Sadie bem achava que, depois do dia cansativo que foi o casamento de Will e Nico, ela iria dormir a noite inteira. Mas não foi o que aconteceu. Ela acordou no meio da noite mais de uma vez se sentindo um tanto desconfortável. Não era nenhuma novidade. A cada dia que se passava e a barriga ficava maior, mais complicado era para ela achar uma posição confortável para dormir. 

Quando Sadie abriu os olhos, como estava deitada de lado, a primeira coisa que viu foi Anúbis dormindo confortavelmente ao seu lado. Devagar, sem querer acordá-lo, ela se levantou da cama e, guiada pelo desconforto que sentia, foi logo se livrando do travesseiro que colocava entre as pernas para ajudá-la a dormir, uma técnica da internet para dormir mais confortável estando extremamente grávida.  Com os passos mais leves possíveis, ela deixou o quarto para trás e foi em direção ao banheiro.

Quando entrou no banheiro, fechou a porta e ligou a luz, a primeira coisa que viu foi sua imagem refletida no espelho. Ela se sentia enorme e estava de fato enorme. Já havia parado de dormir com a própria blusa do pijama, pois ela não conseguia mais cobrir sua barriga e as pobres alcinhas pareciam pedir por socorro para segurar os seios cheio de leite. Havia se rendido já à algum tempo a vestir camisetas quaisquer de Anúbis. 

Com a cabeça presa em pensamentos ansiosos quanto ao parto e quanto à tudo que Set falou, Sadie usou o banheiro tal como qualquer outro dia. Tendo sua bexiga esmagada por sua filha, as idas ao banheiro haviam ficado mais frequentes e rotineiras. Mas depois daquela ela parou no espelho mais uma vez e olhou a barriga de todos os ângulos enquanto passava a mão carinhosamente nela. Já mal podia aguentar de ansiedade para conhecer sua pequenina e, exatamente por isso, não sabia se era impressão dela ou não a barriga parecer estar mais baixa.

Estando a data do nascimento marcada para não mais do que em alguns poucos dias, Sadie estava mais do que atenta a cada sinal. Mal podia esperar para segurar Aya no colo, ver seu rostinho e ter certeza de que estava tudo bem. Sem conseguir chegar à uma conclusão muito definitiva, ela decidiu voltar para a cama e tentar dormir no que lhe restava de noite. Assim, ela saiu do banheiro e abriu um sorriso de derrotada, não ficando muito surpresa, quando viu Anúbis sentado na cama.

— Já falei que você é muito difícil de não acordar? - perguntou Sadie.

— Não… - respondeu Anúbis com um grande bocejo - Tá tudo bem?

— Tá… só.. não tava conseguindo dormir e tava um pouco apertada. - explicou Sadie. sentando-se na cama de costas para ele  - Ei.. considerando que a gente resolva esse problema com o Ahriman, você acha que a gente vai depois conseguir lidar com Set?

— Você sabe o nome secreto dele… - lembrou Anúbis chegando mais perto de Sadie e delicadamente tirando o cabelo dela de suas costas até que a nuca dela ficasse exposta e então ele pudesse depositar um beijinho ali - Set é um problema velho e recorrente. Por mais que não deixe de ser um problema.

— Não sei porquê recentemente tô tão preocupada com as coisas…  - admitiu ela - Acho que vou culpar o fato de que é muita responsabilidade ter uma outra vida que depende totalmente de mim.

— É muita responsabilidade mesmo… - concordou Anúbis soltando um pesado suspiro.

Anúbis abriu a boca para falar outra coisa mas logo fechou-a. Não parecia um comentário pertinente para o momento. Afinal só iria preocupar ainda mais Sadie ao lembra-la de algo que ela já sabia. Esse comentário era sobre como bebês eram tão frágeis e indefesos. Mas, lá no fundo, Anúbis se perguntava se ele não estava considerando a pequena bebê que crescia dentro de Sadie como sendo mais frágil do que a mãe consideraria. Apesar dos anos que já haviam se passado desde que Anúbis tinha dado às costas para a imortalidade, alguns pensamentos e costumes típicos de seres imortais eram difíceis de serem deixados de lado. Exatamente por isso Anúbis se perguntava se, lá no fundo, a ideia de fragilidade do bebê era bem maior em sua mente do que na de sua esposa. Afinal, para um deus imortal, até mesmo humanos adultos pareciam como delicadas bonecas de porcelana.

— De preferência assim que o sol raiar, eu vou tentar entrar em contato com Thoth. - garantiu Anúbis - Não parece ter nada de perigoso no feitiço que Set nos entregou e, se ele fizer o que eu acho que faz, vai nos ajudar bastante.

— Sabe… tô começando a me sentir culpada… - disse Sadie se virando para ele - Você indo por aí falando com meio mundo de deus para tentar resolver nosso problema, e eu aqui em casa, só sentada no meio de um bando de papiro. Tô parecendo até o Carter.

— Você está com a parte mais difícil… - lembrou ele parando a fala para um bocejo - E com certeza a mais pesada.

O breve comentário do peso fez Sadie soltar uma pequena risada. Logo em seguida ela deitou-se na cama novamente voltando a posição em que estava antes e se embrulhando nos cobertores.

— Você me chama quando for falar com Thoth? - perguntou ela - Vai ser que nem fez com a Tawaret né?

— Sim. - respondeu Anúbis se deitando agradecido por ela ter se deitado porque ele também estava com sono. - E eu já ia te chamar mesmo.

 Deitados um de frente para o outro bem de pertinho, eles trocaram um breve olhar antes de Sadie, segundos antes de um bocejo, segurar uma das mãos dele.

— Sabe… uma parte de mim mal pode esperar pra Aya nascer pra eu poder deitar na cama direito. - admitiu Sadie - Mas aí eu vou estar trocando não conseguir deitar na cama direito por causa de uma barriga enorme por ter que ficar acordando toda hora pra ir ver ela.

— Ao menos é uma coisa que a gente pode intercalar... - disse Anúbis embora não tivesse muita confiança que isso fosse um conforto suficiente para noites mal dormidas.

— É.. - respondeu ela sentindo os olhos ficarem pesados e respirando profundamente tentando controlar toda a ansiedade que já estava julgando como sendo característica daquele ultimo mês de gravidez.

Felizmente, dali não demorou mais tanto assim para os dois caírem no sono mais uma vez. Algumas horas mais os separavam do nascer do sol que, timidamente, iluminou a cidade de Londres. Contudo, demorou ainda mais algumas horas para Sadie e Anúbis acordarem. O primeiro foi Anúbis que acordou graças à alguma discussão que acontecia entre dois aprendizes do nomo.

Não necessariamente irritado, mas sem dúvida ansiando por mais alguns minutos de sono, Anúbis olhou o relógio do celular que carregava logo ao lado e, depois de comprovar que ainda eram 7:45, deixou a cama para trás e abriu a porta rapidamente para ver o que acontecia mas com medo de acabar acordando Sadie. Ele encontrou então, não muito surpreendentemente, dois garotos brigando perto da escada enquanto Bastet as descia provavelmente para reclamar do barulho também.

— Sobre o que raios estão discutindo à essa hora da manhã e como já estão acordados? - brigou Bastet.

— Na verdade… - disse um dos garotos - “Ainda” estamos acordados…

— Porquê não dormiram então? - perguntou Anúbis e os dois garotos se sobressaltaram ao notar ele ali, afinal estavam de costas para ele.

— O Gabriel passou A NOITE TODA jogando no computador! - reclamou um dos garotos, Hector, colega de quarto do outro, Gabriel - Eu não consegui dormir! Ele joga falando!

— A culpa não é minha se era noite de evento e minha party ia participar! - defendeu-se Gabriel.

— Gabriel… - disse Bastet toda paciente enquanto Anúbis só suspirava cansado - Isso não foi legal.

— Mas era a única noite que dava para conseguir o dobro de xp e um item especial! - insistiu Gabriel.

— Não importa… - disse Anúbis - Vocês dividem o quarto e cada um tem direito a dormir. Você tem que respeitar o espaço do Hector.

— M-Mas… - gaguejou Gabriel enquanto Hector sorria em vitória.

— Porquê não posso trocar de quarto? - pediu Hector - É quase toda noite isso.

— Não é assim também… não é sempre que viro a noite… - disse Gabriel.

— Mas é sempre que dorme estupidamente tarde! - reclamou Hector.

— Vemos isso mais tarde ok? - respondeu Anúbis - E de preferência briguem em outro andar…

Com os dois meninos ficando cabisbaixos pela bronca, Anúbis voltou para dentro do quarto e não se surpreendeu tanto assim ao ver Sadie de olhos abertos mas ainda deitada.

— Que bagunça foi essa? - perguntou Sadie com a voz lenta e sonolenta.

— Hector e Gabriel brigando… - disse Anúbis suspirando - Provavelmente vão encher a nossa paciência mais tarde de novo.

— Hum… - resmungou ela fechando os olhos de novo e puxando o travesseiro de Anúbis para si e abraçando-o antes de aparentemente voltar a dormir.

Não estando mais no clima para dormir, Anúbis simplesmente seguiu com seu dia, e ele começava, assim como o de muita gente, indo ao banheiro. Depois, ele foi para a cozinha e como, graças ao horário, não tinha muita gente acordada ainda, ele pôde comer com calma o seu café da manhã. Isso é, até Bastet sentar-se de frente à ele claramente querendo falar alguma coisa.

— Que foi? - perguntou ele enquanto passava manteiga e botava uma fatia de cheddar numa torrada quentinha.

— Como assim “que foi?”? - perguntou ela revirando os olhos - Vocês chegaram ontem de noite do casamento e só me deram pedaços de informações do que aconteceu lá dentro! Tenho mesmo que ficar seguindo vocês de perto agora?

— Não… - respondeu Anúbis parando por um segundo para tomar um gole de iogurte - Por mais que odeie admitir, você é muito útil na defesa à distância. Antes que o perigo chegue perto.

— E mesmo assim, Set ficou perto de vocês. - disse Bastet triste sentindo que falhou em sua missão - E se tivesse alguém que realmente quisesse brigar? E não é a primeira vez... 

Anúbis escolheu ficar em silêncio enquanto comia sua torrada. Não sabia bem o que dizer, sem falar que era estranho tentar tranquilizar Bastet. Só falar “isso acontece…” parecia leviano demais. Pedir para que aquilo não se repetisse parecia impertinente demais. Logo, o silêncio pareceu a escolha mais óbvia. Ele esperou alguns segundos para Bastet tentar se recompor, e também para não ficar muito estranho, e logo trocou levemente de assunto. 

— Como disse quando chegamos ontem… Set deu um feitiço que diz ter vindo de Thoth. - explicou Anúbis - Vamos checar com Thoth hoje. O feitiço parece envolver sangue… na melhor das hipóteses, o meu e o de Sadie.

— Está em dúvida quanto o que o feitiço faz? - perguntou Bastet claramente estranhando aquilo e Anúbis afirmou com a cabeça.

— O jeito que ele está escrito é estranho. - explicou Anúbis - É quase como um enigma e tem muitas palavras estranhas. Acho que pra deixar ele mas sem buracos.

— É bom ver mesmo com Thoth. - opinou Bastet - Nem que seja ao menos para evitar que Set tenha alterado o conteúdo do papiro.

Com a boca cheia de torrada, Anúbis confirmou com a cabeça e logo se levantou. Com um pouco de magia e um pouco por conta própria também, ele começou a montar um outro café da manhã. Notar isso fez Bastet abrir um pequeno sorriso, pois sabia bem que o potinho de frutas variadas, ovos mexidos, torrada e um copo de suco de laranja sobre uma bandeja enfeitada ricamente de flores e, por algum motivo aleatório, palavras bonitas em francês, não eram para Anúbis.

— Acha que ela já acordou? - perguntou Bastet.

— A briga do Hector e do Gabriel acordou ela um pouco, mas ela voltou à dormir. - explicou Anúbis - Não deve demorar muito pra acordar pra valer.

— Bem… - disse Bastet se levantando da mesa e logo se transformando num gato embora tenha continuado a falar mesmo na forma de felina - Vou deixar vocês aproveitarem a manhã preguiçosa que ela gosta. Qualquer coisa só gritar.

Anúbis bem podia desaparecer da cozinha num passe de mágica e reaparecer no quarto ou na frente da porta dele, mas não queria arriscar dar um susto em Sadie. Dar um susto numa grávida com certeza estava dentro da enorme lista de coisas que não era bom fazer. Assim, depois de subir normalmente as escadas até o quarto, ele abriu a porta do quarto o mais silenciosamente possível para encontrar Sadie num meio estado entre dormindo e acordada.

— Hey… - resmungou ela se remexendo na cama virando o barrigão para cima - Terceira vez acordando hoje e talvez última… 

— Te acordei?… - disse ele.

— Não… - disse ela com um rosto preguiçoso enquanto ia se sentando na cama e colocando o fofo travesseiro atrás das costas - Eu já estava meio acordada. Mas admito que o cheirinho de torrada que tá vindo da sua bandeja aí me acordou de vez.

— Todas suas. - disse Anúbis sorrindo levemente.

Sadie sorriu com um sorriso que era parte feliz pela comida e parte o sorriso de uma garota apaixonada que estava aproveitando um café da manhã na cama preparado pelo marido. Apesar de a enorme barriga provavelmente fazer uma cômica e não recomendável mesa para a bandeja, só precisou de um pouquinho de mágica de Anúbis para fazer uma mesa totalmente firme usando faixas de múmia (e mágica) de matéria prima. 

— Você me mima demais. - disse Sadie rindo enquanto Anúbis botava a bandeja sobre a mesa improvisada.

— Culpado. - disse Anúbis dando de ombros e se sentando na beirada da cama, pertinho dela.

Ela pegou então uma solitária uva que estava no potinho de frutas variadas e estendeu até a boca dele. Sem pensar duas vezes, ele comeu a solitária uva.

— Um pequeno prêmio pelos mimos. - disse Sadie pegando a pequena colher que estava junto da comida e começando a comer suas frutas - Obrigada.

Comendo tranquilamente o seu café da manhã, Sadie aproveitou o começo do seu dia junto com Anúbis. Essa era a beleza que só os finais de semana podiam trazer. Mas, enquanto se deliciava com seu suco de laranja, ela torcia para que no próximo final de semana, ela estivesse segurando Aya nos braços. Não aguentava mais a ansiedade e a dor nas costas.