntam… ah, na verdade eles ainda estavam intactos ali, mas se saíssem vivos, Satoshi se certificaria pessoalmente de surrar aquela maldita raposa!

—Então vamos recomeçar. — Furin afirmou sorrindo tranquilamente, olhando-os demoradamente antes de continuar: — Vejamos… ah sim, acho que ainda não falei com você. Akira.

O garoto retesou-se ao ter seu nome chamado, “Akira”, sim, esse era seu nome, agora ele lembrava, mas ainda assim ele soava tão estranho agora… como se o som da palavra não fizesse sentido, como se algo estivesse fora do lugar.

—Sim! — respondeu automaticamente, mesmo sem querer: sua boca simplesmente abriu-se e a palavra saltou dali.

—Akira, quando dirigir-se a mim, eu prefiro que me trate por “senhora”, compreendeu-me? — perguntou em som sério.

—Sim senhora! — ele tinha vontade de morder a língua fora, mas não conseguia fazer absolutamente nada que não fosse obedecer àquela megera.

—E o mesmo vale para vocês também, Satoshi, Mayu e Akihiko, entenderam?

—Sim senhora! — responderam juntos…

…como se fosse um grupo de títeres, com cordas amarrando-os que os faziam mover-se e falarem independentes de suas vontades.

—Excelente. — ela lançou lhe um sorriso brilhante — Meu amor, o que eu lhes pergunto primeiro?

 Do outro lado da clareira Tamaki tragou profundamente seu cachimbo e coçou-se na região de peito por dentro do quimono antes de responder:

—Pergunte-lhes o que querem com nosso filho.

—Claro, tem razão. — ela concordou — Então Akira, o que vocês querem com meu querido filhote?

Por menos de um segundo Akira tentou resistir, ele contraiu o rosto e apertou os lábios, mas nada adiantou, as palavras e a obediência foram-lhe arrancadas:

—Somos odiados e desprezados, mas Gintsune-Sama esteve a nossa vida inteira nos protegendo na cidade em que vivíamos, até que, há dois verões, ele desapareceu e todos os youkais da região caíram sobre nós sedentos por nosso sangue. Por isso tivemos que partir e estamos procurando-o desde então: Gintsune-Sama nunca nos abandonaria à nossa própria sorte dessa forma sem dizer-nos nada, então tememos pelo que possa ter lhe acontecido, Senhora.

Quando o meio tengu terminou de falar, o silêncio reinou naquela clareira — só então a família deu-se conta de que nenhum dos sons característicos da noite chegava até ali, nem o piar das corujas, nem o som dos morcegos… nada além das vozes das raposas que ali reinavam.

A mulher de cabelos negros e o homem de cabelos prateados se encararam abismados, e até mesmo o pequeno filhote oculto em suas roupas ressurgiu, arregalando os olhos dourados e regougando mais uma vez para mãe, embora ela mal tenha parecido escutá-lo, ela cobriu os lábios com as pontas dos dedos.

—Isso é verdade? — perguntou incrédula. — Mayu, diga-me!

—É a verdade, senhora. — Mayu confirmou, olhando-a desafiadoramente.

De repente o pai de Gintsune colocou-se de pé.

—E onde está nosso filho agora?!

Nenhuma “ordem de silêncio” lhes fora imposta, portanto eles podiam falar, mesmo se não fossem ordenados, mas ainda assim a família manteve-se relutantemente calada.

—Akihiko, responda! — a mulher ordenou, dizendo o primeiro nome que lhe veio à cabeça.

—Não temos certeza, senhora. — o garoto respondeu hesitante — A deusa oni nos disse que se viajássemos para o norte, talvez encontrássemos alguém que fosse capaz de encontrá-lo… mas ela também teve uma visão dele no mundo humano.

—No mundo h…! — as palavras morreram nos lábios do homem.

Cobrindo os lábios esverdeados com as mãos em concha, a raposa fez um som estrangulado vindo do fundo de sua garganta, enquanto os olhos enchiam-se de lágrimas.

—Então vocês nos disseram a verdade desde o início? — perguntou com voz abafada — Você e meu filhote tornaram-se irmãos postiços, Satoshi?

—Sim, eu lhe disse, mas a senhora…

—E cuido-vos e protegeu-os? — ela continuou sem ouvi-lo, olhando demoradamente para cada um deles, até que seus olhos detiveram-se em Mayu — Inclusive de você, Mayu? Por duzentos anos?!

—Sim, aproximadamente…

—E a escondeu de mim durante o tempo todo!

As pequenas raposas irromperam por entre as árvores, rindo e carregando utensílios de chá consigo.

—Trouxemos o chá!

—O chá!

—Sim, o chá para os mestres e seus amigos!

Anunciaram alegremente.

—Chá! Quem precisa de chá quando meu coração se dilacera com a traição de minha própria carne! — Furin retorquiu amargamente, cobrindo o rosto com as mãos — Oh!

Repentinamente sem mais conter as lágrimas, ela atirou-se ao chão, escondendo o rosto entre os braços dobrados e ali se pôs a chorar compulsivamente.

Incrédulos, a família cativa entreolhou-se sem saber o que fazer, enquanto um pequeno volume remexia-se por debaixo das roupas da dama em prantos e de repente o filhote negro saiu correndo em disparada dali, fugindo direto para os braços do pai, bem quando o ar em volta da mulher chorosa entre as raízes da árvore começou a estalar com eletricidade, e então as pequenas kudagtsunes gemeram e se contorceram, algumas até mesmo começaram a arranharem a si mesmas, como se elas próprias estivessem sendo eletrocutadas.

—Ah não! De novo não! — reclamou o filhote do casal, agora em forma humana, agarrado aos ombros do pai — Mamãe pare com isso, por favor!

Rindo e rosnando insanamente ao mesmo tempo, as kudagitsunes começaram a enegrecer ao mesmo tempo em que se arranhavam e atacavam umas as outras, enquanto estalos de energia ainda explodiam no ar e a mulher no centro de tudo continuava a chorar desconsoladamente.

Satoshi colocou-se diante da família, estendendo os braços em ambas as direções, tentando protegê-los tanto quanto possível daquele estranho evento.

—O que está acontecendo?! — ele gritou por sobre o som da eletricidade.

—Ela está corrompendo os criados com suas emoções. — Tamaki respondeu aborrecido, deixando o filhote no chão e atravessando a clareira voando para ir ajoelhar-se diante da esposa — Pare com isso, Furin, por favor.

Pediu tocando-a no ombro.

—Não! — ela ergueu-se, empurrando-o com ambas as mãos — Como posso seguir vivendo após tamanha traição?!

Lamentou-se se inclinando sobre ele logo depois, e continuando a chorar com o rosto pressionado contra suas roupas.

—Isso não foi uma traição. — ele suspirou passando as mãos por seus cabelos, querendo consolá-la — Ele apenas…

—Eu já sei! — Ela ergueu a cabeça repentinamente e a explosão elétrica resultante jogou longe todas as pequenas raposas tubo, embora não tenha parecido afetar em nada ao marido — Eu vou rastrear agora mesmo aquele filhote insensível e então mostrar a ele o quanto a sua indiferença destroçou o coração de sua linda mãe! — concluiu baixando a máscara de raposa branca sobre o rosto, embora ela só lhe cobrisse metade do rosto, antes de voltar-se para a família cativa novamente — Meu filhote deixou algum objeto pessoal para trás?

—Ginstune não tinha muitos pertences… — Mayu respondeu hesitante — E o que ele tinha, sempre carregava consigo.

—Sim, é lógico que seria assim. — a raposa negra suspirou — Nós o criamos como um nômade, afinal.

—Mas ele levou o meu chapéu quando sumiu. — Satoshi acrescentou inconformado.

—Oh. — Furin sorriu lentamente — Isso talvez possa ser útil.

Vendo-a mais calma, o marido soltou-a e aproximou-se com passadas largas dos cativos.

—Quero que me digam agora onde nosso filho fez sua toca durante todo esse período em que esteve zelando por vocês. — ordenou — Se ele deixou algo para trás, eu certamente encontrarei.

Satoshi piscou desconcertado.

—Viemos de um aglomerado caótico bem a sul-suldeste daqui, aos pés da montanha na qual cresci, ela é…

—Espere um pouco, Satoshi, espere! — Furin correu para o lado do marido — Aqui, conte isso a ele, e se esforce para visualizar o máximo possível a toca de nosso filhote enquanto fala, está bem?

Ela retirou de dentro da manga um pequeno boneco de papel dobrado, mas no instante em que o colocou sobre a mão de Satoshi, ele ergueu-se lhe fazendo uma reverência e permaneceu à espera de suas instruções, diante dos olhares espantados e surpresos da família.

—Como isso funciona? — Akihiko perguntou cutucando o bonequinho curiosamente.

—Vamos, digam logo a localização a ele, Satoshi! — a raposa negra ordenou impaciente. — Quero achar meu filhote e lhe dar um puxão de orelhas o quanto antes!

—Ah, claro. — Satoshi empertigou-se, limpando a garganta.

Descreveu então com todo o cuidado e a maior riqueza de detalhes que pôde se lembrar a antiga cidade da qual haviam fugido, e a casa de um cômodo só em forma de caixote, no final daquela estrada poeirenta onde Gintsune havia morado durante tantos anos… quando terminou, o boneco de papel curvou-se novamente, e então se desdobrou e redobrou-se, agora na forma de uma raposa, antes de sair voando velozmente e desaparecer na escuridão do céu sem estrelas.

—Eu voltarei tão logo quanto possível. — Tamaki avisou em tom gentil, inclinando-se para beijar a esposa, antes de puxar a máscara negra sobre o rosto e também se transformar numa raposa e sair voando dali.

Quando ele se foi, o céu pareceu clarear por um instante, passando do azul escuro para o azul celeste, e o canto dos pássaros começou a ser ouvido à distância… antes de sumirem e o céu escurecer novamente.

E Satoshi se pegou pensando, há quanto tempo já estavam ali…?

De repente todas as bolas de fogo azul que iluminavam a clareira se apagaram, mergulhando-os na absoluta escuridão.

—Ah, que inconveniente. — Mayu ouviu a mãe de Gintsune comentar laconicamente, enquanto apertava Akio, que havia inexplicavelmente dormido em algum momento indeterminado, um pouco mais contra si.

O som da estática começou primeiro, e então uma fraca luz iluminou o rosto da raposa, quando ela abriu as mãos e fagulhas elétricas dançaram entre seus dedos.

Aos poucos a clareira foi se iluminando novamente, conforme novas esferas luminosas reapareciam para tomar o lugar das antigas, mas essas não eram feitas de chamas, ao invés disso se pareciam mais com raios, sim, raios púrpuras que haviam sido selados naquela forma esférica de forma completamente antinatural.

As raposas tubo retornaram, saindo rindo de entre as árvores como se nada houvesse acontecido, enquanto orbitavam em volta de algumas das esferas elétricas.

—Não, não, meus queridos, vocês não devem tocá-las, não se lembram da última vez? — ela os alertou despreocupadamente, sentando-se sobre os calcanhares na grama e arrumando as saias por debaixo das pernas. — Bem, agora só nos resta esperar.

Uma kudagitsune rapidamente voou e deixou uma yunomi de chá em suas mãos, enquanto a família permaneceu ali de pé, sem saber exatamente o que fazer agora, mesmo se aquela mulher não houvesse roubado seus nomes, fugir dali seria altamente improvável, pois era óbvio que estavam presos em um “Mundo de Raposa”, claro, houve vezes em que alguns tengus conseguiram escapar de armadilhas feitas por Gintsune, simplesmente saindo voando delas, mas Gintsune era, na maior parte das vezes, meramente um espírito travesso, enquanto aquele casal já estava para muito além…

—Meu querido raio de luz. — a mulher coçou afetuosamente debaixo do queixo de seu filhote quando ele correu para junto de si já novamente na forma animal, embora agora portasse um tamanho normal, antes de erguer os olhos novamente para eles. — O meu filhotinho só começou a mudar de forma há pouco menos de um ano, por isso ainda não consegue manter suas transformações por muito tempo. Mas isso não o torna menos prodigioso, as raposas normalmente só conseguem começar a mudar de forma depois de terem completado cinquenta anos, sabiam disso? E meu raio de luz apenas acabou de completar quarenta e um! — comentou orgulhosa, bebendo um gole de chá — Mas por que ainda estão aí em pé? Sentem-se e tomem chá comigo.

Os quatro se entreolharam e, quase que magicamente, raposas tubo surgiram voando ao seu redor e lhes entregaram yunomis de chás, inclusive ao pequeno Akio, pois uma yunomi foi deixada equilibrada sobre o corpo do bebê, a qual Satoshi retirou cuidadosamente, antes de se dispersarem novamente.

Mayu foi a primeira a sentar-se, não só por saber que seria inútil tentar resistir às ordens da raposa, mas também por só naquele momento ter se dado conta do quanto estava exausta, suas pernas estavam rijas, os pés doloridos e os braços pesavam-lhe, fazendo-a pensar há quanto tempo realmente já estava ali de pé carregando o filho. O marido e os filhos logo a acompanharam, fazendo Furin sorrir satisfeita.

—Ótimo, e agora o que eu dizia? — tomou mais um gole de seu chá — Ah claro, na verdade todos os meus filhotes são muito talentosos, a Minha Flor, por exemplo, ela apenas havia acabado de passar pelo seu quadragésimo sétimo ano quando fez sua primeira transformação! E o que dizer então de meu Precioso Filhote? Ainda faltavam mais de duas lunações para seu trigésimo sexto ano e ele já estava se transformando! Infelizmente ele também sempre foi tão despreocupado e nunca se dedicava a nada, mesmo sendo o mais talentoso entre os três…

Suspirou girando a yunomi entre as mãos.

Mayu sentia seus olhos pesarem e a cabeça pender e, quando se deu conta, Satoshi estava amparando-a, com uma mão em seu ombro e outra em Akio, impedindo-a de deixá-lo cair.

—Talvez seja melhor eu segurá-lo agora. — sugeriu.

—Deixem-me segurá-lo! — a raposa pediu ansiosamente, deixando a yunomi no chão e estendendo as mãos em sua direção.

Mayu hesitou, apertou o filho um pouco mais em seus braços e então, engolindo em seco, entregou-o temerosamente.

—Como quiser senhora… — murmurou, tentando conter as lágrimas.

Ela não vai machucá-lo. Disse a si mesma. Essa mulher também tem filhos a quem ama.

A risada da raposa tilintou em seus ouvidos quando ela segurou o bebê com alegria em seus braços, sem nem se dar conta do estado de espírito da humana.

—“Senhora”? Oh não, podemos nos esquecer disso agora, eu sinto muito, só estava… — ela calou-se arregalando os olhos — Seus nomes, é verdade! Esqueci completamente! — o filhote, com a cabeça deitada sobre suas pernas, girou os olhos — Então muito bem… — pigarreou — Satoshi, Mayu, Akira, Akihiko e Akio. Eu os revogo.

E quando ela sorriu nada parecia estar diferente, mas ainda assim era como se, de repente, tudo tivesse voltado ao lugar onde deveria estar e o mundo fizesse sentido novamente.

—Nossos nomes… retornaram? — Akihiko perguntou olhando incerto para os pais.

—Lamento muito por isso, mas precisamos ser cuidadosos, e eu não tinha como ter certeza de que vocês não estavam tentando fazer mal ao meu Precioso Filhote. — a mãe de Gintsune desculpou-se sorridente. — Nós raposas são muito invejadas, sabiam? Por isso arrumamos inimigos com muita facilidade…

—Acho que não é bem por isso… — Akira começou a dizer, mas acabou recebendo um cascudo do pai.

—Então considerem esses nomes como prova de minha amizade e estima. — a mãe de Gintsune prosseguiu sem dar-se conta… ou estava simplesmente ignorando? —Podem me chamar de Furin, está bem? — ela cutucou o ponto no alto da cabeça entre as orelhas de seu filhote — E o meu Raio de Luz aqui de Anko. Querido, seria de bom grado se você também oferecesse uma prenda como prova de amizade.

Satoshi ergueu as mãos, imediatamente alarmado.

—Realmente não há necessidade para isso.

—Não, eu insisto. — Furin alegou levando a mão ao peito, antes de cutucar ao filhote mais uma vez — Rápido querido.

Anko fez uma careta, claramente contrariado com aquela situação, antes de levantar-se e correr para junto da jubokku, escalando habilidosamente e desaparecendo entre seus galhos.

Quando retornou, era um garoto novamente, e jogou-lhes de qualquer jeito uma espada embainhada.

—Aí está: um presente como prova de amizade. — estalou a língua.

Akira pegou a arma, fechando a expressão.

—Está me presenteando com minha própria espada?

—Sua? —Anko irritou-se — Nada disso, eu a consegui com meu próprio esforço!

—Sim, claro, roubando-a de mim! — o meio tengu acusou enquanto prendia a arma junto ao quadril novamente.

—Com muito esforço! — o filhote de raposa bateu o pé no chão.

—Isso não vem ao caso agora! — Satoshi interveio tentando evitar conflitos desnecessários, empurrando a cabeça do primogênito para baixo, obrigando-o a se curvar. — E nós estamos sinceramente gratos pelos presentes.

Satoshi, e especialmente Mayu, já estavam acostumados ao conceito de que vários dos presentes de Gintsune eram, na verdade, fruto de algum de seus furtos, mas só naquele momento é que se deram conta de que para as raposas, mesmo coisas que foram roubadas deles próprios podiam ser consideradas como presentes

—Sim, muito gratos. — Mayu concordou laconicamente e, também tentando evitar conflitos, logo tentou desconversar: — A senhora estava nos falando o quão talentosos são seus filhos…

—Sim, é claro. — Furin sorriu — O meu Precioso Filhote sempre foi o mais talentoso, mas era um garoto tão despreocupado… A Minha Flor, por outro lado, era muito dedicada e diligente, mas ainda assim nenhum dos dois se interessou em aprender minhas artes, somente o meu Raio de Luz quis aprender.

—Quer dizer, controlar shikigamis e roubar nomes? Ouch! — Akihiko fez uma careta, massageando as costelas ao receber ali uma cotovelada da mãe.

Anko lançou-lhes um olhar fulminante enquanto comia em silêncio de uma tigela cheia de pães cozidos ao vapor entregue a ele pelas raposas tubo, mas Furin limitou-se a confirmar com um sorriso enigmático:

—Entre outras coisas… — as raposas tubo deixaram uma bandeja repleta de pães ao vapor entre eles, antes de Furin prosseguir: — Mas tenho certeza de que vocês também possuem muitas histórias a respeito do meu Precioso Filhote que eu desconheço, por exemplo, Satoshi, como foi que você e meu filhote se tornaram próximos como irmãos?

Akio mexeu-se nos braços de Furin, mas sem dar sinais de que despertaria, enquanto Akira e Akihiko estavam pegando pães, e Mayu resolveu pegar um para si também, na verdade ela estava faminta, mas seus braços pesavam tanto, e sua cabeça parecia tão leve…

—Ah sim, eu ainda era um filhote, quando Gintsune encontrou minha vila. — Satoshi começou a narrar — Acho que ele pensou…

E foi esse momento que Mayu “escolheu” para perder os sentidos.

*.*.*.*

Durante toda a sua vida escolar, Yukari sempre fizera parte do clube “volte para casa”, pois suas obrigações com a pousada não lhe permitiam gastar seu tempo com quaisquer outras atividades, fossem hobbies ou passeios com seus amigos, mas ultimamente ela vinha sempre indo para casa com muito mais pressa do que o normal, ao ponto de aquela garota, tão pouco atlética e sempre tão rígida com as regras sair correndo para casa e mal olhar para os dois lados antes de atravessar a pista.

—A pousada deve estar realmente cheia. — a representante assoviou admirada. — Ela quase se esqueceu de trocar os sapatos na saída.

—Não, acho que tem algo a mais. — Kaoru comentou preocupada ao seu lado. — Algo de muito estranho eu acho…

—Talvez ela esteja com medo da raposa de Higanbana? — a representante sugeriu brincando — Ela escapou, afinal, não é o que todos dizem?

Kaoru bateu-lhe incomodada no ombro.

—Representante não brinque com essas coisas. — reclamou.

E mais estranho ainda era o fato de, ao chegar ao topo da colina Shibuya, Yukari simplesmente passar direto da pousada! Ao invés disso, ela corria para casa, ia para o andar de cima e por dez, às vezes vinte, minutos inteiros, se trancava ali sem dar explicação alguma… e então saía e começava a trabalhar como se não houvesse nada de errado, exceto pelo olhar ansioso que deixava transparecer.

—Ela está se comportando exatamente igual ao meu onii-chan quando trazia animais de rua escondidos para casa. — Tsubaki comentou com a nora ao vê-la passando.

—Yuki nunca foi muita próxima aos animais. — Chiharu estranhou.

—Isso é verdade. — Tsubaki curvou-se para frente, apoiando os cotovelos sobre o balcão e ignorando completamente a compostura que deveria manter enquanto atendia na recepção na pousada — Mas alguma coisa ela está escondendo naquele quarto, já faz mais de uma semana que ela o mantém trancado 24 horas por dia!

—Trancado? — Chiharu surpreendeu-se.

Tsubaki anuiu.

—Eu tentei entrar ontem enquanto ela estava na escola. — comentou — Até coloquei o ouvido na porta, para ver se escutava algo, mas…

Deu de ombros, e sua nora olhou preocupada para a porta do escritório atrás de si.

—Quando Daisuke descobrir ele vai ficar muito irritado.

—Eu não vou contar, e você também não Chiharu! — Tsubaki decretou em tom sério, estalando a língua.

Pois não era como se sua neta houvesse assaltado um banco ou estivesse se drogando ali dentro, apesar de que ela definitivamente estava escondendo algo…

Afinal não havia como Yukari contar a alguém que estava escondendo duas raposas mágicas em seu quarto, e que todos os dias ela voltava correndo para casa, esperando que ele já houvesse acordado… mas sempre o encontrava ainda adormecido.

Pelo menos ela esperava que ele estivesse apenas adormecido, desde que adormecera na noite em que havia resgatado a irmã, Gintsune não voltara a abrir os olhos, às vezes ele se mexia, mas só um pouco, e afora isso mais nada, nenhum tipo de som… nada.

É verdade que certa vez Gintsune lhe dissera que youkais não precisavam realmente se alimentar todos os dias, mas ainda assim nove dias?! Além disso, ele também lhe dissera que comida humana não era capaz de saciá-lo por completo.

Então todas as noites, durante a madrugada, ela se esgueirava até a cozinha, fazia um pouco de mingau de arroz e então empurrava algumas colheradas pelas goelas de Gintsune e sua irmã.

A irmã dele, a propósito, também não voltara a despertar nenhuma vez sequer depois de ter sido libertada.

—Se isso for mais uma das suas piadas, é melhor parar agora porque já perdeu toda a graça, aliais nunca teve graça alguma. — reclamou sentada sobre os calcanhares ao lado da cama, apoiando a testa sobre o colchão.

Infelizmente ela estava longe de ser uma médica ou uma veterinária — e nem tinha certeza de qual dos dois seria mais adequado para aquela situação —, mas ainda assim havia feito o seu melhor para tratar dos ferimentos de Gintsune, mas o único que realmente a preocupava era aquela feia queimadura em sua pata, pois enquanto todos os outros ferimentos haviam se recuperado completamente, aquela queimadura seguia se recuperando — se é que estava realmente se recuperando — a um ritmo muito mais lento.

E então respirando fundo, Yukari esfregou os olhos e levantou-se. Precisava ir trabalhar.

*.*.*.*

Muito tempo atrás ela e a velha moravam sozinhas naquela velha casa, e todas as manhãs a velha fazia-lhe carinho na cabeça e saía, prometendo voltar ao anoitecer, e ela esperava-a… e então, certo dia, a velha não retornou.

Ainda assim ela ficou esperando-a, como sempre fizera, mas por que ela estava demorando tanto? Os ratos haviam acabado agora, e ela estava faminta, ah, e tão fraca também… sua barriga doía, ela tinha tanta sede, mas precisava continuar esperando-a, mesmo que aquelas coisas seguissem zombando dela, riam e diziam que ela fora abandonada, que a velha já não a amava mais e a esquecera, mas ela não acreditaria em suas palavras, pois sabia que a velha retornaria.

Ela odiava-os.

Odiava-os e odiava-os.

Então, um dia ela ergueu-se, e já não se sentia mais fraca, estava faminta e furiosa, não havia ratos, mas havia muitas daquelas coisas, por isso ela caçou-as e devorou-as uma a uma, lambeu os beiços e continuou caçando-os.

Ela tornou-se forte e furiosa, enquanto protegia a casa da velha com suas presas e garras, ninguém tomaria aquela casa, ninguém destruiria aquela casa, não enquanto ela estivesse ali… então quando aqueles homens entraram ali, para levar as coisas da velha, ela não hesitou em caçá-los também e rasgar suas costas com as garras.

E continuou a caçar cada homem e mulher que ousasse por os pés naquela casa, ninguém tomaria o que era da velha, ninguém.

A castanheira do quintal, aquela mudinha magricela e frágil, era a sua única companhia, e ela continuou a crescer e crescer enquanto ambas esperavam pelo retorno da velha, na verdade a castanheira já havia se tornado grande e muito forte quando aquela tempestade a derrubou, tal como ela, que agora era capaz de andar em duas patas e quando o fazia sua cabeça se erguia tão alto quanto a cabeça de um homem e até havia aprendido a falar a língua deles…

—Ouça velha, a tua castanheira não conseguiu esperar-te. — lamentou-se aos pés da árvore caída. — E não só ela, eu cuidei da casa o melhor que pude, mas ela continua a despedaçar-se. A casa está velha demais, velha demais, mas eu continuo aqui te esperando. Oi velha, para onde você foi?

—Eu lamento muito. — disse uma voz às suas costas, que fez todos os seus pelos se eriçassem — Mas a sua velha não vai mais voltar.

Ela não sabia como não havia sentindo-o entrar na casa da velha.

Mas quando se virou hesitou, ele parecia-se com um homem, mas falava e sentia como aquelas coisas… e ao mesmo tempo não se parecia com nada do que ela já tivesse conhecido antes, todos os seus instintos gritavam para que ela fugisse dali, ele era perigoso demais, poderoso demais.

Mas não podia fugir, tinha que ficar e cuidar da casa da velha tinha que esperar pela velha.

Então, contrariando todos os seus instintos ela atacou-o.

Suas presas voaram direto para sua jugular, mas então ele colocou o antebraço na frente e usou o movimento para atirá-la de costas no chão, mesmo surpreendida, pois há muito tempo não encontrava algo que fosse capaz de enfrentá-la (fosse homem ou coisa), ela lutou, arranhando e silvando, mesmo quando ele levou a mão à sua garganta e apertou-a, cravando suas garras ali, por que ele também tinha garras?

Estava confusa, irritada e muito assustada.

—Ela morreu! — ele gritou diante de sua cara, afundando o joelho dolorosamente em sua barriga.

E só afastou-se muito tempo depois, quando ela finalmente parou de lutar.

—Eu sinto muito pela sua velha, mas ela realmente morreu. — repetiu lentamente, sentando-se sobre a árvore caída enquanto ela permanecida deitada inerte de lado no chão, a velha tinha morrido? Isso era realmente verdade? Ele olhou ao redor — E acho que já faz muito tempo. — tirou um cachimbo da manga e deu uma tragada — Eu fiquei curioso. Ouvi algumas pessoas dizendo que iriam chamar um exterminador para cuidar do monstro que estava assombrando essa casa, mas… acho que você nem sabe no que se tornou.

—Eu estava esperando pela velha. — conseguiu dizer.

Aquela foi a primeira vez que conversou com alguém além da castanheira.

—Eu sei que estava, mas ela não vai mais voltar, sinto muito. — ele respondeu-lhe soltando à fumaça do cachimbo — Você deveria ir agora, se ficar acabará sendo exterminada.

—Ir? — repetiu enquanto as lágrimas caiam-lhe lentamente pelo rosto, ela não sabia que era capaz de chorar daquela forma — E para onde eu iria?

Tudo o que conhecia era a casa da velha.

—Eu não sei. — ele tragou o cachimbo mais uma vez — Gosta de peixe? Já conheceu o mar, Tama?

“Tama” foi como ele decidiu chamá-la, a velha uma vez também havia lhe dado um nome, mas a velha se fora agora e esse nome fora esquecido há muito tempo… então ela decidiu-se por segui-lo.

E agora se via mais uma vez guardando a casa enquanto esperava pelo retorno de um mestre que desaparecera.

O leve som de um farfalhar fez as orelhas de Tama moverem-se e de repente ela acordou-se alarmada, a yunomi estava correndo de novo?! Mas então se deu conta de que o som nada tinha haver com os passinhos do youkai e, ao invés disso, parecia-se mais com o de papel sendo amassado e seus olhos rapidamente focalizaram o intruso que entrou voando pela janela e ficou a dar voltas no ar, até que ela saltasse para capturá-lo e espedaçá-lo.

—Mas que tipo de brincadeira é essa? — reclamou ao perceber que se tratava apenas de um boneco de papel, enquanto cutucava os restos com uma das patas.

—Você não deveria ter feito isso. — disse uma voz às suas costas, que fez todos os seus pelos se eriçassem.

Por um segundo a mescla do contraste dos cabelos prateados contra o sol e a solidão em seu coração a fez acreditar que Gintsune-Sama havia retornado, mas logo se deu conta de que não poderia estar mais enganada, pois aquela raposa prateada era mais antiga e perigosa do que Gintsune-Sama jamais sonhara em ser.

Ela não havia notado a aproximação dele no princípio, mas agora que notara, sentia-a sufocante e ameaçadora e, a máscara de raposa negra fazia pouco para ocultar a sua natureza feroz e territorial, de forma que todos os instintos da gata gritavam-lhe para que fugisse, mas ainda assim Tama não era capaz de abandonar a casa de seu mestre.

Ela sibilou deixando as garras à mostra.

—Quem é você? O que faz aqui?

A raposa deu um passo adentro.

—Eu sou quem deveria estar lhe fazendo essas perguntas. — retrucou — Afinal essa é a casa de meu filho.

Tama hesitou. Como poderia saber se ele dizia a verdade?

Gintsune-Sama nunca lhe dissera coisa alguma sobre seus pais, e tampouco algum deles havia aparecido ali antes, mas se fosse verdade e ele estava ali agora, então…

—Então realmente aconteceu algo com Gintsune-Sama? — murmurou receosa.

—Por que diz isso?

A gata colocou-se de pé sobre as patas traseiras e cresceu até tornar-se uma mulher, esfregando o braço com apreensão.

—Gintsune-Sama desapareceu há mais de um ano, mas no inicio eu não me preocupei, ele… é forte e poderoso, e sabe bem como se cuidar.

—Mas agora está preocupada. — ele afirmou.

Foi quando ambos ouviram a corrida de pequenos passinhos que acabava de recomeçar debaixo da casa, e Tama lançou um olhar angustiado ao recém-chegado.

—Já há dois dias a yunomi debaixo da casa não para de correr.


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Notas finais do capítulo

Curiosidades do Japão:

Tessen: espécie de leque feito para ser usado como arma de ataque e defesa por praticantes de artes marciais, é feito com hastes de metal afiadas na ponta e seda endurecida. Fechado, pode ser usado como um pequeno punhal e aberto pode ser usado para "esfaquear" o oponente.

A lenda de Urashima Taro:
De acordo com o folclore japonês, Urashima Taro era um pescador simples de uma vila costeira do Japão. Um dia, enquanto caminhava pela praia, viu um grupo de três garotos batendo e maltratando uma tartaruga. Incrédulo com a crueldade dos meninos, Urashima repreendeu as crianças, resgatou a tartaruga e devolveu para o mar. Mas essa tartaruga era, na verdade, Otohime, a filha do deus dragão que, como agradecimento, levou Urashima Tarou para seu palácio sob as ondas, quando o pescador quis voltar para casa Otohime o presenteou com uma caixa que jamais deveria ser aberta, mas ao chegar a terra percebeu que 300 anos haviam se passado e todos que conhecera já haviam morrido, desolado, Urashima Taro abriu a caixa da princesa Otohime, ali estava guardados todos os anos de sua vida, e o pescador envelheceu até morrer e se tornar pó.

Bestiário:

Jubokku: Literalmente “árvore criança”. Espécie de árvore youkai, que nasce em campos de batalha onde centenas de pessoas morreram, a semente se alimenta do sangue dos mortos que embebeu o solo e ao longo do tempo a árvore desenvolve gosto por sangue. Parece-se exatamente com uma árvore comum, exceto que, quando um ser vivo se aproxima ela o captura com seus galhos e drena todo seu sangue.

Kudagutsune: Youkai do tipo tsukimono — capaz de possuir e manipular humanos. São raposas minúsculas e magras, do tamanho de roedores, geralmente encontradas a serviços de feiticeiros e adivinhos e, devido aos seus minúsculos tamanhos, podem ser, convenientemente escondidas em mangas, bolsos, tubos de bambu, cachimbos, etc…



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