En El Medio escrita por Marylin C


Capítulo 4
IV. thanks for understanding




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PARTE 4. thanks for understanding

Rafael pôs o garotinho adormecido na cama, cobrindo-o com o lençol de linho e beijando-lhe a testa antes de sair do quarto silenciosamente. A câmara adjacente ao quarto de Felipe era onde ele estava dormindo depois que os feiticeiros do Conselho restauraram o castelo (surpreendentemente rápido para a quantidade de danos), sozinho na imensa cama de casal que uma semana atrás dividia com Hector. Suspirou, passando uma mão pelos cabelos castanhos nervosamente ao sair do quarto. Deu de cara com Julio, que encostava-se à parede de mármore com sua habitual bolsa de couro e cabelo negro bem trançado com uma expressão pacífica no rosto. Cumprimentou-o com um sorriso que com certeza pareceu uma careta, fazendo o rei consorte de Ikla erguer-se e indicar que os dois deveriam caminhar juntos.

— Não está sendo fácil, não é? — ele indagou, compreensivo — Separar-se assim do dono de seu coração.

— Nem um pouco. — Rafael suspirou mais uma vez — Especialmente por eu nem sequer ter tido a decência de me despedir.

— Penso, Rafael, que não importam os termos de sua separação. Sempre é difícil. — Julio comentou com um sorriso triste.

— Maren faz isso o tempo todo, não é?

— É o dever dela, não pode evitar. — o homem negro deu de ombros — Mas não posso negar que meu coração se aperta toda vez que ela faz uma de suas viagens.

— Como você lida com isso? — Rafa indagou, penteando a própria barba com dedos nervosos.

— Eu preciso lembrar a mim mesmo que minha rainha é a mulher mais poderosa desta ilha. — Julio respondeu, com uma pequena risada — Já a vi derrubar homens adultos e manter feiticeiros humildes diante de sua pessoa, sei que ela é mais do que capaz de proteger a si mesma. E que, nem mesmo em um milhão de anos, desistiria de voltar para mim.

— Falando assim, parece bem fácil. Mas não é. — o outro replicou, estalando os lábios com irritação. O rei consorte riu, negando com a cabeça antes de falar:

— É óbvio que não é fácil, Rafael. Se trata de amor, e o amor nunca é fácil. Mas acho que você sabe tanto quanto eu que, apesar de tudo, vale a pena.

Rafael finalmente abriu um sorriso verdadeiro, ao mesmo tempo em que os dois alcançaram uma janela. Olharam para o céu estrelado, imenso e profundo em seu azul noturno, e ficaram em silêncio pelo que pareceram longos minutos, perdidos em seus próprios pensamentos. O homem vindo de outro mundo refletia sobre como tinha sido relativamente fácil restaurar o castelo, tentando ignorar a visão de um Hector desacordado sendo consumido pelas chamas. Pensou em como seu marido estava lidando com aquela viagem de perseguição, dormindo ao relento e revezando a vigia à noite. As palavras que ambos disseram naquele dia fatídico voltaram a ele com um soco, e ele retornou à realização de que fazia ao menos alguns meses que eles não tinham discutido daquele jeito. Então a lembrança do sorriso animado que Hector geralmente mantinha no rosto o fez sorrir também, e ele comentou:

— É uma loucura, não é? Amar.

— É sim. — Julio respondeu com uma risada — A loucura mais lúcida que alguém pode fazer.

***

anos antes

O Oficial de Justiça tentava se conter para não sorrir demais e denunciar sua animação, andando ao lado do agente ruivo da CNI à luz amena dos postes de iluminação da rua. Estava movimentado devido ao horário, onde boa parte dos trabalhadores da cidade voltava para casa depois de um dia cheio, então ambos acharam mais produtivo andarem até o destino almejado. Os dois conversavam amenidades, Hector falando muito mais que Rafael e de vez em quando furtando alguns olhares de canto de olho para o rapaz mais alto, tentando discernir o que diabos tornava-o tão atraente. Seriam os olhos? O jeito que sua expressão podia passar de séria para divertida em meio segundo? O sorriso?

— ...E então eu prendi o anel na cama elástica e quebrei meu dedo quando fui sair! — ele terminou a história com uma risada, fazendo Rafael rir junto.

— Você não parece tão desastrado assim. — comentou, ao que Hector deu de ombros com um sorriso. Tinha se soltado muito mais rápido que o normal, percebia. Tinha algo sobre o Oficial de Justiça de olhos e barba castanha que o deixava confortável, mas não podia explicar o que era. Naquele momento ele tropeçou numa irregularidade da calçada e teria caído se o homem de cabelos castanhos não tivesse sido rápido e puxado-o pelo braço. — Certo, retiro o que eu disse. — Rafael riu, a mão confortavelmente pousada no antebraço do agente. Hector manteve a mão ali, os dois mais próximos enquanto andavam. — Como você passou nos exames pra ser da Inteligência, sendo desastrado desse jeito?

— Eu sou melhor em outras coisas. — ele respondeu com um sorriso de lado, fazendo o Oficial de Justiça corar pela primeira vez naquele dia. Mas ele não ia deixar barato, não mesmo.

— Oh, é mesmo? — abriu um sorriso sugestivo — Então o que estamos fazendo indo jantar ao invés de ir para o meu apartamento? — piscou, ao que Hector também ficou vermelho e soltou uma pequena risada nervosa. Repreendeu-se mentalmente. Céus, parecia que ele tinha voltado a ser um adolescente no primeiro encontro!

— Bom, foi você quem sugeriu que fôssemos jantar. — replicou com um dar de ombros que quase podia passar por indiferente, se não fosse o rubor em suas bochechas. Então chegaram à rua muito iluminada e cheia de pessoas, onde vários bares estavam em pleno funcionamento. Hector puxou Rafael na direção de um letreiro discreto onde se lia Paragon, e os dois desviaram de uma pequena multidão para conseguir uma pequena mesa de bancos altos num canto do bar.

— Você conhece esse lugar? — o Oficial de Justiça perguntou, curioso. O agente assentiu.

— Minha irmã me traz aqui sempre que tem um encontro e precisa de alguém pra distrair algum amigo inconveniente do cara da vez. Eu gosto do ambiente, e o serviço é bem feito. — ele riu.

— Então você costuma ficar de vela? — Rafael ergueu uma sobrancelha com um sorriso divertido, ao que Hector fez que sim mais uma vez com um pequeno revirar de olhos antes de abrir um daqueles seus sorrisos que o moreno achava que poderia iluminar uma cidade inteira:

— Mas hoje é diferente, certo?

— Certo. — Naquele momento as bebidas de ambos, um coquetel de frutas para Hector e uma cerveja para Rafael, chegaram. Eles brindaram com uma longa troca de olhares e voltaram à conversa leve, comentando o último filme que tinham assistido no cinema. Com o barulho ambiente, eles tiveram que posicionar seus bancos imediatamente ao lado um do outro para serem ouvidos, o que ocasionou diversos esbarrões nem tão sem querer quanto poderiam ser. O Oficial sentia os pelos de sua nuca arrepiarem cada vez que encostava no braço do rapaz ruivo, e se perguntava desde quando tinha se tornado tão ridículo. “Provavelmente no momento que esse cara apareceu,” concluiu para si mesmo ao sorrir ante um comentário divertido de Hector, afrouxando a gravata. — O que te fez se tornar membro da CNI?

— Vontade de atirar em terroristas e maridos ciumentos. — ele replicou, em um tom falsamente sério que fez Rafael rir. A comida chegou antes que Hector pudesse responder seriamente, e os dois se empanturraram das famosas tapas, aperitivos típicos da Espanha. O tipo que os dois homens tinha escolhido era ‘pintxo’, no palito, tanto de kani quanto de queijo e ovos, e o agente quase derrubou um dos pratos ao levantar a taça para pedir outro coquetel ao garçom. Isso ocasionou uma crise de riso de ambos, que no final estavam ofegantes e tentando controlar-se para não voltarem a rir. — Falando sério agora, virei agente porque achei que era o melhor jeito de tentar ajudar na justiça desse mundo. E você?

— Por que virei Oficial de Justiça? — Hector fez que sim com a cabeça. — Porque, depois que acabei a faculdade de Direito, achei que era a posição que me daria mais estabilidade e tempo livre ao mesmo tempo. E porque é de longe muito mais divertido que ser advogado ou promotor.

— Imagino que seja, sim. — ele riu, para depois morder o lábio inferior e olhar para baixo, pensativo. — Acho que deveria te contar logo o porquê.

— De você ter agido daquele jeito no Tribunal? — Rafael indagou, fazendo Hector assentir mais uma vez. — Olha, você não precisa me contar se não quiser. Eu entendo totalmente.

— Talvez entenda. Mas vai entender melhor se eu contar. — ele piscou, com um sorriso triste que fez o homem moreno temer levemente a história que o agente estava prestes a contar.

— Conte então.

— Bom, você sabe que as leis do nosso país são bem progressistas com as questões LGBT e tudo mais. Mas… — Hector hesitou, ao que Rafael respirou fundo e mais uma vez entrelaçou seus dedos aos dele, que sorriu agradecido. — Mas você também deve saber que nem todo mundo é muito gentil quando se trata da sexualidade alheia.

— Sei sim. — ele concordou com uma careta. — O que aconteceu com você, Hector?

— Cheguei como consultor da polícia de Barcelona tem quase seis meses. Quando me instalei na delegacia, todo mundo me recebeu muito bem. Fiz amigos bem rápido, e tinha esse cara que… — hesitou mais uma vez, dessa vez por causa das mãos entrelaçadas mais que por vergonha. — Bom, não vou descrevê-lo pra você porque não acho que faça muito sentido falar de outro cara no primeiro encontro.

— Acho justo. — Rafael riu levemente. — Continue.

— O caso é que esse cara, um dos policiais, parecia dar abertura, sabe? Flertávamos bastante, e eu comecei a ter algum sentimento por ele. Um dia eu tomei coragem pra finalmente chamá-lo para sair, mas ele simplesmente nunca ficava sozinho comigo. — Hector fez uma careta — Então, tive que chegar no meio dos amigos dele, tremendo de nervoso, e o convidei pra jantar.

— E o que aconteceu?

— Ele começou a rir, Rafael. — o agente soltou um riso sem humor, olhando para o movimento da rua pelo janelão na frente dos dois. Rafael ergueu ambas as sobrancelhas, abrindo a boca em descrença. — Todos eles começaram a rir e a tirar as carteiras dos bolsos pra pagar o cara.

— Era uma aposta?

— Era uma aposta. — Hector concordou. — Eles tinham apostado que o cara não ia conseguir me enganar a ponto de eu ficar afim dele e chamá-lo pra sair, e ele tinha apostado que conseguia.

— Que tipo de babaquice é essa?! — o Oficial rosnou, subitamente enraivecido. — O que diabos…?!

— É, eu sei. Uma escrotisse sem tamanho. — ele suspirou. — É claro que eu morri de vergonha, e depois de tristeza, e aí finalmente veio a raiva.

— Por favor, me diz que você ao menos deixou esse idiota com o olho roxo. Por favor!

— Admito, vontade não me faltou. — Hector riu. — Mas eu reportei à capitã dele, fiz uma denúncia formal e tudo, e ele ficou seis meses suspenso e outros seis sem direito a portar armas.

— Achei pouco. Eu teria arrebentado o nariz dele! — Rafael esbravejou, com raiva.

— Acho fofo você estar com raiva por mim, mas não precisa. Sério.

— Precisa sim! Você…

— Rafael, me deixe terminar a explicação, sim? — o agente pediu, ao que o homem de cabelos castanhos aquiesceu a contragosto. — Bom, atualmente falo com todos eles apenas para assuntos estritamente profissionais. Mas tocar meu braço, daquele jeito que você fez no Tribunal, era algo que ele costumava fazer. Então foi uma reação instintiva, porque eu pensei…

— Pensou que eu estivesse zoando com a sua cara, que nem ele? — Rafael completou, já mais calmo, fazendo Hector assentir. — E o que te fez mudar de opinião sobre mim?

— O olhar desgostoso daquele juiz para você foi a primeira dica. — ele enumerou, sorrindo. — Depois que fiquei na dúvida, fui atrás de alguém que eu confiava para pedir a informação. No caso, a promotora. E aí me arrependi de ter repelido um cara como você.

— Como eu? — o Oficial ergueu uma sobrancelha.

— Charmoso, simpático, bonito e, bom, gay.

— Ficar afim de caras héteros é como dar um tiro no pé, não é? — Rafael riu junto com Hector, que concordou veementemente. — Mas obrigado pela parte que me toca.

— Não precisa agradecer quando alguém só fala a verdade. — o agente da Inteligência disse, piscando.

— No meu trabalho, preciso sim. Me poupa muitos transtornos. — o homem de barba castanha riu mais uma vez, apertando a mão do outro antes de soltá-la. — Que tal pagarmos a conta aqui e eu te fazer experimentar minhas tapas favoritas da cidade inteira?

— Acho um boa ideia.

Os dois terminaram de comer e Hector pagou a conta, depois de ao menos quinze minutos de discussão. Acabou acordado que ele pagaria ali e Rafael pagaria a do próximo bar, e eles saíram juntos em um silêncio confortável somente interrompido pelos sons da atividade noturna ao redor deles. Dessa vez foi o rapaz ruivo que pôs a mão sobre o braço do outro, os dois trocando sorrisos enquanto o Oficial de cabelos castanhos habilmente guiava-os por entre os grupos de pessoas que, como eles, seguiam ao próximo bar. Hector começou a cantarolar uma música que veio de repente em sua cabeça, e Rafael só conseguiu discernir qual era quando ele chegou ao refrão:

Sweet creature, sweet creature, wherever I go… You bring me home, sweet creature…

— Harry Styles, huh? — ele piscou, ao que o mais baixo sorriu ao assentir — Costumam pegar no meu pé por eu gostar dele, “como se eu não pudesse ficar mais gay”. — comentou, fazendo Hector sorrir mais.

— Você gosta também?

— Francamente, você já olhou para o rosto dele? Já ouviu a voz? É óbvio que eu gosto dele! — Rafael enfatizou, em um claro ataque de fã que fez Hector rir — Na verdade, essa é uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos.

Sweet Creature?

— É. Gosto da ideia de ter alguém que te leva de volta pra casa, de morar com mais uma pessoa que você ama. Não tive muito disso crescendo, sabe? — comentou, e o outro tinha uma pergunta pronta sobre aquilo, mas naquele momento os dois chegaram ao bar que Rafael queria. Encontraram uma mesa praticamente no meio do salão e pediram mais bebidas, e só então Hector pôde perguntar o que queria:

— Você mora sozinho há muito tempo?

— Desde os quinze anos, na verdade. — ele respondeu, com um sorriso triste semelhante ao que o rapaz ruivo dera antes de contar a história fatídica da aposta. Este ergueu as sobrancelhas e fez um gesto que o incentivava a continuar, mas Rafael mordeu o lábio em dúvida. — Não é uma história feliz, não acho que combine muito com o clima de agora.

— Oh, então você está feliz aqui? — Hector sorriu de lado. O homem de cabelos castanhos soltou uma pequena risada, erguendo uma mão para acariciar de leve a bochecha já corada de seu acompanhante:

— É claro que estou, Hector.

— Pode me contar a história. — o agente ruivo pôs a mão sobre a de Rafael que estava em seu rosto, antes de abrir um sorriso encorajador. — Eu contei minha história triste, você tem todo o direito de contar a sua.

— Então tudo bem. — ele respirou fundo, recolhendo a mão ao olhar para longe. — O mundo agora é um lugar muito mais acolhedor do que era naquela época. Eu saí do armário com quinze anos. Acho que não foi uma decisão muito sábia.

— O que aconteceu? — Hector indagou, tentando não demonstrar a preocupação que sentia com aquele tom subitamente mudado dele.

— Meu pai surtou. Foi isso que aconteceu. — Rafael disse de uma vez, suspirando. — Me expulsou de casa. Eu estava no começo do colegial, cheio de dúvidas sobre quem eu era e o que queria ser e então, de repente, eu não tinha mais casa.

— Meu Deus! — o rapaz ruivo arregalou os olhos, a dor empática estampada em sua expressão. O homem de cabelos castanhos só precisou voltar o olhar para ele uma vez para vê-la, em vez da pena ou raiva habituais que as pessoas sentiam ao ouvir essa história. Isso o deixou sem fala por alguns segundos, e Hector teve que perguntar novamente para fazê-lo voltar ao normal — E então? O que aconteceu?

— Bom, eu fui morar com minha tia por parte de mãe por um tempo. Mas no final do colegial eu já estava cansado de morar de favor, então arrumei um emprego de merda e um apartamento de merda. — Rafael explicou, dando de ombros. — É até engraçado. Eu tive a liberdade que muita gente sonha na adolescência, mas foi péssimo.

— E… E a sua mãe? — ele indagou.

— Morreu quando eu tinha dez anos. Mas eu sei que ela teria me aceitado. — o mais alto sorriu, saudoso. — Foi uma das pessoas mais doces que eu conheci.

— E você não fala com seu pai desde que ele te expulsou?

— É. — Rafael deu um gole em sua cerveja, olhando para o lado. — Eu odiava pagar aluguel, então jurei que quando tivesse um emprego decente, ia comprar um apartamento do jeito que eu sempre sonhei. Terminei de arrumá-lo tem duas semanas. — ele sorriu, dessa vez com o genuíno prazer de ter conseguido. Isso fez Hector sorrir também, pousando a mão sobre a dele mais uma vez e fazendo-o olhá-lo novamente.

— Deve estar maravilhoso. — comentou, ao que Rafael sorriu mais. Os dois voltaram à conversa leve que já estavam habituados, dessa vez comparando gostos musicais e encontrando semelhanças. Sem que percebessem, foi ficando mais e mais tarde, até que resolveram que deveriam seguir para casa. Hector era o único dos dois que tinha carro, mas por ter ingerido álcool, preferiu pegar o metrô com Rafael. Seu carro ficaria bem pernoitando uma única noite na delegacia, e ele gostaria de atrasar o momento em que deixaria a presença alegre do Oficial de Justiça o máximo possível. Mas a estação onde deveria descer ficava antes da dele, e Hector teria se despedido no metrô mesmo se ele não tivesse se levantado e descido junto como se não fosse nada.

— Sua casa fica pra qual lado? — Rafael indagou, começando a subir as escadas que levavam para fora da estação.

— O que está fazendo? Você não mora perto da estação de Navas? — o agente ruivo perguntou de volta, seguindo-o apressadamente. O mais alto olhou por cima do ombro, já no final da escadaria, e sorriu de lado.

— Para alguém da Inteligência, você até que é bem burro. — Hector cruzou os braços, em um muxoxo irritado que Rafael achou extremamente fofo. — Estou te acompanhando até em casa, cariño.

Cariño? — o apelido fez o rapaz tropeçar e quase cair da escada, e foi apenas o sangue mágico em suas veias que o impediu de cair estatelado no chão, fazendo-o se segurar no aparente nada para não cair. O homem de cabelos castanhos riu, estendendo uma mão para ajudá-lo e então entrelaçando seus dedos.

— Você não gosta de cariño? — ele perguntou. — É que passei a noite pensando em um apelido pra você e não consegui. Então achei que cariño seria adequado.

— Não é isso. Eu gosto. É só que… Me surpreendeu um pouco. — Hector explicou, corando. — Você me surpreende bastante, Rafa.

— Espero que isso seja bom. — Rafael riu.

— É ótimo. — ele sorriu, e os dois permaneceram andando de mãos dadas até o agente ruivo indicar a rua em que morava. Pararam em frente ao prédio em que o ruivo morava, e o silêncio se tornou levemente constrangedor enquanto Hector debatia internamente se deveria chamá-lo para subir ou não. Bocejou sem querer, e Rafael sorriu.

— Obrigado pelo jantar. Foi ótimo. — piscou, ao que o mais baixo sorriu de volta.

— Eu que agradeço. Obrigado por ter me dado uma segunda chance.

— Oh, eu já ia esquecendo. — sem cerimônias, tirou o celular do bolso do ruivo e começou a digitar.

— Ei, o que você está fazendo? — Hector tentou tirar o aparelho das mãos do moreno, mas ele só o pôs mais para o alto e continuou digitando, afastando o agente com a mão livre.

— Estou colocando meu número aqui, cariño. E é um absurdo que seu celular não tenha senha, honestamente. E se alguma informação secreta vazar daqui? — Rafael riu.

— Não é como se eu só tivesse esse celular, Rafael. Honestamente, o que você sabe sobre agentes da Inteligência? — ele revirou os olhos, mas sorria. O mais alto devolveu o telefone, sorrindo.

— Eu vou atrás de você se não me mandar mensagem, ouviu? — ergueu uma sobrancelha, e Hector não teve mais como se conter. Soltou o ar pela boca em um suspiro que com certeza soaria apaixonado a quem ouvisse e puxou o Oficial de cabelos castanhos pela gravata frouxa, selando seus lábios. Rafael levou meio segundo para reagir, levando uma mão ao rosto de Hector e a outra à sua cintura, puxando-o para perto enquanto aprofundava o beijo. O ruivo passou os braços ao redor do pescoço do mais alto, seus dedos embrenhando-se nos cabelos cacheados. Rafael sorriu quando os dois se separaram levemente, os narizes se tocando e ambos os pares de olhos intensamente encarando-se. — É uma gafe muito grande beijar alguém no primeiro encontro? — sussurrou, risonho. Sentia-se em uma bolha de felicidade que provavelmente duraria a semana inteira, e Hector respondeu com aquele seu sorriso de orelha a orelha e um comentário brincalhão:

— É claro que é. Agora você está destinado a ficar comigo pra sempre.

— Oh, céus. Estou muito ferrado então. — beijou-lhe os lábios mais uma vez, e o nariz e a testa, antes de ambos se separarem hesitantes. O agente da Inteligência começou a subir os degraus que levavam à portaria, e Rafael ficou parado na calçada até que ele acenasse pela última vez e entrasse, um sorriso incontrolável insistindo em permanecer em sua face.

Hector passou pela entrada e cumprimentou o porteiro com um sorriso enorme, antes de notar que o vidro da mesma era fumê e que dava para a calçada. O funcionário ergueu uma sobrancelha e comentou, sugestivo:

— Ele é gato, hein? Eu não deixaria ele escapar se fosse você.

— Se tem uma coisa que eu pretendo é não deixar ele escapar, senhor Ángel. — o ruivo respondeu com uma risada, seguindo para o elevador.

***

Hector se levantou da grama onde estava deitado ao ver Maren pendurada em um galho de uma árvore alta, olhando tristemente para o caminho por onde eles tinham vindo. Tinham praticamente atravessado a ilha de Ikla, toda a terra sob o comando da jovem rainha de cabelos castanhos, e Mestre Nate perdera o rastro mágico de Agustina. A comitiva tinha montado acampamento a alguns metros da praia, e decidiram que o melhor a fazer era acalmar os ânimos com algumas horas de sono antes de voltar a pensar em outro plano.

O filho do Vento escalou facilmente a árvore, sentando-se ao lado da moça e olhando na direção que ela olhava. Não podiam ver o castelo daquela distância, mas sabiam que em algum lugar naquele horizonte estavam as pessoas que mais amavam no mundo.

— É estranho estarmos tão perto, ainda na mesma ilha, mas parecer tão longe. — Maren comentou, os olhos azuis abertamente falando da saudade que sentia de seu marido e de sua mãe. — Muitos esperam que eu esteja acostumada a viagens desse tipo, já que as faço constantemente. ‘Ah, ela deve estar bem. Duvido que sinta falta de casa.’ — fez uma imitação de voz aguda e afetada que fez Hector abrir um pequeno sorriso. A rainha revirou os olhos. — Não é óbvio que distanciar-se de quem se ama dói sempre, quase que fisicamente?

— Acho que para muitos não é. — o homem ruivo respondeu, suspirando. Resolveu não se ater àquele assunto, já cansado daquela tensão toda. — O que vamos fazer quanto a Tina?

— A mim parece bastante claro o que está acontecendo. — Maren replicou — Ou ela entrou no Reino das Fadas ou está utilizando-se da barreira mágica para esconder-se.

— De qualquer modo, precisamos checar ambas as possibilidades. — foi Mestre Nate quem afirmou, encostando-se ao tronco da árvore em que o filho do Vento e a rainha se encontravam. Hipólita e Helia se aproximavam também, tendo guardado os utensílios de cozinha e voltado a selar o cavalo para continuar a perseguição.

— Concordo. — Hector assentiu. — Como faremos isso?

— Sinto que estamos caindo em algum tipo de armadilha que ela armou para nós. — Helia disse, a expressão desgostosa em seu rosto denunciando seu desagrado.

— Não temos muita opção, temos? — Maren deu de ombros. O mestre de cabelos longos soltou um muxoxo irritado, mas fez que não com a cabeça como os outros. — Bom, então temos que levantar acampamento e atravessar o mar.

— Uma missão suicida para todos nós, eu devo ressaltar. — Mestra Hipólita frisou, ao que os outros assentiram.

— Talvez consigamos as respostas que precisamos lá. — Nate tentou soar positivo, mas Maren riu com nervosismo.

— Ou talvez tenhamos uma dolorosa morte. A Rainha odeia humanos detentores de magia, não entendo o porquê.

— Em todo o caso, não há o que fazer a não ser seguir em frente. — Hector suspirou. — A menos que vocês desejem voltar para a Estrela do Norte sem respostas.

O ruivo olhou em volta, e os rostos determinados de cada um de seus companheiros falou mais alto que qualquer coisa. Ele desceu da árvore com um salto, Maren pulando logo atrás, e os dois ajudaram a terminar de apagar todo e qualquer vestígio deles ali enquanto Mestre Nate tentava refazer o feitiço de localização mais uma vez antes de partirem. Não obteve sucesso, e os cinco voltaram a correr pelo vento, Maren sustentando no ar com sua magia o cavalo que o feiticeiro montava. Hector sabia que a mágica trabalhava de formas diferentes no corpo de cada ser humano, e a habilidade que Maren, Helia e Hipólita possuíam, de convencer a natureza a fazer suas vontades, era um dom inigualável que os dava o título de naturalistas, mas sempre tinha sido fascinado pelas habilidades de pessoas como Nate, que eram mestres do conhecimento dos assuntos das Cinco Raças daquele mundo.

— Por que usa o cavalo, Mestre Nate? — Hipólita perguntou, e todos entenderam que ela estava tentando distrair-se da missão que os cinco estavam cumprindo.

— Eu nunca consegui equilíbrio o suficiente para correr pelo vento com a mágica de outra pessoa que não Louis. — ele replicou, rindo. — E achei que já tínhamos passado da fase da senhorita me chamar de Mestre, Hipólita.

Hector ergueu uma sobrancelha para a expressão levemente constrangida da moça de pele azulada, tentando não rir. Viu Helia abrir um pequeno sorriso antes de virar-se para a frente em sua corrida, mas Maren gargalhava abertamente. Precisava lembrar-se de perguntar o que estava acontecendo entre aqueles dois, caso saíssem vivos daquela missão.

Muitos poderiam perguntar se a presença de Mestre Nate naquele grupo era sem sentido, já que precisavam de agilidade e provavelmente a jovem rainha exaurir-se-ia mais rapidamente ao sustentar no ar um cavalo, mas o  caso era que nenhum deles teria a mais remota chance de alcançar Agustina sem ele. O rastreamento que ele tinha até aquele momento performado era feito com base em um lenço de linho que Agustina esquecera com Maren algum tempo antes de partir, e Nate era o único naquele grupo que conseguiria fazê-lo por ser o único com título de feiticeiro. A magia em seus corpos os faziam instantaneamente ter proficiência em qualquer linguagem estruturada, além de ter maior entendimento de armas e feitiços relacionados a objetos inanimados. Na opinião do homem ruivo, não havia pessoa mais útil que o feiticeiro de cabelos castanhos.

Só então Hector se deu conta de que havia terra no horizonte. Se aproximando cada vez mais, a cada passo de sua corrida.

— Aquilo é Sísia? — indagou em um grito para Hipólita, que quase não pôde ouvi-lo por causa do assobiar do vento em seus ouvidos. Mas ela correu para aproximar-se dele e responder:

— Sim! Estamos indo diretamente para sul da Ikla, norte de Sísia, nos domínios dos Filhos de Eloa.

— Você sabe a história do porquê das fadas serem chamadas de Filhos de Eloa?

— Não! Você sabe? — ela perguntou, curiosa.

— Sei, meu pai costumava me contar! Se sairmos vivos do Reino das Fadas, te conto!

— Combinado!

Os cinco se aproximavam cada vez mais da praia do Reino, e o coração de Hector começou a bater mais forte. Se chegassem até lá e fossem atacados, o que fariam? Com certeza estariam em apuros por serem apenas cinco contra qualquer quantidade absurda de fadas, já que aquele era o domínio delas, e…

O rumo sombrio de seus pensamentos foi interrompido por uma voz feminina que gargalhava. Uma gargalhada sem humor, seca e ameaçadora que tomava conta de todos os ouvidos, como se até o vento parasse de soprar para ouvir o som sombrio.

— O que diabos…? — Hector indagou, ao que Helia respirou fundo antes de replicar:

— É o alarme. Cruzamos a fronteira entre as águas livres e o Reino das Fadas. Alerta as setinelas na praia sobre ameaças vindas do céu e do mar, mas é feito mais para assustar marinheiros desavisados que qualquer outra coisa.

Maren arregalou os olhos e esforçou-se para parar de avançar, mantendo-se suspensa no ar com seus poderes assim como os outros. Então engoliu em seco e olhou para Nate, que fez que sim com a cabeça antes tocar-lhe a garganta. A jovem rainha então disse, sua voz amplificando-se um milhão de vezes até alcançar a mesma altura da gargalhada sombria:

— Agustina Benítez, filha de Ariadne! Em nome do Reino de Ikla e tudo o que ele representa para você, apareça!

— Você se esquece, jovem rainha… — outra voz foi ouvida, e os cinco viraram-se a tempo de ver a fada de cabelos negros voar na direção deles juntamente com outras dez de sua raça, uma maior parte de mulheres de tranças bem-feitas e uniformes brancos que indicavam que elas eram setinelas da praia. — Que também sou filha de Spyrus Columban, Filho de Eloa.

Nate abaixou a mão que tocava a garganta de Maren, dirigindo-a para o cajado que tinha acoplado à sela do cavalo no início da jornada.

— Um ninguém que abandonou sua mãe quando ela mais precisava. — foi Hector quem replicou, a voz fria cuidadosamente colocada para machucar a meio-fada. Ela abriu um sorriso sem humor para o homem ruivo.

— Não venha falar-me do meu pai. Você me abandonou quando eu mais precisei!

Você terminou o que tinha entre nós! Não acredito que está fazendo tudo isso, que fez tudo isso, só porque está magoada.

— Você se acha o centro do universo, não é? — ela revirou os olhos, dando uma curta risada cruel. — Não é apenas sobre você, Hector. É sobre a sua espécie.

— Minha… espécie?

— Os humanos invadiram este mundo como se fossem os donos dele! — uma das fadas, de cabelos quase brancos e asas translúcidas, anunciou. — Nos obrigaram a fechar-nos em nossas defesas, em nossa floresta, quando tínhamos ilhas em nosso comando!

— E, como se não bastasse, roubaram nossos poderes! — outra dos Filhos de Eloa acrescentou, cruzando os braços.

— Espere, que tipo de loucura é essa? — Nate indagou, franzindo a testa e apeando do cavalo. Maren precisou concentrar-se em deixar o animal voltar para Ikla enquanto mantinha o feiticeiro no ar, e não estava realmente prestando atenção na conversa. — Nossos poderes não são roubados! A natureza nos deu...

— Mentiras! — um dos únicos homens Filhos de Eloa presentes gritou, enfurecido.

— Tina, você percebe o absurdo que eles estão falando? — Hector apelou, gesticulando muito. — Você sabe que não foi isso que aconteceu, que nada disso é verdade!

— O que eu sei, Hector, é que minha rainha iria adorar ter a cabeça de qualquer um de vocês para decorar a sala dela. — ela piscou e abriu uma mão, projetando um raio de luz tão concentrado que cortou as pontas do cabelo de Helia quando ele puxou Maren para baixo para desviar. Os cabelos lisos caíram por cima dos olhos dele,  cortados quase que na metade, e ele tinha uma expressão tão assustadora em seu olhar que Hector teria fugido se duas fadas não estivessem jogando círculos de fogo em sua direção.

Ele desviou-as com um gesto, fazendo o vento levá-las para longe, antes de mergulhar e começar a fazer movimentos circulares com um dedo. Continuou desviando das chamas, até que tinha um tornado se formando acima de suas cabeças. Uma das fadas riu e tomou fôlego para então soprar, desvanecendo o tornado em uma brisa de verão.

— Eu realmente estou enferrujado. — ele reclamou consigo mesmo, desviando mais uma bola de fogo com um gesto que moveu o vento. Viu a saia azul de Maren girar junto com ela enquanto ela projetava com as duas mãos um relâmpago que atingiu as asas de Tina antes de sentir uma pancada em sua nuca e perder os sentidos.


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