A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 33
32: Desperta e Faminta.


Notas iniciais do capítulo

Hellou pessoinhas!
Geralmente eu reviso cada capítulo duas ou até três vezes (e ainda assim deixo passar uma porção de erros -_-'), mas dessa vez acabei só revisando uma mesmo... Então se acharem algum erro me avisem para eu concertar, certo?
.
Acho que dessa vez não precisamos de glossário, mas se tiver alguma palavra que não entendam, me avisem!



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Gintsune levou a irmã para o primeiro local que imaginou poder deixá-la tranquila: o jardim da pousada.

E ali criou um território para ambos, onde ninguém poderia incomodá-los.

Afinal ela sempre fora delicada e refinada e tivera um amor incondicional pela natureza, mas ainda assim o breve momento em que ambos avistaram a extensão da cidade quando voavam até ali foram o suficiente para fazê-la arregalar minimamente os olhos.

—Tudo parece tão diferente. — comentou em tom baixo soltando suas mãos e cambaleando dois passos para trás, Gintsune nunca a ouvira erguer a voz, exceto por aquela noite quando a havia libertado e ela respondera ao seu chamado. — To-chan, quanto tempo se passou?

Gintsune ficou calado, trocando o peso do corpo de um pé para o outro, se sentindo mais miserável do que jamais pensou ser possível, ela havia ficado presa por culpa dele, ela o havia protegido, e quando o chamou… ele não viera.

—O tempo… é relativo. — começou a dizer hesitante. Covarde. — Eu não sei exatamente quando você…

Quando ela havia começado a chamar por ele sem que sua voz jamais o alcançasse, e depois que alcançou, ele simplesmente havia ignorado.

Sua vontade agora era unicamente prostrar-se no chão e implorar pelo perdão dela.

—Os lírios aranha estavam florescendo, eu estava admirando-as quando aquele homem apareceu. — ela contou-lhe suavemente aproximando-se da amurada da ponte e observando seu reflexo na água, e as carpas nadando mais abaixo — Foi um pouco depois de termos nos visto, você se lembra daquele festival To-chan?

—Eu me lembro. — foi tudo o que foi capaz de dizer.

—Aquilo foi no ano do javali. — ela continuou, mas Gintsune mesmo não saberia dizer, nunca havia se atentado a esses detalhes como sua irmã — Mas já era o ano do macaco quando encontrei aquele homem… — seus lábios se apertaram minimamente, as expressões faciais de sua irmã sempre eram bastante delicadas e discretas — Ele estava atrás de você.

—Eu sei.

—Então quanto tempo já faz To-chan?

Quando aqueles olhos límpidos e dourados o encarou, Gintsune sentiu-se tão acuado e sem reação como o filhotinho travesso que um dia havia sido, ele podia desviar o olhar, mas ainda sentia o olhar da irmã queimando-o.

—Eu… diria que… já faz umas quatro eras humanas, mas os humanos são tão volúveis, a forma como eles contam o tempo está sempre mudando… — começou a divagar.

—To-chan. — Momiji o chamou paciente — Quando tempo?

Gintsune umedeceu os lábios, sua mente estava fazendo os cálculos, o ano do macaco seguinte àquele último ano do porco no qual eles se viram durante aquele festival, ele havia levado o tengu e a esposa para aquele festival e ainda não fazia nem uma década que eles estavam casados, então isso havia sido há… uma angústia nítida crescia em seus olhos, mas mesmo quando conseguiu se obrigar a falar, suas palavras não foram mais que meros sussurros:

—Cerca de… Talvez algo entre cento e noventa e… certo e oitenta… anos.

Momiji agarrou novamente a amurada da ponte de madeira, como se não fosse capaz de continuar a manter o equilíbrio por si mesma sem aquele apoio, enquanto olhava para o irmão em um silêncio longo e desconfortável, ela estava em choque, ele sabia, e profundamente decepcionada com o irmão que a abandonara, e agora nem sequer conseguia encará-la…

—Que bom. — Momiji suspirou.

Oi? Que bom?!

Gintsune assustou-se erguendo os olhos, quando Momiji tocou a lateral de sua face com as pontas dos dedos.

—Quando vi aquela garota, tive medo de que não tivesse se passado tempo o suficiente.

—Como disse? — ele piscou.

—Quando aquele homem apareceu e confundiu-me com você eu poderia tê-lo exterminado, por ele estar ali tão claramente ameaçando-o, To-chan, ou pela simples ofensa dele ter ousada olhar-me e falar-me diretamente quando eu não lhe dei tal liberdade, mas… quando pensei que poderia haver outros, que ele poderia ter amigos e parceiros que também o estivessem caçando-o e que eu desconhecia… — ela abaixou a mão, olhando-o serenamente — Então me deixei ser selada e deixei-o pensar que havia vencido e assim parasse de caçá-lo. Depois esperei.

—Esperou o que?

—Até que tempo o suficiente houvesse passado para ele estar morto e todos já haverem se esquecido. — esclareceu — No entanto, enclausurada naquela escuridão eu não tinha noção alguma de quantos dias se passavam aqui fora, então tentei contar o tempo pelo crescimento das minhas caudas, eu sabia que faltava menos de meio século para o nascimento da minha quarta cauda, humanos vivem mais do que isso, então esperei até o nascimento da quinta, e esperei até um pouco mais além, humanos não vivem tanto, mas histórias… mas quando vi aquela garota, temi que não houvesse esperado tempo o suficiente.

Um sorriso ameaçou brincar entre os lábios de Gintsune, ele sempre disse que Yukari tinha um estilo antiquado de se vestir, mas daí a sua irmã — que não via o mundo exterior há quase dois séculos — vê-la e confundi-la com alguém datada de próximo ao shogunato?

—No entanto… — continuou Momiji, fazendo uma pausa quando seus lábios se apertaram — como ela ainda está viva depois de todo esse tempo?

E só então Gintsune compreendeu o engano que se passava ali.

—Não! — disse — Yukari não é a irmã daquele homem!

—Ah. — os olhos de Momiji se suavizaram ao encherem-se de piedade. — Lamento sua perda To-chan, mas a vida dos humanos é efêmera assim, por isso amá-los é…

Quando a irmã ergueu novamente a mão para tocar-lhe o peito na altura do coração, ele afastou-se chocado.

—Não me apaixonei por humana alguma. — negou.

—Não? — ela piscou, baixando a mão — Aquele homem me disse que você devorou-a, mas você sempre pendeu muito mais ao mesmo carinho pelos humanos que nossa mãe possuía e nada da ira assassina de nosso pai, então pensei…

—Também não devorei ninguém. — suspirou cansado — Nem mesmo fui eu quem a levou.

E então ele contou a irmã uma história sobre uma vila de tengus escondida em uma montanha, um tengu tolo que se apaixonou por uma humana mais tola ainda, e uma raposa que não podia deixá-los para trás, e como, mais tarde, essa mesma raposa havia sido chamada até ali por uma voz que a chamava, mas se instalara naquela pousada e jamais se preocupara em procurar pela tal voz, e quanto mais falava mais pétreo o rosto de sua irmã se tornava até que, ao fim ele sentisse como se estivesse de frente a uma estátua feita de pura ira.

—Então. — ela falou com tom baixo e controlado, enquanto eletricidade estalava no ar ao seu redor — Durante todo o tempo em que pensei estar protegendo ao meu auspicioso príncipe e seu tolo inconsequente amor mortal eu estava, na verdade, protegendo o amor de um mero tengu?

Gintsune evitou encolher-se.

—Se serve de algum consolo, eu amo eles. — tentou apaziguá-la.

Mas ela tinha todo o direito de estar zangada e caso quisesse fulminá-lo com um raio, ele não se esquivaria.

Por fim, Momiji suspirou.

—Acho que estou com uma coisa que lhe pertence. — afirmou tirando de dentro da manga uma esfera luminosa.

Gintsune arregalou os olhos, sua Hoshi no Tama! Por isso é que a regeneração de seus ferimentos estava tão lenta!

—Você usou sua força para quebrar meu selo, poderia ter morrido To-chan. — Momiji o censurou gentilmente, lhe devolvendo aquela parte de si mesmo — Sempre foi tão inconsequente, meu precioso príncipe.

Gintsune sorriu de lado, enquanto devolvia a Hoshi no Tama ao seu lugar de direito, junto ao coração, sentindo imediatamente a força espalhar-se por seu corpo.

—Eu precisava tirá-la de lá de qualquer forma, se falhasse contigo irmã, por que continuaria a viver…?

De repente a mão de Momiji fechou-se em torno do braço enfaixado do irmão.

—Irmãozinho. — chamou-o.

Sua voz e semblante permaneciam tranquilos, mas Gintsune ouviu o coração dela acelerando e percebeu sua face tornando-se mortalmente pálida.

—O que foi? — perguntou preocupado.

A mão em torno de seu braço apertou-se.

—O sol está se pondo. — por um milésimo de segundo a respiração de Momiji tornou-se trêmula — Está escurecendo. Eu não posso voltar para a escuridão, To-chan. Não posso.

Arregalando os olhos, Gintsune ergueu a mão livre e estalou os dedos e imediatamente todas as lanternas de pedra no jardim se iluminaram com chamas azuis queimando em seus interiores.

E como se suas pernas já não fossem mais capazes de sustentar lhe o peso do corpo, Momiji desabou bem ali a sua frente, o lindo uchikake se amontoando a sua volta e a cabeça pendendo frouxamente para frente, com o queixo repousando sobre o peito.

—Irmã! — Gintsune chamou-a apoiando-se sobre um joelho e agarrando-lhe ambos os ombros.

Momiji ergueu os olhos, os lábios rubros se entreabriram.

—To-chan. — murmurou — Estou com fome.

Uma das últimas coisas que Gintsune havia feito antes de “se despedir para sempre” de Yukari foi deixar suas roupas — ou melhor, as roupas que ele havia roubado — entre as roupas para lavar.

De alguma forma ele parecia sempre saber quando era a vez de Yukari lavar as roupas.

Então, da mesma forma como havia feito com o uniforme escolar “de Ayaka” quando ele havia deixado de ir à escola, Yukari, sem ter como devolver aos legítimos donos, guardou a calça jeans e a blusa listrada de mangas compridas em sua gaveta — ele nunca usava roupas de baixo, mas ela não havia decidido se isso era bom ou ruim e, sinceramente, o assunto era perturbador demais até para ficar muito tempo pensando nisso —, e ali as peças haviam ficado até aquela manhã, quando elas simplesmente desapareceram.

—Lamento, eu arruinei em tão pouco tempo o quimono que você havia feito especialmente para mim…

A voz de Gintsune soou às suas costas e, surpreendida, Yukari fechou a gaveta com um estrondo.

—O que? — ela virou-se.

Ele estava de pé ao lado da cama, usando a dita calça jeans e a camisa de mangas compridas que haviam desaparecido da gaveta de Yukari e carregando nos braços o quimono cor de lavanda dobrado, que agora estava sujo e parcialmente destruído.

—O quimono… — lançou lhe um olhar culpado.

Yukari sorriu-lhe levantando-se.

—Não se preocupe, foi por uma boa causa.

—Você parece tão calma e compreensiva hoje. — ele lhe lançou um olhar de estranheza.

Yukari deu de ombros pegando o quimono de suas mãos e o sacudindo para desdobrá-lo diante de si, a faixa do obi caiu aos seus pés.

—E você tem se desculpado bastante. — respondeu analisando a peça de roupa. — Estou feliz que você tenha acordado, e aliviada por estarem bem.

De fato sentia-se tão bem que tinha vontade era abraçá-lo, e sabia que ele podia ouvir os saltos de seu coração, mas aquilo não era algo que diria ou faria, então precisava manter suas mãos ocupadas.

—Você foi de grande ajuda. — ele elogiou-a. — Mas é a minha natureza causar problemas.

Yukari ergueu o quimono entre os dois.

—Como sua irmã está?

Gintsune afastou-se dela, foi até sua mesa e pegou o relógio digital que havia ali, virando-o de um lado para o outro na mão, como se o estudasse.

—Ela está um pouco abalada, mas vai ficar bem. — respondeu tentando convencer a si mesmo, nunca havia visto sua irmã perder o controle, ou tampouco desabar daquela forma — E está faminta.

Yukari tentou não estremecer com esse último comentário, mas era um pouco difícil, principalmente considerando que ela havia crescido com histórias sobre a raposa que comia jovens donzelas…

—A peça está imunda, a manga direita foi completamente arruinada, será preciso substituí-la, a bainha também precisa ser concertada e está rasgado aqui também… — ela estendeu o quimono sobre a cama enquanto o analisava, alisando-o com as mãos ao concluir: — Posso dar um jeito.

—Seria muita gentileza da sua parte. — Gintsune comentou pondo o relógio de volta na mesa — Eu gostaria de poder dizer até onde toda a sua gentileza e compreensão ainda serão capazes de se estender… você com certeza vai ficar furiosa comigo, mas minha irmã está com muita fome.

—O que quer dizer…? — mas quando se virou com os olhos arregalados ele já havia sumido.

Não, de jeito nenhum. Yukari sacudiu a cabeça e as tranças chicotearam em volta de seus ombros. Ele não havia dito que a irmã nunca comeria alguém? Mas agora ela estava faminta e ele parecia tão perturbado… não, pare de pensar nisso.

Ela precisava ir trabalhar na pousada agora, sim, era uma manhã de domingo em pleno outono, simplesmente a temporada mais movimentada do ano, a casa estava cheia e ela não podia perder ainda mais tempo pensando e se preocupando com coisas aleatórias… e precisava dar um jeito de lavar aquele quimono sem ninguém perceber, ela também ainda tinha linha na cor certa e alguma sobra de tecido, mas não sabia se era o suficiente para confeccionar uma manga nova, então talvez precisasse comprar mais, e também não poderia fazer o trabalho durante a aula de economia doméstica, talvez precisasse usar a sala durante o horário de almoço, já que depois das aulas a sala se tornava a sala do clube de artesanato e, de qualquer forma, ela precisava voltar para casa para trabalhar…

—…buya-san? Shibuya-san? Shibuya-san? — uma voz chamava-a ao longe e, de repente, uma mão surgiu diante de Yukari e bateu três vezes em sua mesa “toc”, “toc”, “toc”, como se estivesse pedindo permissão para entrar. — Shibuya-san, você está conosco ainda?

Yukari piscou surpreendida e ergueu a cabeça para deparar-se com o professor Haruna de pé diante da sua mesa.

—Eu… desculpe-me, não estava ouvindo. — corou, envergonhada por ter sido pega divagando no meio da aula, havia divagado durante o domingo todo também, mesmo tendo dito a si mesma que estava ocupada demais para isso.

O professor Haruna geralmente tinha um tipo quase cruel de senso de humor, daqueles que se divertia torturando seus alunos com montes e mais montes de lição de casa, contando lendas enfadonhas da cidade e constrangendo-os até morte quando os pegava distraídos no meio da aula e dizia coisas do tipo “então por que não compartilha conosco os seus pensamentos?”, mas dessa vez ele limitou-se a dar-lhe um sorriso compreensível, na verdade ele vinha sendo quase excessivamente compreensível com ela nas últimas duas semanas, e disse:

—Você precisa de um tempo para descansar Shibuya-san?

—Não. — Yukari empertigou-se — Eu estou bem, desculpa, não vai acontecer de novo.

O professor olhou-a em dúvida, claramente sem acreditar em suas palavras, e Yukari já podia ouvir os murmúrios ao seu redor alguns dos quais, nada gentis, dizia que Haruna estava claramente a favorecendo, mas então ele pigarreou e disse:

—Tudo bem, se é o que diz Shibuya-san, mas quero falar com você depois das aulas, então me procure na sala dos professores.

—O que? Eu? Tem certeza? — Yukari enrijeceu e disse sem pensar: — E não a representante?

Afinal ninguém ali na sala tinha sua atenção chamada tanto quanto a representante.

De algum lugar da sala Yukari ouvir uma exclamação que era em parte indignação, em parte risada.

—Sim, tenho certeza. — Haruna garantiu, logo antes de hesitar — Na verdade… eu tenho que ir ao clube de investigação paranormal hoje, então me procure lá depois das aulas.

Yukari ficou consternada, sendo convocada à sala dos professores duas vezes no mesmo ano? E se aquilo pesasse em seu histórico e ela não conseguisse uma boa recomendação para estudar em Tóquio depois…?

Quando o sinal do intervalo soou, não demorou até que Kaoru e a representante se aproximassem dela.

—Parece que nossa sempre tão exemplar Shibuya resolveu se rebelar. — A representante comentou sorrindo.

—Eu não estou me rebelando. — suspirou. — Eu só estou…

—Aérea. — a representante completou estalando a língua. — Sim, isso já faz tempo, nós percebemos, e o professor não pode ficar passando a mão na sua cabeça para sempre, nem sei por que ele fez isso no começo.

Kaoru sentou-se ao seu lado e pegou sua mão.

—Yuki, nos diga o que está acontecendo. — pediu.

Yukari engoliu em seco.

—Nada. — mentiu.

A representante puxou mais uma mesa e duas cadeiras aleatórias para junto delas, arrumando tudo para almoçarem juntas, Yukari havia deixado o quimono de Gintsune na máquina de lavar durante a madrugada e o tirado da secadora cedo pela manhã, antes de sair para a escola, mas ainda não havia comprado a linha e o tecido para consertá-lo, então ficou ali mesmo onde estava.

—É sobre o Gin? — a representante interrogou-a abrindo seu obento, Kaoru olhou-a com interesse. — Já é a segunda vez que recebe uma advertência por causa dele.

—A segunda? — repetiu olhando-o com o cenho franzido.

—Também teve aquela vez em que precisaram chamar sua atenção porque ele sempre vinha te pegar na porta da escola, você lembra?

—Eu me lembro. — Yukari piscou — Mas como você sabe?

Ela não havia contado a ninguém a razão pela qual Haruna a havia chamado até a sala dos professores daquela vez.

A representante deu de ombros.

—Eu deduzi. — argumentou — E as notícias correm, havia um membro do conselho estudantil na sala naquele dia e Hiroshin me contou.

—Hiroshin? — Kaoru estranhou.

—O presidente do conselho estudantil, Tanaka Hiroshi. — a representante esclareceu e, virando-se mais uma vez para Yukari, completou: — Não se preocupe, ele não espalhou isso, não é nenhum fofoqueiro, só não podia perder a oportunidade de me repreender. “Será que poderia não influenciar suas amigas, por favor? Elas me parecem boas meninas e os universitários são todos uns okuri-okamis.”

Yukari puxou a respiração e deixou-a suspensa por alguns instantes, sabendo que suas bochechas estavam ficando cor de rosa, ás vezes se esquecia de como as notícias corriam rápido e os boatos tendiam a se espalharem como fogo naquela cidadezinha de fim de mundo.

—Não tem nada haver com ele. — mentiu novamente, enquanto pegava a mochila e procurava o próprio obento como uma desculpa para não ter que encará-las — Ele foi embora da cidade há semanas, e já não sei nada dele desde então.

As três ficaram em completo silêncio enquanto arrumavam seus almoços sobre a mesa e se preparavam para comer, e Yukari fingia não reparar nos olhares que as duas trocavam entre si.

—Então vocês terminaram? — Kaoru perguntou de repente.

Yukari quase quebrou os hachis.

—Nunca começamos nada para que possamos ter terminado qualquer coisa. — respondeu olhando-a com o cenho franzindo — Caramba Kaoru, você sabe quantos anos aquele cretino tem? — só para começar ele passava bem longe da idade de um universitário, mas quando Kaoru corou e encolheu os ombros com um gesto desconfortável, Yukari suspirou e tentou falar em tom mais brando: — Se houvesse algo dessa natureza entre nós, eu teria contado.

A representante abriu uma garrafa térmica serviu um pouco de chá usando a tampa como copo e o ofereceu a Yukari.

—Talvez ele volte um dia. — comentou.

Yukari aceitou o chá e não disse mais nada.

Quando as aulas terminaram, ela já estava a menos de dez passos da sala dos professores quando se lembrou de que o professor Haruna, na verdade, queria vê-la na sala do clube de Investigação Paranormal e deu meia volta, ela não tinha muita certeza sobre a localização da sala do clube, mas sabia qual andar era designado para a maioria dos clubes que não precisavam de uma sala especial, então se dirigiu para lá e, uma sala após a outra, seguiu lendo as placas até parar diante da porta certa.

Suspirou e mal havia tocado na porta quando ela abriu-se num rompante, quase a atingindo.

—Olá, veio conhecer o clube? — o presidente Takeru perguntou-lhe com um olhar tão frenético como se houvesse bebido várias xícaras seguidas de café expresso.

—Não, eu estou procurando pelo…

Mas antes que concluísse o que dizia, foi agarrada pelo pulso e puxada para dentro da sala, a porta bateu com um estrondo às suas costas.

A sala do clube parecia-se com uma sala de aula normal, mas havia pilhas de carteiras e mesas escolares empilhadas ao fundo, várias fotos e recortes de jornais e revistas estavam grudados na lousa, pesadas cortinas negras pendiam das janelas, mas estavam abertas permitindo que a luz do sol entrasse, com armários de ambos os lados das janelas e das portas, e uma grande mesa no centro, coberta de xícaras, folhas de papéis e… alicates e contas? Eles estavam fazendo bijuterias ali?

—Eu sabia! — exclamou o presidente do clube, claramente sem reconhecê-la nem por um segundo sequer — Eu sabia que com a terrível raposa à solta as pessoas finalmente se dariam conta da importância do clube e viriam até nós!

—Não que estejamos felizes com isso, a fuga da raposa é uma catástrofe. — Oda Takeru, tão sombrio e quieto quanto da última vez, acrescentou cuidadosamente.

Ele estava sentado a longa mesa no centro da sala e era a única outra pessoa li além do presidente.

—Não, claro que não! — o presidente Takeru negou de imediato — Mas sente-se, jovem senhorita, e me diga: que tipo de interesses tem pelo paranormal?

—Não, eu…

—Aceita um pouco de café ou chá?

O presidente interrompeu-a já se encaminhando a uma mesa pequena sob a janela, onde havia uma chaleira elétrica, um prato com biscoitos, vários copos de papel, colheres de plástico e saquinhos de chá usado espalhados.

—São instantâneos. — Oda-kun acrescentou de sua ponta na mesa, sem prestar atenção nela enquanto digitava em um notebook.

—Mas é fresco! — o presidente apressou-se — E temos biscoitos se quiser!

—Estão murchos. — Oda-kun comentou.

O presidente lançou um olhar desesperado ao companheiro de clube, logo antes de virar-se ansioso para Yukari, que ainda estava parada perto da porta.

—Por que não se senta? — convidou mais uma vez — Eu só vou pegar o formulário para você preencher.

—Nada disso é realmente necessário. — Yukari ergueu as mãos — Só estou procurando pelo professor Haruna.

—Não, isso não é necessário. — o presidente do clube começou a mover-se pela sala em direção a um dos armários — Você pode preencher o formulário agora e depois o nosso professor monitor vai…

—Não. — Yukari o interrompeu e, tentando falar o mais claramente possível, continuou: — Não estou aqui para me inscrever no clube, o professor Haruna me chamou porque eu não estava prestando atenção na aula. — agora ela tinha conseguido atrair até mesmo a atenção de Oda-kun, que deixou o notebook de lado, respirou fundo: — Então só quero pegar minha advertência e ir para casa.

Terminou de dizer bem quando a porta ao seu lado abriu-se e o professor Haruna enfiou a cabeça por ali.

—Ah, Shibuya-san, aqui está você, desculpe o inconveniente de fazê-la vir até aqui.

O presidente do clube o apontou ultrajado.

—Professor! Pare de trazer seus assuntos de trabalho para cá, estamos tratando de coisas sérias aqui! A terrível raposa de Higanbana se libertou e esse clube de investigação paranormal pode ser a única coisa entre ela e a completa aniquilação da cidade.

Oda-kun tossiu.

—Na verdade, meu pai esteve falando com Kobayashi-sama, do templo de Inari e…

—É isso! — Takeru-kun se voltou frenético para o colega de clube — Ela sabe que somos uma ameaça, por isso vem atrás de nós, e Hana foi a primeira, Oda você pode estar ligeiramente mais seguro porque mora em um templo, mas eu certamente serei o próximo!

—Presidente, será que está se escutando? — Oda-kun suspirou.

Foi quando Yukari sentiu alguém cutucá-la no ombro.

—Shibuya-san. — professor Haruna chamou-a baixinho, gesticulando para ela — Ah, sinto muito por isso, eu esperava que pudéssemos conversar antes de os rapazes chegarem. — desculpou-se assim que ela o acompanhou para o lado de fora — Eu deveria saber que não daria certo, desde que eles estão tão agitados que têm vindo todos os dias ao clube, inclusive naqueles que supostamente não há atividades.

—Hum… tudo bem. — assentiu, sem saber muito que dizer.

—Eles tentaram recrutá-la? — perguntou com um sorriso bem humorado.

Yukari franziu o cenho.

—O presidente Takeru já estava pegando os formulários. — admitiu.

—Ah, claro que estava. — Haruna soltou o ar pelo nariz com força, com uma risada mal contida. — Sinto muito, Shibuya-chan, mas acontece que Shimura-chan e Mori estão em seu último ano, então precisarão sair do clube até as férias de inverno e, depois disso, Oda-kun será o único membro restante, por isso se ele não conseguir pelo menos mais dois novos membros até o final da próxima primavera o clube será fechado. — deu de ombros com um suspiro — Pode-se dizer que estão um pouquinho desesperados por membros então.

Yukari franziu o cenho, na verdade mais do que desesperado, ela também havia achado o presidente daquele clube um pouco maluco.

—Entendi… mas e quanto àquilo que estavam falando sobre a aniquilação da cidade? — perguntou por fim.

—Ah claro. — as sobrancelhas do professor se ergueram e um brilho estranho, muito semelhando ao brilho de insanidade que Yukari jurava ter vislumbrado nos olhos do presidente Mori, surgiu ali — Foi justamente por isso que a chamei aqui!

—O que? — recuou um passo, não muito certa de como deveria interpretar aquilo — Achei que tivesse sido chamada porque tenho estado distraída durante as aulas há semanas.

—O que? — por um momento ele a encarou tão confuso quando Yukari tinha certeza que ela própria o estava encarando — Ah não, isso eu posso compreender perfeitamente, afinal quem não ficaria abalado depois de… se bem que não é algo que se possa explicar, então é melhor fingirmos que eu realmente lhe chamei atenção por isso caso alguém pergunte. E diga também que a ameacei com uma advertência da próxima vez.

—Claro… — franziu o cenho mais um pouco — Então por que fui realmente chamada?

O professor olhou para os dois lados do corredor e até espiou brevemente pela janela de vidro da porta da sala que estava logo ali para ter certeza de que ninguém os estava escutando, antes de inclinar-se em sua direção e sussurra-lhe:

—Quero lhe perguntar sobre a raposa de Higanbana, é claro!

—A raposa de Higanbana. — repetiu impassível, agora também não sabendo muito que pensar a respeito daquilo.

—Sim, afinal não posso contar o que sei ou o que suspeito para as crianças, graças à maldição que Gitsune-sama jogou sobre mim. — ele afirmou cruzando os braços com um sorriso, como se não soubesse se deveria estar assustado ou extasiado por ter sido amaldiçoado por um youkai em carne e osso — Não vou lhe pedir para falar para eles, Shibuya-san, mas eu preciso saber, hã… — hesitou — Ele não jogou nenhuma maldição estranha em você também, jogou?

—Claro que não! — por um momento a voz de Yukari ergueu-se, tamanha a surpresa daquela pergunta, e ela cobriu a boca com a mão. — Ah desculpe.

Murmurou olhando a volta.

—Está tudo bem. — o professor sorriu, sem conseguir esconder a expectativa no rosto — Então talvez você possa me dizer, quer dizer, a estátua de raposa se quebrou e a praça parece ter sido atingida por um tornado, então todos sabem que a raposa de Higanbana se libertou, mas e o resto, realmente foi ela?

—Resto? Que resto?

Haruna gesticulou em círculos com a mão no ar.

— Um pouco antes de Gintsune-sama… ir. — olhou-a cuidadosamente antes de continuar — Houve uma série de pequenos infortúnios na cidade, como talvez você se lembre, como aquele terremoto…

—Estamos no Japão, aqui há sempre terremotos.

—Pessoas acidentadas, segundo os jornais a cidade registrou uma média inacreditável de crescimento de 30% nos casos de pessoas acidentadas que deram entradas no hospital, sabia?

—Eu não sabia.

—E aqueles outros acidentes, foram tantos em tão pouco tempo que as empresas de seguro já estavam cogitando se haveria algum tipo de golpe novo em andamento, não se falava de outra coisa nos jornais, ah claro, e aquele grande apagão!

—Eu não costumo assisti os noticiários. — disse em tom de desculpas, na verdade quase nunca assistia televisão — Mas me lembro de tudo isso.

Confirmou ainda sem conseguir entender onde o professor queria chegar.

—Certo, certo, e depois aquele raio atingiu o túmulo de Kobayashi Akio.

—Quem?

—O exterminador que prendeu a raposa. — as sobrancelhas do professor se arquearam — O túmulo dele fica no templo de Inari, onde serviu até o fim da vida depois de ter cumprido com seu propósito, rezando pela alma da irmã e espiando por todos os sentimentos de ódio e vingança que carregou no coração durante aqueles anos… você não sabia? — quando Yukari balançou a cabeça, Haruna suspirou — Parece que eu não ensinei nada a vocês, mas tudo bem parece que a maior parte das pessoas já se esqueceu dessa parte da lenda. — dizia como se não fosse ele aquele que viera de fora ali e ela aquela que nascera e crescera naquela cidade — De qualquer forma, os garotos começaram a pensar se talvez tudo isso não foram presságios para nos alertar da libertação da raposa, aí comecei a pensar, Gintsune-sama foi embora no mesmo dia em que a estátua se quebrou, e ele nos disse que “sempre haveria uma raposa na cidade”, então e se ele também estava pressentido algo Shibuya-san? Talvez tenha sido por isso que ele foi embora: porque algo muito mais poderoso e antigo estava prestes a vir à tona, e resolveu fugir.

—Ah. — Yukari só conseguiu dizer isso.

Talvez Gintsune realmente estivesse tendo algum pressentimento. Refletiu consigo mesma relembrando como ele havia agido estranho durante aqueles últimos dias antes de dizer adeus, acompanhando-a com aquela forma de criança para todos os lugares quando saía, segurando sua mão e… ah espere, era ela quem segurava a mão dele, mas mesmo assim era como se ele tivesse certeza que alguma coisa aconteceria com ela se ele não estivesse por perto, embora tenha tentado fingir que estava tudo bem o tempo todo… e aí simplesmente se afastou, disse que sairia para fumar e ressurgiu só para dizer “adeus” mais tarde.

Ás vezes ela esquecia. Refletiu também. Mas ele com certeza era canalha o suficiente para fugir a abandonar todos à própria sorte se sentisse um perigo daqueles.

E tudo isso poderia ser verdade. Suspirou. Se ela não soubesse o que realmente aconteceu.

Seja qual for o pressentimento que Gintsune estava tendo, ou a razão para ele ter ido embora naquela vez, não tinha nada haver com a raposa de Higanbana, já que ela havia sido justamente a razão para seu retorno imediato e ele próprio a libertara, pois ela era sua irmã e era óbvio que até então ele não fazia a menor idéia de que ela estava ali.

—Eu não sei nada sobre presságio algum.

—Ah… ah, entendo claro. — o professor ajeitou os óculos, talvez não tentando parecer muito decepcionado — Mas e depois?

—Depois?

—É verdade que tudo se acalmou desde que a estátua quebrou, mas você deve ter ouvido falar, não se fala de outra coisa na escola e na cidade inteira na verdade, logo depois houve aquele pequeno deslizamento e o rio tem estado mais cheio do que o de costume, então estão dizendo que é a raposa se vingando… — mas conforme ele ia falando, Yukari seguia balançando a cabeça, sem demonstrar conhecimento de nada daquilo, havia estado muito concentrada (ou o certo seria desconcentrada?) nas semanas anteriores para prestar atenção em qualquer uma daquelas coisas — E agora tem também o que aconteceu ontem no restaurante Daruma, e hoje na casa da Shimura-chan…

—O que aconteceu?

—Houve uma pequena explosão ontem na cozinha do Daruma, por sorte ninguém se feriu, os funcionários sentiram o cheiro de gás, evacuaram o lugar e chamaram o corpo de bombeiros, mas então tudo foi pelos ares e hoje… — O professor deu um sorriso incerto e esfregou a nuca parecendo, pela primeira vez, incerto sobre o que deveria falar ali. —A… família de Shimura-chan também tem uma pousada com termas como a sua, Shibuya-chan, bem, não exatamente como a sua, não é tão grande e eles não têm uma casa de banhos, ao invés disso gerenciam um restaurante, é a Hospedaria Zembou Sakura, mas em fim… — fez uma pausa para pegar ar — Hoje cedo pela manhã, um incêndio começou na Zembou Sakura. — Yukari prendeu a respiração — E eu não tenho maiores informações, mas… parece que o incêndio começou nas cozinhas do restaurante, já consumiu todo o restaurante e atingiu parte da hospedaria, acho que um pedaço já desabou também, não sei sobre feridos ou…

Sem perceber Yukari começou a recuar, sabia que nada daquilo era culpa das raposas, elas haviam estado adormecidas e frágeis em seu quarto durante todo aquele tempo, não poderiam ter feito nada disso, e o incêndio naquela manhã… Gintsune era um cretino que estava sempre pregando peças e roubando por ali, e não via problema em brincar com os corações das pessoas, mas nem mesmo ele poderia ter feito algo tão horrível, ele não poderia, ele não faria! E a irmã dele… Yukari não a conhecia ainda, mas Gintsune havia lhe falado sobre ela, linda e gentil, não fora o que dissera? Nobre, uma dama, e ela havia se sacrificado por ele e… tentado matá-la no segundo em que acordou, Gintsune havia intercedido, pedindo que não a matassem como um favor por ela tê-los abrigado, mas… não, ela não teria feito isso também, Gintsune não teria libertado uma coisa tão perigosa assim, mesmo que fosse a irmã dele… não é?

Yukari engoliu em seco.

—Isso não foi obra de raposa alguma. — ouviu-se dizendo — Nenhuma dessas coisas, elas foram apenas fatalidades, não foi nenhuma raposa!

—Ah, certo, que bom. — Haruna sorriu relaxando e, de repente, Yukari se deu conta de que ele também estava apreensivo sobre a natureza e periculosidade das raposas, agora que sabia que eram reais e tinha certeza de que ainda havia pelo menos uma na cidade.

—Eu… preciso ir agora professor, tem umas compras que quero fazer antes de voltar para casa.

—Sim, é claro. — ele afastou-se para o lado para lhe dar passagem — Desculpe tê-la detido aqui por tanto tempo Shibuya-san, eu só tinha que perguntar.

—É claro. — concordou enfática. — Com licença.

E então fugiu correndo dali.

Estava atrasada, disse a si mesma, precisava comprar linha e tecido para consertar o quimono de Gintsune. Ele não havia feito nada de mal… pelo menos nada tão terrível assim, nem a irmã dele.

Já era final de outubro, então o clima havia esfriado consideravelmente, mas ainda assim Yukari mal notou as gotas geladas de chuva que se precipitavam quando saiu correndo da escola, agarrando à mochila… ao contrário de Momiji que, sentada a beira do pequeno lago de carpas, desde a queda das primeiras gotas ergueu o rosto fechando os olhos e sentindo com prazer cada uma que tocava suas bochechas e pálpebras.

Durante todo aquele tempo perdido na escuridão, parecia que a maior parte de seus sentidos havia se embotado, pois ali ela não era capaz de sentir, frio, fome ou sono, somente a solidão e um crescente desespero e desesperança aos quais ela tentava a todo custo sufocar, sempre dizendo a si mesma que estava ali por ele, e que quando a hora chegasse ele viria buscá-la… e assim que se vira livre tudo viera a tona como uma onda ameaçando engoli-la: O terror da solidão e da escuridão eterna, o medo de jamais voltar a ver a luz do sol, o alívio por poder ver seu precioso príncipe novamente e comprovar que ele estava bem, e a fome intensa que a consumia… ela estava faminta.

Na verdade teria comido cada uma das carpas daquele lago ainda vivas se o irmãozinho não a tivesse detido.

—Esse lugar é o lar da família de Yukari, irmã, os peixes são mascotes da avó dela. — explicou — Ela me ajudou e nos abrigou, eu não tenciono lhes causar nenhum prejuízo.

Ah… ele sempre havia sido assim, tão gentil e carinhoso.

E seu irmãozinho, sempre atencioso, se prontificara a buscar algo para ela comer imediatamente, mas ela agarrou suas mãos e não o deixou partir, não queria ficar sozinha novamente, não quando aquela terrível escuridão se adensava sobre suas cabeças e, mesmo com as chamas de seu irmão queimando em torno deles, ameaçava cada vez mais engoli-los… e se tudo fosse um sonho?

E se seu precioso príncipe não estivesse realmente ali e, na verdade, ela nunca mais fosse ver a luz do sol novamente?

Então se agarrou a ele, e não o deixou que a abandonasse até que o sol raiasse novamente.

Era bom também que To-chan houvesse feito aquele pequeno território para ela, pois havia tantos humanos ali que do contrário, mesmo sob as suplicas do irmão, ela certamente teria fulminado cada um deles, parecia que estavam em algum tipo de hospedaria humana e por isso havia tantos.

Suspirou.

Mesmo que não pudesse vê-los e nem eles a ela, ela ainda podia senti-los, era como insetos rastejando por debaixo de sua pele, esse pensamento asqueroso a fazia estremecer, mas os humanos, por mais prosaicos que fossem em sua maioria, também pareciam capazes de senti-la e ao decorrer do dia instintivamente haviam evitado se aproximar daquele canto do jardim onde ela se acomodava.

E agora aquela tão bem vinda e abençoada chuva parecia não apenas lavar-lhe todas as incertezas, mas também varrer para longe aquela ralé humana.

Momiji abriu os olhos quando sentiu a chuva parar de cair.

—Não, ainda não… — lamentou-se.

Uma mão pousou em seu ombro.

—Irmã. — Tô-chan havia retornado, havia sido ele quem tinha fechado o território para a chuva também. — Ainda vai chover pelo resto do dia, eu lhe garanto, mas você precisa comer agora.

Ele estava de pé logo atrás dela e, um pouco mais além, duas cópias dele arrumavam para ela um novo banquete, tal como no dia anterior: vários pratos, travessas e garrafas, contendo peixes, carnes, aves, caldos, doces, frutas, legumes, sucos, chás e tantos outros tipos de refeições que Momiji sequer era capaz de reconhecer, mas aquilo que realmente chamava sua atenção e a deixava intrigada eram as estranhas roupas que seu irmãozinho vinha usando desde o dia anterior, pois era o conjunto mais estranho que já havia visto.

Ela ainda não havia feito nenhum comentário até então, mas não conseguia deixar de olhar.

As mangas da camisa e as pernas das calças eram tão estreitas que faziam seus braços e pernas parecerem finos e longos de uma maneira pouco comum e não apenas isso, concluiu estendendo a mão e esfregando a ponta dos dedos na calça para sentir sua textura, logo abaixo do joelho esquerdo, mas também era feito de um material completamente desconhecido, a única coisa que parecia certo era um grande chapéu feito de palha que pendia da parte de trás de seu pescoço.

—São algumas das roupas que os humanos andam usando atualmente. — ele lhe explicou sorrindo de lado e estendendo-lhe a mão para ajudá-la a levantar.

Momiji o analisou de cima a baixo.

—Elas lhe caem bem. — elogiou, nunca havia visto algo que não ficasse bem em seu precioso príncipe.

To-chan ajudou-a a se acomodar em um lugar sob a cerejeira.

—Os tempos mudaram bastante irmã… — começou a dizer.

E então, ele contou a ela sobre as maravilhas e os horrores das transformações do mundo humano durante aquelas décadas, suas máquinas, seus “mangás” e seus doces, e era maravilhoso poder ver novamente o entusiasmo do irmãozinho enquanto ele falava-lhe de tudo isso — afinal To-chan e a mãe sempre haviam tido fascinação pelos humanos — e enquanto o ouvia, Momiji continuava a comer e comer, e comer, mas era como se estivesse se alimentando de ilusões e vento, pois nada parecia preencher o vazio que crescera em seu interior devido ao seu jejum prolongado.

—A essa altura o velho já teria devorado uma dúzia de humanos. Não é mesmo? — To-chan comentou de repente, observando com um sorriso bem humorado os poucos pratos ainda restantes, como se pudesse ler seus pensamentos.

—Ou meia dúzia de sacerdotes, humanos com poderes sobrenaturais sempre foram mais nutritivos. — ela concordou limpando os lábios com um lenço, antes de estender a mão a uma tigela com macarrão, legumes e pedaços de peixe flutuando em um caldo espesso — Há algum templo nas redondezas?

—Alguns. — confirmou. — Mamãe sempre reclamava por ele comer humanos, mas nunca parecia chateada de verdade, não é? Exceto quando ele devorava monges, sacerdotisas e exterminadores, aí ela ficava nervosa de verdade, se lembra disso?

Momiji anuiu.

—Ela dizia: “se está realmente tentando nos proteger pare de matar os servos dos deuses ou seremos amaldiçoados!”. — olhou novamente para os pratos dispostos a sua frente, a maioria já vazios, mas ela ainda estava longe de ficar satisfeita e To-chan não havia comido nenhuma mordida — Você devia comer.

—Humanos?! — ele assustou-se.

—Não. — fez um gesto amplo indicando a refeição diante deles — Coma também.

—Não, eu trouxe para você, irmã.

—Mas você também tem que comer. — indicou os pratos mais uma vez e ordenou: — Coma.

Poucas vezes seu irmão mais novo havia sido capaz de contrariá-la e aquele foi um desses raros momentos, quando ele sentou-se de costas eretas e afirmou resignado:

—Eu já comi, essa é a sua refeição irmã.

—Quando comeu pela última vez?

—Mais recentemente que você. — garantiu, e então pegando uma das mãos dela entre as suas garantiu: — Eu vou caçar para mim mesmo mais tarde.

Não era a resposta que queria, mas era o máximo que conseguiria, To-chan ficava simplesmente impossível quando se tornava irredutível daquela forma, então concordou e terminou de comer o que ainda havia diante de si.

—Por que não me fala um pouco mais sobre o mundo humano? — pediu.

Os humanos e suas geringonças não a interessavam nem um pouco, mas era encantador ver como os olhos de To-chan brilhavam enquanto ele contava-lhe sobre roupas e jogos e “máquinas de lavar”.

—O mundo está realmente mudado. — Comentou em parte admirada, em parte decepcionada, enquanto as cópias de To-chan recolhiam os restos da refeição e ela olhava para toda a construção à sua volta, onde antes só havia uma colina de campos verdes, árvores e fontes termais, até que seu olhar deteve-se na cerejeira ao seu lado. — Mas estou feliz que você ainda está aqui, velha amiga.

Sua mão espalmada pousou no tronco com carinho, e ela declarou:

Quantas memórias

me trazem à mente

Cerejeiras em flor.

As sobrancelhas de To-chan se arquearam.

—Conhece essa árvore, querida irmã?

—Quando cheguei a essa região ainda era o auge do verão, mas quando a primavera começou a se aproximar eu procurei por um lugar de onde pudesse ter uma boa vista de todas as flores florescendo… essa região ainda é bela e florida?

—Sim.

Ela suspirou aliviada e continuou:

—Que bom que os humanos não devastaram tudo ainda, naquela época um grupo de homens insolentes subiram essa colina com ganância e ferramentas, eles começaram a escavar e destruir tudo ao meu redor enquanto eu observava de cima da cerejeira, causei alguns tantos acidentes e infortúnios, mas essa raça sempre foi mais perseverante do que as baratas, então um deles veio com um machado em direção à cerejeira… — passou a mão lentamente para cima e para baixo naquele tronco, procurando pela marca do tal machado — Eu fulminei-o com um raio. — deu de ombros — Todos ficaram muito surpresos é claro, afinal era um dia claro de primavera, e quando olharam para cima pode ser que tenham me visto, não tenho plena certeza, mas fugiram apavorados bem depressa, como os vermes que eram.

Quando terminou seu relado e olhou novamente para o irmão, ela não compreendeu a expressão dele, porque ele parecia tão chocado?

—Você atingiu com um raio o homem que tentou cortar essa cerejeira? — ele perguntou próximo da incredulidade.

—Sim. — respondeu já se sentindo incomodada com a forma como ele a olhava — Mas eu queria vê-la florir na primavera, e aqueles reles humanos…

De repente seu irmão agarrou ambas as suas mãos e as puxou para junto do peito.

—Irmã, você é a Dama da Cerejeira!

Dessa vez foi Momiji quem o olhou com incredulidade.

—Quem?

—É uma história que Yukari me contou algum tempo atrás…

Sorrindo, seu auspicioso príncipe abriu o território e permitiu que a chuva caísse novamente sobre os dois, enquanto ele lhe contava uma lenda antiga daquela região, sobre uma bela mulher que protegia àquela cerejeira, dormia entre seus galhos e fulminava os insolentes.

—É um absurdo! — afirmou apertando os lábios e puxando as mãos de volta — Eu nunca dirigi a palavra a qualquer um daqueles reles humanos, e tampouco me rebaixei a implorar a eles!

—Eu sei disso. — ele concordou sorrindo, com os cabelos molhados grudando-se na face — Mas você sabe como são os humanos, irmã: sempre fantasiando e criando histórias. E sei que vai perdoá-los por isso, afinal esse é um dos poucos aspectos que admira neles.

Momiji calou-se, ela e o irmão observaram a chuva cair e uma carpa saltar no pequeno lago, ainda era de manhã quando ele lhe trouxe aquela refeição, mas mais da metade do dia já havia se passado agora… e ela continuava faminta.

—Já deve estar quase na hora de Yukari sair da escola. — Tô-chan comentou de repente.

Aquela garota novamente?

—Como disse? — Momiji virou-se.

—Já deve estar quase na hora de Yukari sair da escola, e como está chovendo eu deveria… — ele começou a fazer menção de se levantar, mas quando viu o olhar intrigado de Momiji, sentou-se novamente e pigarreou — Digo, tem mais algo que queira irmã? Ainda está com fome, não é?

—Estou… — admitiu.

—Eu vou trazer-lhe roupas novas também. — ele prontificou-se de repente — Nada tão banal, é claro. — indicou as próprias roupas — Mas algo digno! Os melhores tecidos, eu conheço um ótimo lugar!

—Eu recebi esse uchikake das criaturas que habitavam essa região no meu último outono, poucos dias antes de encontrar aquele homem, e deixei o antigo em um templo, mas… sim, eu gostaria de roupas novas.

—E algo mais?

—Material para cosméticos. — admitiu — A minha pintura labial já está quase no fim.

—Sim, é claro. — ele concordou — E poderíamos tomar um banho também.

—Um banho?

—Esse lugar é uma casa de banhos. — ele explicou sorrindo.

Momiji colocou-se de pé imediatamente, com as mãos fechadas em punho na altura do peito.

—Uma casa de banhos humana. — sibilou.

Eletricidade estalou em seu entorno.

—Não, espere… — To-chan engoliu em seco e levantou-se com cuidado, entendendo a mão cuidadosamente em sua direção — Não estou dizendo para tomar banho com humanos ou se banhar na mesma água de banho deles, eu jamais diria isso, mas… poderíamos usar os balneários depois do horário de funcionamento, eu limparia tudo para você, é claro, e também há fontes termais naturais, se preferir.

Momiji suspirou relaxando os braços.

—To-chan. — chamou — Você é meu irmão mais novo, não precisa cuidar tanto assim de mim, e não quero que me sirva. Nem a mim e nem a ninguém. Entendeu?

—Mas eu estou aqui com você agora. — ele sorriu alegremente — Não precisa mais se preocupar com coisa alguma, irmã, eu vou cuidar de você.

Momiji tocou a testa com a ponta dos dedos, ele não tinha entendido coisa alguma.

A chuva acabou parando um pouco depois das 17h e o clima frio foi um ótimo incentivo para muitas pessoas virem procurar as casas de banho Shibuya, e não apenas isso, mas muitos hóspedes desalojados da Hospedaria Zembou Sakura não puderam encontrar meios de voltarem imediatamente para casa e precisaram recorrer a outras pousadas, incluindo à Pousada Shibuya e, somado aos hóspedes com os quais já contavam anteriormente, agora o prédio trabalhava com 94% de sua carga máxima e havia mais hóspedes ainda agendados para os próximos dias, então o pai de Yukari precisou fazer algumas de suas ligações para contratar com urgência pelo menos mais uma dúzia de empregados temporários, entre nakais, ajudantes de cozinha e recepcionistas, ele estava tão frenético em suas contas e planilhas que a avó dela precisou praticamente arrastá-lo do escritório para fazê-lo jantar com a família, porque isso era algo do que ela não abriria mão… assim como ele não abriu mão de levar o computador para a mesa.

O que deixou a avó bem irritada, mas Yukari duvidava que o pai houvesse notado, ela nem tinha certeza se ele havia reparado que já havia jantado, ou que agora estava sentado na sala de estar.

—Céus, é o armazém Hayama! — sua avó ofegou quando Yukari entrou na sala — Chiharu aumente o volume.

A mãe de Yukari pegou o controle sobre o braço do sofá e o apontou.

—… 15h50min quando o veículo derrapou na pista molhada e invadiu pela porta da frente do Armazém Hayama. — dizia a repórter na televisão diante de um telão onde se via a fachada do armazém parcialmente destruída. — Mas o vídeo registrado pela câmera de segurança do prédio em frente é impressionante.

Toda a imagem na tela foi substituída por uma filmagem em preto e branco e sem som de uma rua chuvosa e quase deserta, uma bicicleta entrou e saiu de foco, e então um carro, depois um segundo carro apareceu na tela vindo da direção oposta e de repente ele pareceu ser atingido por um poderoso golpe invisível na lateral que jogou o veículo para dentro do armazém, fazendo as três mulheres Shibuya arregalar os olhos.

—Céus! — proferiu vovó Shibuya novamente — Viram isso?

O pai de Yukari em fim ergueu os olhos da tela de seu computador.

—Dois funcionários no estabelecimento e os três passageiros do carro foram levados ao hospital com ferimentos e escoriações leves. — prosseguiu a repórter, enquanto imagens da porta do passageiro, inexplicavelmente amassada para dentro do carro, eram mostradas na tela.

—Que bom que pelo menos não houve mortes. — a mãe de Yukari murmurou.

—Isso é no Armazém Hayama? — Yukari viu o pai franzir o cenho e ajeitar os óculos — Eles são nossos principais fornecedores, é melhor eu ligar para confirmar se ainda serão capazes de nos atender ou se vou precisar buscar outro fornecedor.

—Filho, a sua empatia enche meus olhos de lágrimas. — vovó fungou com ironia.

Mas se ele percebeu a crítica, não demonstrou o menor sinal, e voltou a baixar os olhos para o computador, completando seus registros e cálculos enquanto dizia:

—Teremos dias muito corridos aqui na pousada e precisaremos de toda a ajuda possível, por isso talvez seja preciso que você trabalhe em período integral durante alguns dias, Yuki.

—O que?! — Yukari arregalou os olhos.

O pai nem a olhou.

—Pagarei a mais por isso, é evidente, e amanhã cedo pela manhã eu ligarei para a escola e avisarei sobre a necessidade de sua ausência, é claro, a princípio será apenas durante essa semana, mas se for preciso…

Sem conseguir mais ouvir aquilo, Tsubaki arrancou o controle remoto da mão da nora e o usou para bater na cabeça do filho o surpreendendo.

—Mamãe? — ele ergueu a cabeça para ela, arregalando os olhos e levando a mão ao local atingido.

—Você perdeu a cabeça Daisuke? — a senhora ralhou. — Já não basta ter consumido toda a possível vida social que minha neta poderia ter? Agora ainda quer tirar dela sua educação acadêmica?!

Daisuke franziu o cenho, sem entender o porquê de tamanho escândalo.

—Não é nada disso, mamãe. — ele começou a explicar pacientemente — Nós precisaremos de toda a ajuda possível aqui, e será por apenas uma semana…

—Sim, uma semana hoje, um mês depois e antes que percebamos você estará dizendo para ela trancar os estudos porque suas responsabilidades são com os negócios da família, certo?

—Ouça mamãe, não precisa fazer esse escândalo todo, Chiharu certamente vai concordar comigo que será melhor para a pousada se Yuki…

—E quanto ao que é melhor para Yukari?! — a avó levantou-se, erguendo-se do alto de seu 1,49cm e olhou severamente para o filho sentado no chão, como se ele ainda fosse uma criança — Se precisa de mais uma nakai, mexa nessas suas planilhas e gráficos e contrate oito ao invés de sete amanhã!

Daisuke apertou a mandíbula tão forte que foi uma surpresa quando seus dentes não quebraram, ele concentrou-se na tela do computador novamente.

—Talvez eu precise chamar alguém para ajudar Fujimoto-san na manutenção das caldeiras também, e mais pessoas para a limpeza e os serviços noturnos. — continuou a dizer, como se nada tivesse acontecido — Mas por enquanto, Yuki e Chiharu, hoje é o turno de vocês na limpeza dos banhos e das termas.

A mãe de Yukari assentiu, levantou-se, pegou a filha pelo braço e a levou dali.

Passava um pouco da uma da manhã quando Yukari sentou-se repentinamente na cama.

Ela havia se esquecido de limpar a terma masculina!

Como pudera ter se esquecido?! Sua mãe havia ficado com os balneários e ela com as termas, mas ao invés de cuidar de ambas, Yukari havia limpado somente a feminina e simplesmente fora embora, afinal o que havia dado nela?

Mesmo enquanto corria descalça e sem agasalho direto para a pousada, pegava balde, esfregão e tudo mais, Yukari ainda não conseguia encontrar uma resposta lógica… e aí entrou na terma masculina e encontrou Gintsune repondo as toalhas e os sabonetes na máquina de venda do vestiário.

—Oh, yo Yukari. — ele acenou para ela com a mão enfaixada.

Seu cabelo estava amarrado em um nó frouxo pouco abaixo da altura dos ombros e ele parecia absolutamente normal, mas havia alguma coisa nele que… não estava certo, embora Yukari não conseguisse dizer o que.

—Eu esqueci… — ela deixou o balde no chão — Você está limpando, obrigada.

—Ah sim, na verdade foi culpa minha.

Yukari franziu o cenho e deixou o esfregão dentro do balde.

—O que foi culpa sua?

—Você se esqueceu desse lugar porque eu o limpei de sua mente. — ele fechou a máquina de vendas e a trancou — Fiz uma armadilha de raposa aqui. — parou de falar, a olhando por um instante — Mas parece que seu foco em suas responsabilidades é tão grande que no instante em que desfiz o feitiço, você simplesmente acordou e veio correndo. Admito que estou um pouco impressionado.

—Você fechou a terma — Yukaru piscou desconcertada — para mim?

—Foi.

—Mas… — fez uma pausa, absorvendo a informação — Você nunca me tranca para fora, nem na escola quando foi forçado a revelar parte de sua verdadeira forma, nem quando se isolava no telhado do colégio, nem aqui quando faz uso das termas e dos balneários e nem… nem mesmo na noite em que lutou para libertar a sua irmã.

Mesmo que ele nem a tivesse notado lá até que tudo acabasse.

—Sim, mas agora é diferente. — Gintsune afastou-se e foi sentar-se em um dos compridos bancos de madeira, perto do carrinho de limpeza estacionado logo ali.

—Diferente como? — Yukari franziu o cenho.

—Minha irmã precisava tomar um banho. — ele revelou. — Eu deveria ter oferecido um banho a ela antes, mas fui negligente… ela sofreu tanto por minha causa, eu deveria estar cuidando melhor dela, minha irmã está faminta Yukari, faminta demais depois de todas aquelas décadas aprisionada e eu estive buscando comida para ela… mas isso não é desculpa eu deveria ter oferecido um banho antes para ela, por que eu não…? E nem sequer dei roupas novas a ela, minha irmã precisa de roupas novas.

A expressão de Yukari se suavizou, ela deixou o esfregão no balde e se aproximou.

—Oi… — chamou se sentando ao lado dele. — Não é culpa sua, e tenho certeza que está fazendo o melhor pela sua irmã.

—Não, não, não. — ele inclinou-se para frente e escondeu o rosto entre as mãos — Ela ficou presa por minha culpa.

—É, mas ela escolheu te proteger, lembra? — espalmou a mão em suas costas, podia sentir o calor de seu corpo através das roupas, era realmente ele ali, mas por que ainda parecia que algo não estava certo? — Você faria o mesmo por ela, mesmo se isso a fizesse se sentir mal.

Gintsune a olhou confuso.

—Eu nunca faria nada que pudesse deixar a minha querida irmã mal.

—Mesmo se fosse para salvá-la se sacrificando no lugar dela?

A expressão de Gintsune se contorceu ainda mais, logo antes dele suspirar.

—Tudo bem, mas eu realmente deveria ter oferecido um banho a ela antes… umas quarenta e oito horas antes, para dizer o mínimo, e ela precisa de roupas. — ele insistiu sorrindo de lado e endireitando as costas, Yukari afastou a mão — Sem falar que continua com fome, muita fome, mas eu não posso sair para caçar agora e deixá-la sozinha no escuro. Não de novo.

—Tudo bem. — Yukari uniu as mãos sobre as pernas e entrelaçou os dedos. — É realmente você aqui?

Foi uma pergunta estúpida, e ela se sentiu mais estúpida ainda quando ele a olhou rindo, e balançou a cabeça.

—Seus olhos são bons, Yukari. — elogiou-a. — Você está certa, eu não estou aqui.

—O que? — ela colocou-se de pé, olhando-o sem entender.

Ainda sentado Gintsune abriu os braços, como um ator apresentando-se sobre um palco.

—Essa aqui é apenas uma de minhas cópias. — esclareceu orgulhoso — O meu eu original está com a minha querida irmã no jardim.

Yukari franziu o cenho, na verdade agora que prestava atenção, aquele Gintsune não estava usando o bracelete prateado no pulso esquerdo.

—Ah, você é capaz de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. — relembrou. — Então por que não usa essa cópia. — indicou-o com um gesto de mão — Para ir caçar comida para sua irmã durante a noite?

Ele a olhou surpreso.

—Isso seria absurdo!

—Por quê?

Ele levou a mão ao peito e levantou-se com ar ofendido.

—A irmã não enviou uma cópia dela para se sacrificar por mim, como eu poderia agora enviar uma cópia para fazer algo tão simples quanto buscar-lhe comida?!

—Tudo bem, me desculpe. — ela ergueu as mãos, pedindo trégua — Você realmente pode agir de maneira séria e responsável quando quer.

—É claro, eu sou incrível afinal, mas você já deveria saber sobre isso. — ele sorriu convencido.

A garota cruzou os braços e girou os olhos, mas com esse Gintsune arrogante e narcisista ela podia lidar melhor, então acabou sorrindo no final.

—Você deveria dar um jeito nesse seu ego.

—Por quê? Eu só disse a verdade. — ele sentou-se e cruzou as pernas.

—Está bem. — Yukari sentou-se ao lado dele novamente e admitiu: — Talvez realmente não precise dar um jeito, pelo menos isso continua o mesmo.

Mesmo que fosse só uma de suas cópias ali, ela ainda queria ficar ao seu lado e não tinha vontade de voltar a dormir, havia ficado atônita e furiosa quando ele foi embora e morrido de preocupação com tudo logo depois, mas agora só estava aliviada e feliz por estar sentada com ele como se nada tivesse acontecido… bem, de uma versão dele, pelo menos.

—Olha sobre eu ter te trancado do lado de fora dessa vez…

—Eu sei, a sua irmã estava tomando banho.

—Pois é. — ele concordou — E a irmã é muito sensível com quem pode ou não vê-la, é claro, afinal ela é nobre e linda demais para ser vista pelos olhos de qualquer mera ralé…

—Ralé? — Yukari franziu o cenho.

Ele nem a escutou:

—E mesmo eu estando junto com ela, não posso garantir que conseguiria detê-la rápido o bastante uma segunda vez.

Yukari franziu o cenho e ergueu o indicador pedindo por um minuto.

—Quando você diz que estava com ela… — fez uma longa pausa, se perguntando se realmente perguntaria a seguir o que ela pretendia perguntar e, ao mesmo tempo, se preparando para a possibilidade de que Gintsune talvez olhasse para ela como se fosse uma degenerada (e ser olhada assim por alguém como Gintsune talvez fosse mais do que Yukari poderia suportar), afinal era impossível, não era? Então por que ela precisava tanto perguntar? — Você quer dizer que estava aqui. — apontou para baixo, indicando o vestiário onde estavam — E ela estava ali. — apontou para a entrada da terma logo ali a diante — Não é?

Gintsune a olhou de forma vazia.

Ah, quem sabe ela não fosse mesmo algum tipo de degenerada de alguma forma?

—Não; eu estava lá, tomando banho junto com ela. — respondeu lentamente.

E de repente Yukari soube que não era ela a degenerada ali e sentiu toda a cor fugir de seu rosto por isso.

—Gintsune você está maluco?!

Gritou tão repentinamente que a cauda e as orelhas de raposa de Gintsune se revelaram automaticamente.

—Mas… por que você se alterou assim de repente? — perguntou inclinando-se para trás com os olhos arregalados.

—Céus, ela é sua irmã!

—Hã… eu sei.

—O que você tem na cabeça?!

A cauda de Gintsune se agitou de um lado para o outro, mas suas orelhas estremeceram e se retraíram de volta.

—O que eu… espere. Isso é sobre aquela sua cisma de que não posso tomar banho com mulheres? — o olhar de Gintsune mudou para algo muito próximo daquele que Yukari estava com medo que ele lhe lançasse no começo, mas que agora a deixava completamente ofendida — Yukari, céus, ela é minha irmã!

Yukari agarrou as tranças enrolando-as em volta dos punhos.

—Isso deixa tudo ainda pior!

—Por quê? — Gintsune a olhou surpreso. — Você pode estar um pouco confusa porque é filha única, mas é completamente normal irmãos tomarem banho juntos, até humanos podem compreender, nós fazemos isso desde que éramos filhotes.

—Mas nenhum de vocês é mais crian… filhote! Que seja! — ela puxou as tranças.

—E que diferença isso faz? Nós ainda somos irmãos.

Ele sorriu-lhe, levantando-se e tocando suavemente em suas mãos para fazê-la parar de puxar as tranças… e foi quando seu sorriso morreu repentinamente e ele recuou arregalando os olhos e cobrindo a boca com a mão, e… ele estava corando?

Yukari franziu o cenho.

—O que foi?

—Eu só… — murmurou por trás da mão — Acabei de me lembrar de algo um pouco inapropriado.

Yukari realmente tinha medo de perguntar o que aquela raposa poderia considerar inapropriado, mas começou a falar mesmo assim:

—E o que poderia ser considerado inapropriado para você?

De repente ele virou a cabeça, e começou a olhar de um lado para o outro como se estivesse procurando por alguém.

—Ouviu isso?

—O q…?

Ela nem havia terminado de perguntar ainda e Gintsune já não estava mais lá.

Tudo bem. Suspirou. Ela precisava guardar o carrinho e todo o material de limpeza antes de ir embora.

Momiji estava observando as estrelas enquanto acariciava o pelo macio e quente de seu irmãozinho que estava enrodilhado como uma pequena bola em seu colo, mas baixou o olhar ao senti-lo estremecer e erguer a cabeça, parecendo alarmado:

—To-chan? — chamou pousando as mãos no colo — O que aconteceu?

Seu irmão saltou de seu colo e virou-se voltando à forma humana com uma expressão séria.

—Irmã. Acho que acabei de ouvir alguém chamar o meu nome. — ele sentou-se diante dela — O meu verdadeiro nome.

*.*.*.*

Furin deixou a yunomi no chão com um movimento chateado e impaciente, e Tamaki observou aquilo soprando lentamente à fumaça de seu kiseru.

—Então aquele filhote continua sem respondê-la. — concluiu.

Labaredas azuis queimavam em volta deles e iluminavam a escuridão que antecedia a aurora.

—Continua! — Furin retirou a máscara de raposa branca e cruzou os braços fazendo beicinho. — Eu não fui capaz de ficar irritada antes porque o estado da yunomi me dizia que algo de errado havia acontecido ao meu querido filhote e meu coração de mãe só conseguia ficar preocupado, mas veja agora! — ela apontou acusadoramente com um garra lustrosamente negra para a yunomi que, agora bem desperta, tinha seu único olho bem arregalado e fazia exercícios de alongamentos com as pernas — Ele está ótimo, e ainda assim ignora meu chamado! — suspirou cabisbaixa — Parece que meu querido, lindo e carinhoso filhote ao fim se tornou tão apático quanto a minha linda flor.

Tamaki guardou o kiseru dentro da manga e aproximou-se da esposa, tomando cuidado para não pisar no circulo mágico perfeitamente desenhado por ela ali, e nem em nenhum dos outros apetrechos espalhados quando ofereceu as mãos para ajudá-la a levantar.

—Furin, se acalme. — ele passou as costas dos dedos pela lateral do rosto dela — Você mesma acaba de dizer que ele não estava bem antes, e você também nunca tentou uma conexão com aquele mundo, só tenha paciência.

Quando a beijou ela parecia bem mais tranqüila, e sorriu-lhe.

—Tem razão Tamaki, eu só preciso continuar tentando, certo? — ficou na ponta dos pés e o beijou — E mesmo que nossos dois primeiros filhotes tenham se voltado insensíveis e frios contra o amor dessa carinhosa mãe, pelo menos ainda temos nosso precioso raio de sol.

O marido sorriu acariciando seu rosto e já estava prestes a lhe dar uma resposta — e certamente outro beijo — quando os gritos começaram:

—Volte aqui seu serzinho pestilento! — gritou um dos filhotes de tengu.

Anko surgiu correndo, com sua forma de filhote de raposa, pisando e borrando o circulo mágico feito pela mãe, enquanto era perseguido pelo filhote de tengu mais velho, que estava completamente lambuzado com algo grudento e coberto com uma camada de pó branco e misterioso enquanto tinha as asas amarradas nas costas.

—Seu marau desprezível! — um pires com água se quebrou sob os pés do enfurecido meio tengu e a yunomi saiu correndo para se salvar antes que também fosse pisoteada.

Anko correu em círculos em torno dos pais, espalhando pergaminhos para todo lado.

—Irmão para, não é para tanto! — o segundo filhote de tengu gritou vindo voando ao encalço dos dois. — Deixa pra lá!

—Jamais! — o meio tengu mais velho se atirou no chão tentando agarrar o filhote de raposa, mas tudo que conseguiu foi deixá-lo fugir por entre os dedos e se sujar ainda mais com terra e tinta, grunhiu irritado — Não até eu esganar esse pequeno patife ominoso!

Anko sumiu por entre os arbustos, com o meio tengu mais velho correndo furioso atrás dele e o mais novo cortando o céu ao encalço de ambos logo depois.

E tudo voltou ao silêncio.

Furin olhou em volta, para toda a bagunça e destruição deixada para trás e suspirou apoiando a testa no peito do marido.

—Sim, claro, nosso querido e doce raio de sol.


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Notas finais do capítulo

Nossa Yuki pode estar em negação, mas acho que vocês já perceberam o quão longe Gintsune pode ir por sua querida irmã...

Curiosidades do Japão!

O zodíaco japonês — Juunishi:
O zodíaco chinês tem um grande impacto em vários países asiáticos, como a Coréia, Japão, Vietnã, Singapura, Tailândia e Myanmar. Em alguns países, os signos do zodíaco são os mesmos que os chineses, enquanto alguns dos animais podem diferir em outros países.

O zodíaco chinês baseia-se em um ciclo de 12 anos. Cada ano é representado por um animal. Os 12 animais do zodíaco em ordem são: Rato, Boi, Tigre, Coelho, Dragão, Serpente, Cavalo, Cabra, Macaco, Galo, Cão e Porco.

Mas no zodíaco japonês o porco é substituído pelo javali. 

O respectivo animal do ano frequentemente adorna os calendários e os cartões do ano novo.



Homens que são chamados de Okuri-Okami:
Baseado no youkai que escolta pessoas nas montanhas sob o risco de acabar devorando-as, tornou-se comum no Japão moderno, referir-se dessa forma a homens que abordam mulheres jovens fazendo-se passar por gentis e prestativos, mas tendo segundas intenções.



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