O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 6
Ataque desonroso


Notas iniciais do capítulo

Capítulo longo, mas com bastante novidade no que tange o universo da obra. Espero que gostem :)



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A nativa mal sentia suas pernas enquanto se aproximava cada vez mais da tribo. A madrugada fora longa: carregar o corpo sem vida de Wohali não era fácil. Não se tratava apenas do esforço físico, mas também do esgotamento emocional que aquela situação causava. Wohali era uma figura importante dentro do grupo, um homem calmo, mas ainda assim esperto e capaz de se defender. Era ainda o seu tio. Ela viu claramente o momento em que ele partiu com o jovem Adaky rumo à floresta. A nativa pouco sabia do encontro com o mestiço, mas lembrava bem da expressão mista do veterano. Ele demonstrava alguma alegria, mas com um certo medo carregado em seus olhos.

“Dane-se”, ela pensou. Claramente a emoção de medo deveria se sobrepor a qualquer espécie de alegria. Aquela fora a última viagem de seu tio. Como as coisas poderiam ter sido diferentes se ele tivesse apenas colocado juízo na cabeça do apaixonado e inconsequente Adaky. Agora ela que se questionava: deveria sentir medo? Será que a morte de Wohali não seria a primeira entre muitas que os nativos sofreriam dali em diante? As perguntas eram numerosas, mas a cabeça imersa em pensamentos diversos da nativa não encontrava resposta alguma. “Alguma coisa a tribo deve saber”, ela pensou.

E a nativa finalmente encontrou energias para andar um pouco mais rápido: a floresta se abria e, logo a sua frente, as primeiras estruturas indígenas se tornaram visíveis. Sustentadas graças a madeira e com suas coberturas trabalhadas com palha, aquela era a visão que ela mais amava: seu lar. Apressando o passo, pôde ver a área central da tribo, onde havia uma fogueira e algumas esculturas em madeira e barro. Mais adiante havia a divisão da área de plantio, onde já era possível observar o nascer de alguns frutos.

Apesar do alívio de encontrar o seu lugar, a nativa sentiu um peso maior que o corpo do seu tio: os olhos estavam todos virados para si. Mulheres que fabricavam potes e cestas paravam seus trabalhos para observar, assim como homens que afiavam suas lanças e flechas arregalavam os olhos com espanto. Mas ela já esperava isso: Wohali era alguém importante na tribo. Uma criança que observou a cena correu em disparada. Passou pelas casas comuns e por depósitos de alimentos e sementes até chegar a um índio mais velho.

A nativa, que já havia colocado o corpo do seu tio no chão, viu chegando aquele que era o seu pai. Com o corpo quase que inteiramente pintado em azul e penas exuberantes adornando sua cabeça, o homem era mais alto que a média da tribo e apresentava ombros largos. Olhando para sua filha e para o corpo sem vida do seu irmão, sua boca alongada se contraiu em ódio e seus olhos escuros aparentaram ser mais negros do que a própria morte.

— Eyanosa, minha filha — disse o pai enquanto corria para acolhê-la.

Eyanosa já não era nenhuma criança. Pelo contrário, já era uma mulher feita e era caçadora da tribo. Ainda assim, o seu pai não poderia deixar de agradecer aos deuses pela bondade de devolverem sua filha. Com os braços segurando carinhosamente o rosto dela, ele disse:

— Quem fez isso, minha filha? Quem tirou a vida do meu irmão?

Ainda que recebesse toda a ternura de seu pai, Eyanosa se sentia intimidada. Não por ele, mas por todos os olhos que observavam atentamente a situação. Seu pai, por outro lado, só conseguia enxergar sua filha e seu irmão. Qualquer outro olhar não tinha a menor importância.

— Eu não sei, pai. Eu examinei e vi que não foi um dos nosso e muito menos um animal — Eyanosa explicou.

As mãos do homem se afastaram do rosto da filha para se fecharem com força e completa raiva. Como se as palavras estivessem presas, ele disse com dificuldade:

— Foram eles?

Tentando demonstrar forças e segurando as lágrimas, Eyanosa acenou afirmativamente com a cabeça. Seu pai então olhou para trás de maneira inquisidora, como se encarasse todos os olhares curiosos de uma só vez. E então, com uma voz áspera e potente, disse:

— Chamem Macawi!

Um intenso cochichar foi ouvido na tribo enquanto algumas pessoas corriam em busca de Macawi. Por um momento, Eyanosa se alegrou: seu pai por si só já tinha muito poder na tribo, mas Macawi também detinha boa parte da influência. Algo seria feito para revidar o ataque desonroso contra seu tio.

De dentro de uma das casas comuns, Macawi misturava algumas ervas enquanto refletia sobre o estado da tribo. Ela estava crescendo a cada dia e a relação com os homens da vila era saudável. Entretanto, toda aquela questão de Adaky e a garota branca era uma verdadeira dor de cabeça. O aquilo poderia resultar? O homem logo descobriria.

— Macawi — chamou uma mulher do lado de fora. — Mahpee quer vê-lo.

O nativo se levantou rapidamente, deixando para traz um pequeno pilão e suas ervas. De pé, ficou visível sua baixa estatura, ao mesmo tempo em que os cabelos em sua cabeça já estavam ralos. Não era mais um garoto, afinal. Seguindo a nativa, Macawi rapidamente se adaptou aos raios de sol advindos do lado de fora. A tribo como um todo estava acordando, de maneira que cada vez mais índios saíam das casas comuns e iam partir para seus trabalhos diários, como a pesca, a caça, a costura, o plantio, as orações e a educação das crianças. O homem via aquela imagem todos os dias, mas sempre agradecia por tudo aquilo. Ele sentia como se fosse uma missão de vida manter aquele povo feliz e seguro.

Após caminhar por um brevíssimo tempo, Macawi finalmente vislumbrou aquelas três figuras destacadas: Eyanosa e seu pai, além do corpo sem vida de Wohali. A ausência de Adaky também foi notada e um semblante de preocupação genuína logo tomou conta do nativo.

— Mahpee, Eyanosa — ele os cumprimentou brevemente. — O que fizeram com Wohali? E Adaky? Cadê ele?

Macawi se ajoelhou para observar o corpo do seu bom amigo Wohali. O índio chorou, ao mesmo tempo em que imaginava que destino tenebroso poderia ter tomado o jovem Adaky.

— Nem sinal dele — disse Eyanosa, sendo logo em seguida abraçada pelo índio.

— Já imagina quem fez isso, Macawi? — Mahpee perguntou.

Macawi examinou brevemente o corpo do companheiro de tribo. Não viu marcas de flechas, lanças, garras ou mordidas. O buraco da bala, entretanto, estava evidente.

— Não pode ser — Macawi não queria aceitar aquela tragédia. — Por que fariam isso? Wohali nunca fez mal a nenhum deles!

Mahpee estendeu a mão para o homem que se lamentava, dizendo logo em seguida:

— Os motivos eu não posso afirmar, amigo. Mas você acha que isso é necessário? É evidente que foram eles. Não seria a primeira vez em nossa história. Os herdeiros são tão perversos quanto seus ancestrais. Os moradores dessa vila são os mesmos que queimaram nossas casas, estupraram nossas mulheres e nos escravizaram desde muito tempo — ele estava vermelho de tanta raiva. — Não podemos aceitar esse abuso. Mataram um dos nossos e eu garanto que não vão parar!

Eyanosa se assustou um pouco. Mesmo sendo filha daquele nativo, ela nunca o vira esbravejando daquela maneira. Mahpee deu mais uma olhada no corpo do irmão, apenas para estremecer de raiva logo em seguida. Ele continuou:

— Se Adaky está vivo, não é por muito tempo. Temos que agir rápido, Macawi.

O outro índio ouvia com atenção. Ainda assim, as palavras inflamadas do seu amigo não alteraram sua expressão facial. Macawi tentava manter a calma, pensar com clareza, sem que o ódio ou qualquer tipo de revanchismo bloqueasse qualquer boa ideia que pudesse surgir.

— Pode ter sido um mal entendido — ele disse. — Sim, com consequências graves. Mas não será derramando mais sangue que isso será resolvido.

— O quê?! — Mahpee esbravejou de maneira que ainda mais olhos apareceram para bisbilhotar a situação.

— Acalme-se, Mahpee — disse Macawi.

— Acalmar? — Mahpee então se virou para os tantos olhos que observavam a cena e os ouvidos que tão atentamente desvendavam as palavras e frases. — Vejam o que os malditos homens da vila fizeram! Mataram o nosso irmão. Isso não pode ser aceito. Aceitamos isso por tempo suficiente. As terras deles eram nossas terras. O que mais iremos ceder? Nossas vidas? Bem, nossos ancestrais já fizeram isso.

Eyanosa, que antes estava assustada, começou a enxergar melhor aquilo que o pai dizia e a balançar afirmativamente a cabeça. Os tantos índios que estavam ao redor cada vez se aproximavam mais, ao mesmo tempo em que gritavam em concordância com os dizeres do homem revolto.

— Sugiro que invoquemos mais uma vez o deus-protetor. Só isso impediria que fôssemos explorados como no passado! — Mahpee finalizou.

Então, se antes haviam murmúrios e gritos de apoio, um silêncio quase que completo se apoderou da tribo. Macawi olhou para o revolto com um olhar de pura reprovação e disse:

— Você está louco? Sabe o que isso nos custou da última vez? Isso está completamente fora de questão!

Pela primeira vez Macawi apresentou sinais de raiva, de maneira que a reprovação da ideia de Mahpee soou ainda mais dura que as palavras aparentavam ser.

— Você é fraco, Macawi — Mahpee disse em voz baixa, de maneira que o resto da tribo não escutasse. — Você está condenando a todos nós.

Com aquilo, a discussão encontrou seu fim. Insatisfeito, Mahpee se retirou do local. Macawi olhou para Eyanosa, que permaneceu calada. Ele então encarou mais uma vez o corpo de Wohali e disse:

— Temos que preparar os ritos fúnebres. Nosso irmão se foi, mas ainda estamos aqui por ele.

Enquanto isso, bem longe dali, David se questionava sobre o paradeiro de seu companheiro de trabalho, Patwin. Já fazia um tempo que o jornalista não dava as caras e isso preocupava o garoto. Tendo em vista todo o caos que estava acontecendo na vila desde o assassinato de Jessica Muller, o sumiço de um mestiço não deveria ser coisa boa. Dessa forma, ele pensou que o melhor lugar para obter informações seria o bar. Não tardou para entrar no local.

Pelo horário, a falta de movimento já era previsível. David se deparou com o ambiente quase limpo, o que era estranho. Não havia bebida derramada nas mesas e nem o fedor de álcool comum dos fregueses do estabelecimento. Além disso, o ambiente estava bastante silencioso. A única presença no local era uma bela garota que passava a vassoura pelo piso de madeira.

— Bom dia — disse David calmamente.

A moça levantou os olhos e admirou brevemente o bonito garoto que ali se apresentava.

— Olá. Como pode ver, não estamos abertos ainda.

David sentiu uma timidez imediata. Entretanto, ele sabia que não poderia vacilar naquela hora. Aproximando-se lentamente, ele falou da maneira mais tranquila possível:

— Eu me chamo David. Sou novo aqui, sabe? É uma bela vila e sem dúvidas um bom bar. Dá para ver que tem bastante opção — ele apontou para as várias bebidas presentes atrás do balcão.

A moça deu uma breve risada e respondeu:

— Meu pai vai ficar feliz em saber que alguém gosta do bar dele. Ah, me chamo Melinda Green.

— Um belo nome, devo dizer — David se aproximava cada vez mais ao mesmo tempo em que travava uma batalha interna contra a timidez.

Melinda então parou de varrer e, após encostar a vassoura na parede, se virou para o garoto e questionou:

— Mas afinal, o que quer aqui?

Aquilo não estava sendo fácil. David estava se perdendo no olhar da moça, na sua boca e no seu belo corpo. Ela era de alguma forma exótica, mas aquela beleza atraía fortemente o pequeno jornalista e o confundia também. Estava sendo difícil para ele encontrar as palavras certas durante aquele diálogo. Melinda estranhou todo aquele silêncio.

— Você está bem?

E então David se atentou em como parecia um completo idiota ao ficar ali parado sem dizer nada. Embaraçado o garoto começou a falar sem pensar muito nas palavras:

— Perdão, Melinda. Mas você me lembrou um poema antigo. Um verdadeiro clássico, na verdade.

A garota recuou e levantou as sobrancelhas em sinal de genuína surpresa. Definitivamente aquela não era a resposta esperada.

— Que poema? — Melinda questionou com curiosidade.

Puxando do fundo da sua mente, David recitou:

“Temo adquirir

Honras humanas

Ao preço de pecar

Perante os deuses”

Enquanto recitava, o garoto pensava o quanto aquele poema nada tinha a ver com a situação. Mas foi aquilo que sua mente havia o entregado. Ainda assim, contrariando as expectativas, Melinda pareceu encantada.

— Nossa — ela disse com o queixo levemente caído. — De quem é esse poema?

— Íbico. Ou ao menos é assim que me lembro — respondeu David com certa insegurança.

Mais uma vez, um silêncio incômodo tomou conta do ambiente. Melinda se dirigia novamente para a vassoura quando David interrompeu o seu caminhar com as seguintes palavras:

— Não vim só para recitar belas palavras, Melinda — o próprio David se surpreendeu com a formalidade com a qual disse isso. — Estou em busca de um amigo. Você sabe algo sobre o paradeiro de um mestiço? O nome dele é Patwin.

Melinda parou por um momento para pensar. Sim, ela lembrava de Patwin. O homem estava no bar no dia em que Jessica Muller fora encontrada sem vida. Ela também se lembrava de boatos que circularam por lá na noite e madrugada passada. Apesar do encontro estranho com David, ela sentiu confiança suficiente para relatar aquilo que se lembrava.

— Creio que me lembro de seu amigo. Disseram que ele foi preso. Não só ele, mas também Richard, um artista meio louco — ela parou por um instante de falar, mas logo se lembrou de outro detalhe importante. — Ah! Também teve um nativo preso. Estranho não? Dizem que são suspeitos daquilo que aconteceu com a Jessica.

A voz de Melinda tremeu enquanto ela dizia a última frase. Provavelmente por, naquele momento, estar falando com um dito amigo de um dos principais suspeitos da morte de uma pessoa tão amada na vila como Jessica. A verdade é que Melinda tinha um certo ciúme da garota. Jessica era vista como a mais bela, educada e amada moça do local. Melinda era só filha de Ronald Green, o bruto dono do bar. Ainda assim, ela jamais desejou mal algum para a pobre moça que fora vitimada.

— Muito obrigado, Melinda — David quase saiu do bar, mas então uma carga de memórias invadiu sua mente.

O garoto se lembrou da sua última estadia na delegacia e do péssimo tratamento que ele recebeu do dito xerife. Arnold era um verdadeiro idiota e era apenas um fantoche de Edward Muller. David ainda não conhecia o poderoso chefão da vila, mas sabia que não poderia brincar com isso. Ele estava se metendo em um jogo perigoso. Olhando mais uma vez para o balcão do bar, ele viu as tantas bebidas. Lembrou do cheiro fétido de álcool (e também falta de banho) que Arnold emitia e aquilo o fez formular um plano simples.

— O que você tem de mais forte? — David perguntou.

Melinda o encarou com estranheza. Aquele era o garoto mais esquisito com quem ela já conversara. Não que tivesse conversado com muitos, mas David não se enquadrava no padrão que ela conhecia.

— Já disse que estamos fechados — ela tentou falar com gentileza.

— Melinda, sua linda — disse David se esforçando para ignorar qualquer tipo de timidez e se aproximando com mansidão. — Eu posso pagar e você tem o produto. Aposto que seu pai vai ficar feliz em saber que fez dinheiro antes mesmo do bar ser aberto.

Melinda ficou pensativa por breves segundos, mas não podia discordar que a lógica de David tinha sentido. Além disso, o jeito que ele a tratava era extremamente agradável, o que sem dúvidas contou como influência para a decisão final da garota.

— Bem, temos absinto — ela disse.

“Perfeito”, pensou o garoto. Seu plano iria dar certo e ele mal podia acreditar nisso.

— Aceito, Melinda — David falou enquanto colocava as mãos no bolso atrás do dinheiro.

“Droga”, pensou o pequeno jornalista. Por pouco ele não externou sua decepção. Ele estava completamente sem dinheiro. Provavelmente Patwin estava com toda a verba, ou então deveria ter algo guardado no quarto de hotel. Mas talvez não fosse uma boa escolha gastar tanto dinheiro com bebida. David pensou melhor até que Melinda finalmente estava com a bebida em mãos.

— Temos um problema, Melinda — disse o garoto retirando as mãos do bolso sem dinheiro algum. — Mas nada que não possa ser resolvido.

A garota ensaiou um olhar de reprovação, mas aguardou pacientemente para ouvir qual seria a solução mágica do pequeno jornalista.

— Isto aqui — disse David enquanto retirava do bolso de trás o seu livro “Lendas da América” — é uma verdadeira joia da literatura. E você não encontra em lugar algum aqui em Roanoke e nem nas redondezas. Nem mesmo em Nova York esse livro é de tão fácil obtenção.

Aquela definitivamente era uma das piores mentiras que David já criara. Ele mesmo não gostava de inventar aquele tipo de história, mas era por um bem maior, ou ao menos assim ele acreditava ser. Melinda analisou a capa do livro com descrença. Logo em seguida encarou os grandes olhos do garoto e respondeu:

— É um belo livro, claro. Mas infelizmente só aceitamos dinheiro.

— Sem problema! — David quase deu um salto. Estava ficando sem opções. — Façamos assim: eu te entrego o livro como uma forma de representar um compromisso. Você fica com o livro até eu trazer o dinheiro. O que acha? Posso até autografar ou...

O garoto foi interrompido quando Melinda teve uma ideia um tanto estranha para o pequeno jornalista.

— Transcreva — ela disse. — Transcreva no livro o poema que você recitou. Isso seria suficiente até você trazer o dinheiro.

David ficou temporariamente sem ação. Toda aquela história louca realmente funcionou? Ele não conseguia entender a situação. “Não sei o que estou fazendo, mas estou fazendo muito bem”, ele refletiu. Não que qualquer reflexão ajudasse naquele momento: o garoto apenas seguia o caminho no qual era empurrado. Puxando um lápis do bolso, ele escreveu o belo poema na última página do livro.

— Pronto — David disse enquanto entregava o livro para Melinda. — Tem minha palavra. E o meu livro. E o poema grego.

Melinda deu um riso abafado enquanto pegava o livro para si. Devia estar achando a situação tão ridícula e estranha como David achava. Mas fazer o quê? A grande verdade é que estava se divertindo e era realmente atraente ter alguém que não compartilhasse das mesmices da ilha de Roanoke. O garoto era um verdadeiro forasteiro em todos os sentidos: desde a aparência, aos costumes e ao conhecimento.

— Agradeço-lhe imensamente por esta belíssima negociação — David falou quase que sem jeito, enquanto pegava a garrafa de absinto para si.

— Não se esqueça: ainda quero o dinheiro — disse Melinda enquanto dava mais um sorriso tímido e se despedia do pequeno jornalista.

Fora do bar, David mal podia acreditar que saía dali com algo em mãos. “Eu sou melhor do que acredito”, ele pensou enquanto sorria feito um idiota. Seus olhos então se direcionaram para aquele cubículo terrível que era a delegacia. “Hora de voltar ao chiqueiro”, pensava enquanto andava rumo ao seu destino.

Diante daquele detestável local, David escondeu a bebida atrás de seu corpo e bateu na porta rapidamente. Não houve resposta. Aguardando mais alguns momentos, ele se preparou para bater a porta mais uma vez, mas uma voz advinda da rua o fez interromper o movimento.

— O que foi dessa vez, garoto?

Era o maldito xerife que falava. Mal vestido, fedorento e apressado, não tardou para que ele tomasse o espaço de David e, retirando a chave do bolso, abrisse a porta da delegacia.

— O que faz com essa bebida? — Arnold retirou o absinto das mãos de David enquanto examinava o produto.

O garoto teve que se controlar para não reagir de maneira agressiva. “Que filho da mãe idiota!”, ele pensou. Mantendo a calma, ele organizou as palavras na mente e disse lentamente:

— Sei que nosso último encontro não foi nada agradável, xerife Arnold — David fazia gestos apaziguadores enquanto falava, ao mesmo tempo em que sua voz passava uma ideia de pura calmaria. — Mas isso pode mudar. Por favor, deixe-me sentar com o senhor e poderemos trocar uma ideia. A bebida? Bem, somos dois homens. Uma bebida é essencial para qualquer confraternização masculina, não?

Mesmo se achando ridículo pelas palavras proferidas, David estava orgulhoso de si mesmo por sua excelente atuação. Era bem mais fácil atuar para o xerife do que para a belíssima Melinda. “Tenho que treinar mais”, ele refletiu enquanto lembrava dos últimos minutos.

— Interessante — Arnold disse enquanto examinava o rosto de David com estranheza. O que diabos estava acontecendo? Mas não importava: aquela bebida aparentava ser de verdadeira qualidade. — Vamos, garoto, entre.

O pequeno jornalista não podia acreditar que estava mais uma vez dentro daquele lugar. Ele se sentia sortudo, habilidoso e persuasivo. “O pessoal do jornal vai ficar bem orgulhoso. Supondo que acreditem nisso, claro”, pensou David. Arnold tomou a frente e se sentou. O garoto acompanhou o xerife enquanto observava que nada havia mudado de um dia para o outro naquele lugar.

— Essa droga está envenenada? — Arnold questionou.

A face tranquila e bem-humorada de David se converteu em espanto. Ele não esperava uma pergunta dura e direta como aquela.

— Claro que não! — David fingiu um riso debochado. — Posso provar agora mesmo. Tem copos?

Arnold deu uma risada grave enquanto puxava da gaveta ao seu lado dois copos de vidro mal lavados.

— Um homem está sempre preparado — ele disse.

Com a garrafa aberta, David assistiu o seu copo encher-se lentamente com aquela bebida de altíssimo teor alcóolico. “Não posso ficar mais bêbado que ele”, pensou o garoto.

— Vamos. Quero ver se não é um veneno — desafiou Arnold.

O pequeno jornalista encarou o copo. Aquela não era uma prática comum dele, ainda mais levando em conta que existia a tal da Lei Seca. Não que alguém a respeitasse: diziam que até membros da Congresso se juntavam na biblioteca para beber. Provavelmente o povo de Roanoke nem sabia da existência da lei. “Eles sabem algo sobre leis?”, ele pensou jocosamente.

A bebida era realmente forte. David sentiu como se sua garganta estivesse sendo rasgada enquanto o líquido descia por ela. Tudo ardia e seus olhos ficaram imediatamente vermelhos. Arnold quase caiu da cadeira enquanto gargalhava da expressão indiscreta do garoto.

— Ah! Então essa é da boa mesmo! — E começou a encher o seu copo perigosamente.

Não tardou para que, em meio a conversas e viradas de copos, Arnold desmaiasse em meio a sua inevitável embriaguez. David se esforçou para beber o mínimo possível sem que o xerife desconfiasse. O garoto cumpriu relativamente bem a sua missão, ainda que a sua visão estivesse levemente turva e suas pernas tremessem.

Encontrando facilmente o molho de chaves das celas, David avançou para finalmente reencontrar o seu grande amigo e companheiro Patwin, além de toda trupe que estava junto dele. A imagem era lastimável: os três homens ali presentes estavam com marcas de tortura (ou pelo menos alguma briga muito feia). A presença de um nativo também espantou o pequeno jornalista.

— David?! — Patwin se surpreendeu com sua presença.

— Espero não ter chegado tarde — as palavras saíram de maneira meio estranha da boca do garoto, mas eram totalmente compreensivas.

Richard e Adaky ficaram sem compreender toda a situação, mas previam que algo de bom deveria sair dali.

— Hora de dar o fora daqui — disse David enquanto colocava a chave certa na fechadura, finalmente libertando os três prisioneiros.

O quarteto formado rapidamente se direcionou para a saída da delegacia. Passando pelo corpo desacordado do xerife, Patwin disse:

— Olha, devo dizer que estou surpreso e feliz. Mas espero que ele não se lembre do seu rosto.

— Ninguém consegue lembrar de nada depois de consumir tanto álcool — brincou David enquanto todos se retiravam do lugar.

Finalmente do lado de fora, crianças e mulheres encaravam o quarteto incomum, ainda mais pelo fato deles terem saído de dentro da delegacia. Adaky permanecia em silêncio e completamente inseguro. Aquele não era o seu lugar e todos pareciam uma ameaça em potencial, ainda mais levando em conta os últimos eventos. Richard então olhou para o grupo silencioso e disse:

— Vamos para a estalagem da minha mãe. Mas não poderemos ficar por muito tempo, pois com certeza será o primeiro lugar em que Edward nos procurará.


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Notas finais do capítulo

Finalmente com a tribo! O que acharam do capítulo?
Muito obrigado pela leitura e até a próxima ;)



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