Pátria Amada escrita por Goldfield


Capítulo 2
II: Almoço de domingo




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II

Almoço de domingo

O quarto tinha a quase exata disposição do outro vistoriado há pouco, que ficara para trás através do guarda-roupa, estando somente invertido. Aliás, a passagem elétrica – ou seja lá o que fosse – desaparecera, apenas madeira nua divisando os fundos do móvel, com algumas camisas e calças penduradas em cabides. Oliveira tremeu da cabeça aos pés, certo de que aquilo não passava de um sonho devido à exaustão do trabalho, e que logo Queirós o acordaria num pontapé, sentado numa cadeira da casa dos subversivos ou qualquer outro local em que pudesse ter-se apoiado para um cochilo.

Bem, o despertar estava demorando; e continuava a não ter qualquer sinal do parceiro.

Aos poucos, o próprio ar aparentou beliscá-lo quanto àquela ser a realidade, os opositores do regime usando alguma passagem secreta de natureza eletrônica para ocultar aquela parte oculta da residência, para a qual também estendiam suas atividades – os dizeres antigoverno na parede não deixando enganar. A claridade do cômodo lhe pareceu estranha, no entanto; não demorando a notar, através de uma janela, ser agora dia.

Já raciocinava sobre como encarar aquilo de maneira plausível, quando ouviu vozes a alguma distância.

Eram altas, descompromissadas, os donos decerto desconhecendo sua presença ali. Oliveira conduziu a mão direita ao bolso do paletó, pronto a sacar o .38 e enquadrar os subversivos na Lei de Segurança Nacional, ou morrer tentando. Se ao menos levasse um deles ao inferno – lar ideal de todos os comunistas – antes de tombar para suas armas, consideraria seu dever cumprido.

Avançando ao corredor fora do quarto, do mesmo modo reflexo do imóvel do outro lado do armário, ouviu sons de talheres batendo contra louça se somarem à conversa. Avistou uma cozinha, porém não se revelou, ao invés disso perscrutando com as costas apoiadas a uma parede o que seus ocupantes discutiam.

— O frango está mesmo uma delícia! – um homem se manifestou.

— Oh, muito obrigada – o tom da resposta remetia a uma mulher na casa dos quarenta, cinquenta anos talvez. – Quer um pouco mais de farofa?

— Sim, sim...

— O senhor está mesmo só de passagem? Não gostaria de ficar aqui durante a tarde, até o horário do seu ônibus?

— Agradeço, mas não – o sujeito subitamente titubeou. – O trabalho me convoca.

Oliveira esticou a cabeça para além do esconderijo. A mulher loira de avental devia mesmo ter a idade que presumira, depositando suco de uma jarra num copo enquanto sorria amistosa ao seu convidado: ninguém menos que Queirós. Usando o terno de serviço e com a exata aparência de quando sumira, há cinco minutos, dentro do guarda-roupa, o colega de Oliveira tinha diante de si um prato de comida repleto de restos, no qual depositava agora uma coxa de frango. A impressão de desfrutar da refeição há no mínimo meia hora confundiu ainda mais a noção de tempo do recém-chegado àquele lugar – seja lá qual fosse.

— Está vendo? – um segundo homem se juntou ao papo, incógnito a Oliveira, por estar sentado numa cadeira atrás da geladeira, que tapava a visão do agente do DOPS. – Alguém que sabe de suas obrigações. Que não prioriza os prazeres em relação ao trabalho. Você deveria se espelhar nele!

— Vai começar a implicância, é? – quem retorquiu foi um jovem, vestindo camisa preta com o emblema de uma banda de rock enquanto, irritado, levantava-se, contornando a mesa e indo lavar seu prato na pia.

— Virou implicância apontar o óbvio? – o indivíduo invisível se exaltou, subindo o tom. – Precisa de um emprego! Salário, grana! Se mandar desta casa! Talvez se não houvesse escolhido fazer faculdade de maconheiro, já estaria trabalhando e ganhando o próprio dinheiro, como seu primo...

— Agora virou discurso sobre bons costumes!

— Apenas o que significa "ser homem" – a mesa estremeceu, o sujeito batendo nela com um punho. – O país está mudando, filho. Logo não haverá mais espaço para os "vermelhinhos", que querem mamar nas tetas do governo. Precisa se aprumar. Virar gente!

— Não preciso ficar aqui ouvindo fascista!

— Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!

O prato foi solto no fundo da pia, causando forte ruído. Os passos apressados do rapaz vieram em seguida – na direção de Oliveira. Este acelerou de volta ao quarto, dobrando uma cômoda e encolhendo-se num canto. Quando o morador entrou, bateu forte a porta às suas costas, sentando-se na cama.

Vendo Oliveira praticamente saltar sobre si, arregalou os olhos. Ia gritar, mas a palma da mão do agente tapou sua boca. Com o outro punho, segurou-lhe um braço, imobilizando-o. As pupilas do menino giraram nas órbitas, demonstrando tanto espanto quanto confusão.

— Garoto, você vai me explicar o que estou fazendo aqui! – o viajante através do guarda-roupa exigiu. – Já!


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