Poente escrita por Desdemonia Lucitor


Capítulo 4
Outono




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Era o última dia do outono.

Assim como a linha tênue que atava as folhas secas aos resquícios de vida nos galhos das árvores, Sasuke também se sentia sem qualquer estímulo para se agarrar às memórias que lhe serviam de alimento ao coração.

Sakura havia partido de sua vida e de seu jardim, que agora acumulava uma grossa camada de folhas secas e galhos mortos. Mesmo assim conseguiu abrir um sorriso sincero. Tinha lhe dado o direito de saber e escolher o que fazer com a verdade, mesmo que a consequência fosse deixá-lo ao abraço da solidão.

Solidão essa que doía.

Sasuke havia se acostumado com a própria presença através dos anos, sentindo-se satisfeito consigo mesmo. Porém, bastaram os passos do sol, em forma de mulher, em sua direção para que se desse conta do quão vazio era. Um homem hiato que ansiava há séculos para ser preenchido do que ela transbordava.

Amor.

Desde o final do verão sentava-se religiosamente na poltrona de couro próxima da única janela que lhe protegia dos raios solares e ali permanecia até o azul do céu desvanecer. Já havia se convencido de que ela não iria voltar, mas algo em si o colocava todo dia no mesmo lugar.

— Meu senhor… Nós estamos preocupados. — A governanta entrou na sala de música, mantendo certa distância. —  O senhor não desce para fazer suas refeições há dias e alguns empregados estão dizendo coisas sem sentido...

Sasuke suspirou. Estivera tão amargurado que sequer havia se preocupado em manter as aparências diante daqueles que agora preenchiam seu palacete.

— O que estão dizendo, Moegi? — Perguntou sem tirar os olhos dos vitrais.

O vampiro inspirou por um breve momento e percebeu o temor emanando dela. Talvez houvesse sido este o motivo por ter tornado obsoleto o ato de respirar. Tinha repulsa pelo cheiro acre, que em sua iniciação na vida das trevas era tão comum. As vítimas do qual se alimentava cheiravam assim quando percebiam a ameaça inevitável a lhes assolar.

— Estão acreditando em velhas histórias, senhor. — A moça gaguejou.— Estão dizendo que o senhor é um demônio.

— Um demônio... — Deixou que as palavras saíssem lisas por seus lábios, divertindo-se com o peso e veracidade delas.

Sasuke levantou-se de sua poltrona e passou pela empregada ao umbral da sala, inalando a onda excruciante de horror e medo vindos dela. Desligou o próprio sentido e seguiu para seus aposentos. Porém, antes que selasse as portas atrás de si, meneou o corpo para o lado de fora dos portais e se dirigiu à governanta:

— Diga aos empregados que pagarei por todos os direitos que lhes são resguardados, se quiserem partir. — Olhou para ela, inexpressivo. — Irei sair por esta noite e voltarei antes do amanhecer. Não os julgarei se não estiverem mais quando eu retornar.

[...]

Sasuke apreciava a ópera desde os tempos em que a mortalidade lhe impugnava limites. Vindo de uma família abastada, costumes culturais como aquele haviam se tornado intrínsecos em quem era, mesmo tendo morrido para aquela vida e renascido para a morte.

Acomodava-se no camarote de luxo, reservado aos poucos que se engajavam a pagar um preço alto para ali permanecerem por algumas horas. O primeiro ato de “O Fantasma da Ópera” começava e todas as atenções estavam voltadas para o palco.

Mas havia uma exceção.

Quase desfalecida em seus braços, uma jovem suspirava resignada, cativa ao encantamento maldito de seu algoz. Alimentava-se dela sem pressa, limando do anonimato que a escuridão lhe proporcionava.

Ao se saciar, repousou a moça na poltrona de veludo vermelho e limpou-lhe o pescoço, depositando nos discretos ferimentos um pouco do poder curativo que seu próprio sangue carregava. Levantou de seu lugar e, a medida que passava pelos corredores do anfiteatro, deixou suas pupilas voltarem a se refratar e os dentes se esconderem. Ocultou todo e qualquer vestígio de sangue de seus lábios, cumprimentou os funcionários e retardatários que vinham ao espetáculo. Saiu da mesma forma que entrou: extremamente bem recebido, pela porta da frente.

— Você não perde mesmo a classe. — Ouviu a voz surgir ao seu lado quando passou por uma rua arborizada.

Suigetsu afastou uma folha do ombro de seu terno grafite e arrumou os cabelos prateados como a lua.

— Fico me perguntando como você sabe sempre onde me encontrar. — Sasuke mirou os olhos púrpuros do vampiro que agora o acompanhava. Tinha desgosto por aquele costume peculiar de Suigetsu.

— Não existem muitos vampiros por aqui, é de seu conhecimento. — Suigetsu abriu o sorriso escancarado; suas presas brancas poderiam ser vistas mesmo na mais densa escuridão. Diferente da grande maioria de vampiros que Sasuke já havia encontrado, o Hozuki tinha todos os dentes da boca em formato de presa, o que o tornava ainda mais peculiar. — Então, se eu sentir o cheiro de sangue em um lugar como este, não é difícil de deduzir.

As duas figuras seguiram pelo parque com a serenidade que só poderia ser assegurada àqueles que nada temiam. Não estavam distraídos, mas no momento em que Suigetsu parou de repente, Sasuke teve toda sua atenção direcionada ao homem que seguia à frente deles.

— Senhor — Suigetsu o chamou. Seus olhos púrpuros pareciam cravados do dorso do cavalheiro que repentinamente parou para dar atenção ao chamado. — , o senhor tem esposa ou filhos?

— Tenho sim. Esposa e duas filhas. — O homem de aproximadamente quarenta anos respondeu. Aparentava certo receio em ficar parado em um parque escuro, conversando com dois desconhecidos pálidos.

— Não esqueça de dizer que as ama. — Suigetsu disse e logo retomou os passos.

Passaram pelo homem como se não tivessem sequer o visto.Sasuke já havia presenciado coisa parecida nos tempos em que seguiu viagem com o amigo ao seu lado e já não estranhava tal ato.

— Por que você faz isso? — Sasuke o questionou. Era algo que há tempos gostaria de saber.

— Você não gostaria de se despedir se soubesse que era a hora de partir? — Suigetsu o olhou como dissesse o óbvio.

— Eu não sabia que você se ocupava a se importar com essas coisas.

— E eu não me importo.

Apesar do tom zombeteiro e da personalidade agridoce, Sasuke tinha de assumir que o amigo era perspicaz e deveras empático. Talvez tenham sido estes traços de personalidade que o tivessem mantido seguro em todos esses anos como um andarilho pelo mundo.

— E onde está a moça de cabelos cor-de-primavera?

— Longa história. — Se limitou a responder.

— Bom, nós dois temos a eternidade.

Os dois vampiros caminharam até o palacete de Sasuke, banhados pela luz da lua. Ao chegar, Sasuke percebeu o silêncio aterrador do lugar, onde nem mesmo a respiração de um animal noturno poderia ser ouvida.

“Melhor assim”, pensou.

Suigetsu acompanhou o anfitrião amigo até o bar privativo da residência, recebendo de bom grado o copo de whisky tirado direto do barril de envelhecimento.

— Então foi assim que aconteceu. — Sasuke completou a narrativa ao puxar as barras da calça e se sentar ao lado do convidado.

— Essa dama… No fim das contas, amiga de uma Yamanaka. Ameaça dupla, Sasuke. — Suigetsu estirou os braços no apoio do sofá e suspirou. — Se você chegasse a encostar nessa jovem, já era o tratado de paz. Já parou pra pensar nisso?

Atuando como uma consciência externa de Sasuke, Suigetsu trazia à tona outra complicação que o Uchiha esteve negligenciando em todo esse tempo. Tomado pela paixão, era um tolo por completo.

— Seu pai penou muito para amenizar o estrago que Madara Uchiha fez à esta cidade, Sasuke. Qual era mesmo o trato que ele fez com essas caçadoras?

— Poderíamos nos alimentar na cidade, desde que com equilíbrio, e não matássemos ou convertessemos ninguém. — Sasuke comentou com apatia. Em todos os seus três séculos de escuridão não havia sequer chegado perto de qualquer transgressão.

— E quanto àquela outra família de vampiros? Aqueles de sangue puro e malditos por nascimento.

— Hyuuga.— Sasuke relembrou dos vampiros cujo os olhos eram quase transparentes. Até onde se tinha conhecimento, era a única família capaz de reproduzir a maldição através de gerações. — Não vejo nenhum deles há pelo menos cem anos. Acredito que foram povoar um outro condado no mediterrâneo.

— De qualquer forma, o assunto é outro. Com a partida dessa moça, você poupou a si de um problema, e todos nós de uma guerra. Já parou pra refletir no estrago que seria se tivéssemos que bater de frente com essas caçadoras? — Suigetsu bebeu o resto de seu whisky e deixou seus olhos denunciarem o quão vagantes estavam os frutos de sua imaginação. — Já faz tanto tempo que estamos em paz, que eu nem sei mais como seria se eu precisasse pegar em uma espada novamente.

— Não deveria se deixar relaxar desta maneira. — Dessa vez quem dava o puxão de orelha era Sasuke. — Existe uma linha muito tênue entre as caçadoras e nós.

— Odeio admitir, mas você tem toda a razão. — Suigetsu se levantou de uma vez e se dirigiu à saída. — De qualquer forma, é gratificante apreciar os momentos de descanso. Agora, se me permite, preciso me apressar. Karin ainda tem crises de pânico quando tenta dormir sozinha no caixão. Um homem precisa fazer o que é preciso para cuidar de quem ama.

Com o sorriso zombeteiro e o eternizado ar de moleque, Suigetsu se despediu.

[...]

Quando abriu seus olhos só viu escuridão. Um barulho abafado, contra a tampa de carvalho de seu caixão, o havia despertado e ele não fazia ideia de quem poderia ser. Naquele instante já se pôs em alerta.

Seu cérebro disparava milhares de possibilidades e ele precisaria de segundos para se preparar para cada uma delas.

Poderia ser Suigetsu, mas, como não sabia a hora, não poderia ter certeza. Ainda poderia ser dia lá fora.

Talvez fosse um de seus criados, mas duvidava muito que qualquer um deles tivesse a coragem necessária para tocar em uma urna funerária no centro de um quarto que lhes era proibido o acesso.

Outra possibilidade, essa a mais preocupante, era a de dar de cara com uma caçadora. Desprotegido dentro daquele caixão, não tinha nada ao seu alcance que pudesse utilizar em próprio auxílio.

E, por fim, a última e inquietante alternativa. Seu coração rebateu-se com a perspectiva e as pupilas dilataram imediatamente.

Experimentou respirar, na esperança de identificar o que quer que estivesse a bater em seu caixão. Frustrou-se assim que percebeu que a urna funerária era de fato bem lacrada. Naquele momento ele só tinha uma coisa a fazer.

Certificou-se de apoiar as palmas da mão sob o tampo de madeira, pronto para usá-lo como escudo se assim fosse necessário. Tomou impulso de uma vez, erguendo com os braços estirados a tampa do seu invólucro mortuário acima de si.

Se ainda fosse capaz de morrer de causas naturais, seria de ataque cardíaco. Seu coração batia forte contra o peito e, mesmo que não estivesse diante de qualquer ameaça, vê-la diante dele não ajudava em nada suas tentativas de controlar a adrenalina que corria por suas veias.

— O que está fazendo aqui, Sakura? — A olhou, perplexo.

Sasuke não acreditava no que estava acontecendo. Pensava que a cena de meses atrás houvesse sido o suficiente para interpor entre eles um muro. Mais uma vez aquela mulher mostrava o seu dom de estar completamente equivocado.

— Eu vim confrontá-lo. — Disse, empinando o nariz. Tinha a postura de quem se esforçava para mostrar coragem, mas que aparentava demais uma criancinha orgulhosa a fazer birra.

— Mesmo após me tirar de dentro de um caixão, você ainda tem dúvidas? — Sasuke respondeu tentando conter o quão achava surreal aquilo tudo.

Em sua mente cansada, Sasuke se perguntava se teria toda aquela paciência se tudo aquilo se tratasse de outra pessoa. Deu dois longos passos para sair de dentro do caixão e repousou a tampa ao lado do granito que garantia a elevação de seu local de repouso. Diferente do último encontro, Sakura não hesitou ao vê-lo se aproximar.

— Eu acredito no que você é. — Sakura avançou. — E eu não tenho medo.

Sasuke não duvidava.

— Deveria. — Atou os longos dedos frios ao queixo da moça e permitiu que seus olhos se prendessem aos dela. — Criaturas como eu se alimentam de presas vulneráveis como você.

— Você está tentando me repelir, Sasuke? — Sakura o olhou, raivosa. Transbordava obstinação e bravura. — Se você quisesse me machucar, já teria feito. E é por isso que estou aqui. Quero saber a razão de tudo isso. Estava brincando comigo? É um sádico que gosta de manipular os sentimentos de suas presas antes que crave os dentes nelas?

E ao ouvir aquilo, Sasuke vacilou. Nem seria mais necessário que verbalizasse a resposta, pois os olhos do vampiro já lhe denunciavam.

— Eu jamais seria capaz de fazer qualquer coisa à você. — Disse em um sussurro doloroso.

— Então, por quê? — Sakura tremeu, mas seus olhos continuavam inquisitivos.

— Porque eu a amo. — Sasuke lhe respondeu sem qualquer capacidade de mentir.

— Me ama e me escondeu uma coisa dessa dimensão? — Apontou para o caixão. Seus olhos se estreitaram e Sasuke sabia o que viria depois. — Diz que me ama, mas me deixou partir por aquela mesma porta?

Amargurado, soltou o queixo da moça assim que vislumbrou as primeiras lágrimas na imensidão esmeralda de seus olhos, e sentou-se nos degraus de granito negro, tão frios quanto a si mesmo. Seu olhar repousou na moça parada a sua frente. Ela não arredaria os pés de lá a menos que quisesse. Nem mesmo ele seria capaz de repeli-la.

— Sakura, você é o sonho inalcançável de toda a minha existência. Jamais poderia tê-la para mim sem que me vertesse à maior de todas as insanidades quando sua hora derradeira enfim chegasse. — Confessou. — Você não sabe o quão torturante foi para mim resistir aos seus avanços. Me contentar com o sabor de seus lábios e não poder provar dos segredos do seu corpo.

— Isso não tem nada a ver… — Sakura fungou, enxugando as lágrimas. — Para um ser eterno, cansar-se de uma mortal é inevitável.

— Me cansar de você? Nunca, meu amor. Seria mais fácil ir de encontro ao sol e ali permanecer até que não restasse nada além de minhas cinzas. — O vampiro declarou. Poderia elaborar mais um milhão de comparações se ela assim pedisse.

O rapaz fechou os olhos e permitiu que todos as tristes memórias dos últimos meses percorressem seu raciocínio. Cada tarde solitária, todas as folhas que vertiam-se em vermelho com a chegada do outono… Desprendeu o máximo de esforço que conseguiu ao ouvir os passos mansos vindo em sua direção. Teve medo em se permitir respirar, mas seu âmago ansiava por reviver o cheiro poderoso dos cabelos daquela mulher.

— Então prove. — Sentiu os dedos quentes da mão de sua amada percorrem suas têmporas. — Prove que me ama.

— Eu não posso fazer isso. — Mas seu interior rogava por ela. Era um egoísta, sabia muito bem disso. — Não vou possuí-la. Não posso sequer cogitar a possibilidade de arrastá-la pro mesmo inferno que eu, diante da possibilidade de perdê-la.

Sasuke já havia escutado de alguns velhos vampiros, e até mesmo de mortais, que a tentação e o pecado nunca eram servidos em louças quebradas. Muito pelo contrário, coisas profanas sempre se apresentariam nos mais puros pratos de ouro, instigando o que já é tentador. Naquele momento o Uchiha teve a certeza indubitável de que aquilo era verdade, diante do que viria ouvir:

— Se eu permanecer pela eternidade contigo, então você não terá mais nada a perder.


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