Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 4
IV: O homem no sobrado alto




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IV

O homem no sobrado alto

Oliveira passou instantes sem reação, empalidecendo a ponto de virar um manequim de terno.

Em sua dimensão natal, jamais se casara. Azar com as mulheres, sorte com o governo – este talvez constituindo seu verdadeiro par. As poucas namoradas deram lugar a uma ascendente carreira judiciária, até decidirem que levava jeito para a Inteligência. O processo contra um figurão do Rio, descoberto como cabeça de um esquema do jogo do bicho, certamente ajudara na mudança brusca de carreira. Mais novo e petulante, Oliveira ainda não sabia com quem ou não mexer. O maldito continuava solto. Ele, ao menos, ganhara outro bom cargo e não podia reclamar do salário...

Ser visto como um abutre responsável pelo desaparecimento de pessoas e destruição de famílias, entretanto, era um preço que volta e meia o incomodava. E, mesmo cuidando apenas de investigações, tinha de pagá-lo – os gritos arrancados dos prisioneiros pelos colegas atrás das portas de chumbo aumentando sua dívida.

Já naquele mundo, tornara-se um chefe de família. A mulher na cozinha, completa desconhecida da qual mal ouvira a voz, revelava-se sua esposa – e o garoto por quem até então sentira inegável antipatia era seu filho. Dando asas à vaidade, conseguiu identificar nele alguns dos próprios traços, parte de seu corpo beirando os cinquenta anos retornado à juventude no rosto assustado do rapaz. Uma lástima ser esquerdista – mas constatar que seu "eu" daquela realidade possuía opiniões similares às suas, principalmente no tocante à moral e ao que era "ser homem", fazia-o convencer-se de estar, afinal, do lado correto da história. E seu rebento – não propriamente "seu", e sim do outro Oliveira – devia ter ainda salvação.

— Eu seria incapaz de gerar um filho comunista! – o agente afirmou, mais a si do que ao jovem. – Isso só pode ser má influência da mãe...

— Saia dessa visão torta de Guerra Fria – o garoto murmurou, esfregando as mãos. – Estou mais para um trotskista com sérias inclinações ao anarco-comunismo. Além disso, eu curso Filosofia. Não deveria estar nessa faculdade se fosse dogmático...

— Fala igualzinho a um comunista.

— Quer cortar essa? Temos de achar um jeito de fazer a passagem pelo guarda-roupa voltar a funcionar!

As batidas contra a porta do quarto por pouco não os lançaram para trás. Oliveira recuou estrategicamente a um canto, enquanto o rapaz, imóvel, silenciava-se para ouvir a mãe dizer, abafada pelo obstáculo separando-a do filho:

— Thiago, seu pai quer conversar com você.

O garoto, agora com nome, direcionou rápido olhar ao agente do DOPS, como se subitamente desconhecesse a qual versão do progenitor deveria reportar. A seguir, todavia, centrou a atenção à porta, respondendo num tom tímido e rouco:

— Avise que irei daqui a pouco!

Oliveira, por sua vez, passou a estudar uma possível rota de fuga. Encostado a uma parede, tateou-a com as mãos e pés até esgueirar-se à janela. Espiou através da cortina cor de creme. O quarto ficava no andar de cima de um sobrado, a rua calçada com paralelepípedos lá fora situada a consideráveis metros de queda – e vários ossos fraturados – se ousasse pular. Além disso, o número de curiosos à calçada eliminava qualquer chance de discrição. As alternativas eram esconder-se no próprio quarto, ou avançar aos demais cômodos da casa quando nenhum de seus habitantes estivesse olhando – e para isso Thiago podia muito bem criar uma distração.

— Tudo bem, mas não demore! – a mãe replicou, a voz distanciando-se da porta gradativamente. – Seu pai não quer ficar brigado com você. Devia dar mais ouvidos a ele de vez em quando... E não nos faça passar vergonha. Temos visita, né?

É, talvez não seja influência da mãe... – Oliveira remoeu com sua gravata.

O garoto lançou um olhar perdido ao pai de outra dimensão.

— Vá se acertar comig... digo, com ele! – o agente ordenou. – Eu espero aqui.

Thiago não aparentou muita segurança, mas ainda assim encaminhou-se à porta. Fitou Oliveira uma última vez antes de, resignado, girar a maçaneta e trancá-la pelo lado de fora.

Bufando, o integrante do DOPS sentou-se à cama.

Trotskista, hem? – só então assimilou a palavra, as linhas do rosto enrijecidas devido a estarrecedores arrependimentos. Sim, aquilo despertava lembranças... Do tipo que não gostaria de lembrar.

O soco atirou o sujeito para trás, o lábio inferior rompido num filete de sangue. Oliveira tivera a intenção que ele recuasse, tirando a maldita expressão de triunfo do rosto... Pois bem, ferira-o. Se ao menos aquilo o fizesse colaborar, não deveria recriminar-se pelo excesso de força.

"O que é Lutade?" – voltou a inquirir, o punho pronto para mais um golpe.

O prisioneiro abaixara a face momentaneamente quando atingida, mas lá estava mais uma vez, encarando-o impassível; o olhar determinado escondendo mil segredos que se recusavam a descer até a boca.

"Está perseguindo garotos por fazerem algumas pichações?" – quando o rapaz cantou, não era a música que Oliveira queria ouvir. – "Ou tem medo do que virá depois?".

O agente do DOPS conservou o rosto erguido, certificando-se quanto a não piscar – mesmo com a raiva sentida diante da provocação. Usar aquela máscara por anos e anos lhe conferira alguma prática, afinal.

"Se já não fossem vândalos por seus métodos, usam-nos para propósitos subversivos..." – ele retorquiu. – "É questão de tempo até chegarmos aos seus 'camaradas', e você poderá escolher sofrer mais ou menos no processo!".

A ferida no lábio do rebelde continuava sangrando. Súbito, cuspiu – um pigarro vermelho e espumante indo manchar um dos sapatos engraxados do agente.

"Faz isso com seus superiores também?" – Oliveira indagou menos irritado do que se esperaria, afastando o pé sujo. – "Quem são? Chineses ou cubanos?".

"Somos trotskistas, não alinhados ao socialismo autoritário..." – o prisioneiro murmurou. – "Mas que diferença faz a vocês, não é mesmo?".

Um novo soco de Oliveira tornou a interromper a conversa, dessa vez atingindo o queixo do jovem.

"Ou ficamos debatendo sobre política, ou você diz logo os nomes dos outros terroristas..." – falou, olhando para o relógio no pulso. – "Temos toda a noite pela frente!".

De novo com a cabeça levantada, o subversivo sugou o líquido vertendo pela boca.

O olhar petulante retornou.

— Thiago, por que trancou a porta? – a voz da mãe do garoto puxou Oliveira fora das memórias, simultânea às batidas contra a porta. – Quero entrar para limpar! Você nunca arruma esse chiqueiro...

Calando-se por um momento, o timbre da mulher deu lugar ao estalar de metal. Chaves, circulando num aro conforme se procurava a certa: lidando tanto tempo com celas e detentos, o agente não tinha como confundir o som. O ruído logo cessou, substituído pelo inserir do artefato na tranca.

— Estou entrando! – a mãe avisou, conforme empurrava a porta vagarosamente.


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