Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 3
III: O espião, o forasteiro e o guarda-roupa




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III

O espião, o forasteiro e o guarda-roupa

O rapaz, mesmo solto do agarrão, continuou embasbacado, fitando-o sem sequer piscar. Não se tratava de espanto resumido a Oliveira ser um estranho invadindo seu quarto. O assombro era maior, como se o agente do DOPS fosse um fantasma. Ou um androide de aparência humana dos seriados de quarenta anos atrás, aos quais ele assistia criança – antes do regime proibi-los devido à incômoda analogia dos "senadores biônicos".

— V-v-você é-é-é... – o gaguejar do garoto não levou a qualquer frase coerente.

— Estevão Oliveira, prazer! – o visitante adiantou a apresentação, impaciente com o desenrolar da conversa. – E, considerando o material subversivo estocado no outro quarto anexo a este, você e sua família estão em sérios problemas. É melhor começar a se explicar, principalmente como a passagem secreta elétrica naquele guarda-roupa funciona, e a qual facção da luta armada vocês pertencem!

Contrariamente à ameaça, o jovem aparentou relaxar, os pulmões soltando ar e os braços se esticando até os joelhos, a cabeça mantida baixa como se tivesse medo de encarar o interlocutor. Balançando para frente e para trás os pés usando chinelos de dedo, uma mão esfregando nervosa o cabelo, acabou por revelar:

— Não há facção de luta armada alguma. E aquilo no guarda-roupa não é uma passagem secreta...

Oliveira bufou nervoso, os inexplicáveis raios do dia pela janela contribuindo para fritar seus miolos. Até então abaixado diante do rapaz, reergueu-se com os braços cruzados, acreditando que a pose impositiva o faria de algum modo abrir o bucho:

— O que raios é então?

— Um portal dimensional, direcionado a outro mundo, outro Brasil... – o garoto agitou os braços ansioso, ainda sem levantar-lhe a face. – Um em que a ditadura militar nunca terminou.

O agente quase socou a parede. Não assustava o sujeito apenas por a ele parecer um androide do futuro – o infeliz realmente acreditava que ele era um, só faltando disparar raios pelos olhos.

— Tá me achando com a cara do Bozo, moleque? – Oliveira grunhiu.

— Só notar por suas gírias e modo de falar... – o rapaz cutucou um joelho. – Onde está acostumado a assistir ao programa do Bozo?

— Ora, todas as manhãs, na TV! Recentemente criou um canal no YouTube. Meus sobrinhos até começaram a me perturbar para instalar no celular deles o aplicativo do desgraçado...

— Eu sequer pude vê-lo na televisão. Nesta realidade, o programa do Bozo saiu do ar em 1991.

Oliveira ficou parado, olhando-o sem entender.

— Claro, ainda se usa o termo "Bozo" com outro sentido... – o jovem a seguir ponderou. – Mas melhor ignorar por enquanto. Não quero deixá-lo mais perdido do que já está.

Apesar do semblante carrancudo, um quê de sincera dúvida podia agora ser detectado na testa franzida do agente. Inspecionou ao redor, certificando-se quanto à porta do quarto estar mesmo fechada. Para garantir, girou na fechadura a chave pendendo ao lado de dentro. Ao voltar a falar, o tom de voz saiu mais brando:

— Que besteira de filme de ficção científica é essa?

— Não me leve a mal, eu também descobri por acaso... – esticando um braço até as costas, o garoto apontou ao guarda-roupa ainda aberto. – Minha mãe comprou essa velharia de um antiquário aqui do bairro. Sabe aquelas lojas que vendem coisas raras caríssimas até o preço delas cair por ninguém querê-las mais? O dono nem é brasileiro... Chama-se Max, Max Campbell, ou alguma coisa assim. Meu outro guarda-roupa estava cheio de cupins. A insistência foi grande para trocá-lo e... bem, deu no que deu.

Oliveira caminhou rumo ao móvel lentamente, hesitando vários segundos em pousar a mão sobre sua madeira tal qual fosse artefato alienígena. Num dia normal, já teria concluído que o rapaz estava louco de tanto cheirar lança-perfume ou coisa pior, porém os pontos não fechados em seu caminho até ali contribuíam para dar algum crédito à desvairada história. Primeiro a tempestade elétrica ao atravessar o fundo do guarda-roupa. Depois a percepção de tempo completamente distorcida ao chegar àquele quarto constituindo cópia perfeita, e espelhada, do anterior.

— Como descobriu que essa coisa contém um portal? – o agente questionou vistoriando as portas.

— Brigue com seu pai, assim como todos os dias... – ao fim da frase, ele pareceu desconcertado. – Pegue aquele CD do CPM 22 que você não ouvia há anos e atire dentro do guarda-roupa de tanta raiva. Ao invés de espatifar, o disco solta um estalo elétrico e some. Imagine meu susto quando enfiei a mão pelo fundo e ela também o atravessou!

CPM 22, quase um MR-8... As bandas deste mundo com certeza querem se passar por guerrilhas! – foi o que Oliveira conseguiu pensar.

— Qualquer coisa consegue passar pelo portal – o rapaz continuou. – Objetos, pessoas... Logo percebi que ele leva a outra versão da minha casa, numa dimensão paralela. Não muito boa, aliás.

O jovem cortou a fala receoso, mas a crítica ao regime passou por total despercebida a Oliveira, nada significando diante da constatação absurda de uma situação como aquela ser possível.

— Então, feito um espião, passou a deixar CDs, filmes, revistas e outros materiais deste seu mundo no meu, através do portal... – Oliveira deduziu, uma mão no queixo. – Querendo compartilhar com seus moradores a realidade de um Brasil sem os militares.

— É, é isso aí... – levantado da cama, o rapaz encarava os próprios pés. – Pelas suas leis, eu mereceria o pau-de-arara, né?

— Já estaria morto... – o agente murmurou; embora, dentre a rigidez, brotasse alguma contrariedade.

— Entenda: aqui, nesta dimensão, nós temos plena consciência dos crimes que os militares realizaram! Assassinatos, torturas, toda a censura... Caramba, eles destruíram a economia! Vocês só continuam obedecendo-os por serem mantidos no escuro quanto ao que acontece. Quando soube de um mundo alternativo em que a ditadura não acabou, não pude ficar de braços cruzados. Tinha de fazer alguma coisa, nem que fosse fornecer uma amostra da arte que perdiam por não serem uma democracia!

— Considerando o que ouvi durante o almoço há pouco, nem todos neste seu mundo pensam diferente dos militares...

Agitado, o garoto rodopiou na direção da porta, a seguir voltando-se de novo a Oliveira. Parecia dividido, como se puxado por dois pares invisíveis de mãos disputando-o num cabo de guerra.

— O tal Queirós, que veio almoçar... – mencionou, aturdido. – Achei que ele tinha simplesmente aparecido aqui na frente de casa e sido convidado a entrar. Um amigo da minha mãe. Ou melhor, do meu pai, mais provável. Agora entendo que ele também veio pelo guarda-roupa, e deve ser conhecido seu!

— Meu parceiro no DOPS – a menção ao órgão repressivo fez o rapaz recuar, mas Oliveira ergueu as mãos em apaziguamento. – Preciso encontrá-lo e levá-lo de volta à nossa realidade. Se você prometer recolher todo o material subversivo que despejou no outro quarto e destruir a marretadas esse guarda-roupa, bem... Talvez eu não o enquadre.

Com um sorrisinho, acrescentou:

— Minha jurisdição termina na minha versão do Brasil, afinal de contas.

Encostado à porta, um ouvido colado a ela para escutar o que se passava do outro lado, o garoto respondeu:

— Não é tão simples...

— Por quê? – o ar de Oliveira tornou a irritar-se.

Para explicar, o rapaz voltou-se de uma só vez:

— Sempre temi que este dia chegasse, porém nada fiz, continuando a perambular de uma realidade à outra... Talvez seja meu castigo. Acontece que você é a versão alternativa de alguém que já conheço nesta dimensão, e caso se encontrem... Tenho medo de o paradoxo destruir o universo, ou ao menos deixar doidas ambas as versões.

Intrigado, Oliveira aproximou-se:

— Eu seria uma versão de quem, então?

Ouvindo a inversão de uma clássica frase de outro elemento marcante de sua infância, no caso um filme, o agente testemunhou o jovem esclarecer:

— Você é meu pai.


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