O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 34
A noite cai


Notas iniciais do capítulo

Penúltimo capítulo.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754030/chapter/34

As pessoas retornavam com pressa. Após alguns momentos de brigas inúteis e lamentações, viram que o mar não se curvaria perante suas vontades. O povo de Roanoke sabia que não havia escapatória. Dessa maneira, notaram que a única solução seria irem para seus lares e se trancarem até que alguma voz divina os dissesse que tudo estava sob controle. Como isso aconteceria? Bem, eles não sabiam dizer, mas almejavam qualquer tipo de segurança mais que tudo. Por sorte, havia quem pensasse nos detalhes.

— Povo de Roanoke! — Padre Marcus chamava a cada novo grupo que aparecia vagando pela vila. O número de pessoas aumentava rapidamente, mas dessa vez eles pareciam dispostos a ouvir alguma ideia diferente. Permitiram, afinal, que suas consciências tivessem algum espaço diante daquela situação de puro terror. — Sei que as histórias fazem ascender os piores pesadelos em suas mentes. Mas saibam que estamos fazendo nossa parte para resolver isso. Ainda assim, recomendo que todos busquem segurança e abrigo. Ofereço-lhes a igreja de portas abertas para isso. Garanto que nossas portas e o Senhor hão de nos proteger.

“Amém”, pensou o homem de Deus quando terminou aquele discurso. Era duro fazer promessas em situações tão complicadas, mas aquela era a única forma capaz de acalmar aquela imensa quantidade de corações efervescentes. Sem questionar, as pessoas logo trataram de adentrar o templo de Deus. Marcus, do lado de fora, observou a pressa do povo, ao mesmo tempo em que viu os olhares surpresos com o que aparecia diante deles: o compartimento secreto estava exposto.

— Acha que isso é mesmo uma boa ideia? — David, que estava ao seu lado, questionou.

— Não há espaço para segredos, David — o padre respondeu. — Não mais. Além disso, o compartimento irá garantir que, mesmo que o deus protetor invada a casa de Deus, ele não encontrará os menos aptos a se defender.

— Ele não invadirá, padre.

Sem tempo para dúvidas e questionamentos, as pessoas simplesmente aceitaram a existência daquela estranha passagem na igreja. O padre logo tratou de adentrar o local para auxiliar a multidão que lotava o lugar.

— Este compartimento é para crianças, mulheres e idosos. Ficarão seguros aí — explicou.

Marcus imaginava que haveria empurra-empurra e outros tipos de maus comportamentos, mas surpreendeu-se positivamente: as pessoas aceitaram bem aquela imposição e, em pouco tempo, o compartimento estava lotado. Dentre as pessoas que estavam ali, uma delas era Margaret Olsen. Ela estava atônita com os últimos acontecimentos e só queria que tudo aquilo acabasse.

— Padre — ela chamou. — Proteja nosso povo.

— Eu irei — ele garantiu. Transparecia uma confiança que surpreendia a ele mesmo.

Finalmente fechando o compartimento, Marcus e David encararam o restante da multidão que se espalhava pela nave central da igreja. O pequeno jornalista parecia estar sentindo uma pressão ainda maior pelo fato de tantas vidas estarem em jogo.

— Pareciam menos pessoas, padre — disse em tom inseguro. — Aqui, com todo esse aperto, fico com uma sensação estranha. Espero que façamos a nossa parte.

O homem de Deus sorriu para o garoto e, juntos, caminharam para a saída da igreja. No entanto, antes de saírem, depararam-se com uma figura inusitada: o xerife Arnold se fazia no meio daquele povo ávido por salvação.

— David! Padre! — Sua voz estava estranhamente sóbria e ele carregava um revólver em seu coldre. — Eu queria ter dez por cento da coragem e honra que vocês têm. Acho que perdi muito de mim mesmo nesses últimos anos. Mas fico feliz em saber que Roanoke está em boas mãos.

— Você pode nos ajudar, xerife — David esclareceu. — Vejo que tem uma arma e imagino que saiba usá-la. Seria muito útil na luta que em breve travaremos.

— Olha... — Arnold deu um passo para trás e pareceu pensar muito bem em suas palavras. Sua feição revelava um misto de medo e vergonha, e levou um bom tempo para que mais palavras saíssem de sua boca. — Eu não sou tão bom quanto pensam. Não estou pronto para essa luta e é duro dizer isso. Mas estarei aqui com o revólver em mãos pronto para defender toda essa gente. Eu prometo!

O pequeno jornalista sorriu com aquilo. Era óbvio: o ex-alcoólatra não era o homem mais corajoso do mundo, mas havia algo de bom nele. O garoto conseguia perceber uma determinação genuína em sua voz e aquilo o alegrava imensamente.

— Eu confio em você, Arnold — disse para elevar ainda mais a motivação do homem. — Vamos, padre. Temos mais coisas para resolver.

Despedindo-se do xerife, o homem de Deus e o pequeno jornalista finalmente deixaram o lugar. Selvagem ficou por ali mesmo, acanhada com o grande número de pessoas, mas em segurança. Do lado de fora, um sinistro vazio tomava conta da vila. Melinda finalizava o revestimento das balas com toda aquela prata adquirida, ao mesmo tempo em que Jake e Negan chegavam a conclusão de que não havia nada mais para concluir.

— Vamos, David — o jornalista religioso disse com serenidade. — Não há o que possamos fazer aqui fora. Nem eu, nem o Jake entendemos de armas. E é inaceitável colocá-lo em perigo.

— Eu sei — o garoto respondeu de maneira a surpreender a todos. — Que foi? Acham que sou idiota? Eu não sei atirar e temos aqui um time de guerreiros e atiradores de elite. Eu confio neles.

O pequeno jornalista riu junto de seus amigos logo antes de se despedir do padre e partir rumo à igreja junto de seus dois colegas. Mais afastado dali, Patwin, Macawi e Eyanosa tinham uma última conversa antes do anoitecer.

— Eu irei pegar a lança — ainda que cansada, a nativa falou com determinação.

— Não — Macawi a censurou. — Você não está nas melhores condições e ainda há o risco de se deparar com o deus protetor no caminho. Não é uma boa decisão.

— Pelo contrário: vocês dois devem ficar aqui para lutar! Eu conheço a floresta e seus caminhos, sei me virar muito bem — deu uma pausa e respirou profundamente antes de prosseguir. Ela parecia sentir uma parcela de culpa por toda aquela situação, mas uma estranha motivação tomava conta de seus olhos. — Eu fui cega pelo medo. Praticamente desisti da minha própria tribo por medo do que poderia encontrar caso voltasse para o nosso lar. Não vou deixar que esse medo me domine novamente! Terei a lança em mãos em tempo hábil, confiem em mim.

O mestiço olhou nos olhos da mulher a qual ele tinha tanto apreço. Pôde enxergar a confiança e desejo que ela tinha naquela missão e ele não encontrou motivos para dizer não.

— Vá — disse com tranquilidade. — Tome cuidado e seja rápida. Eu confio em você. Saiba que estará honrando esta ilha e a Mãe.

Dando um sorriso discreto, a índia o beijou e, logo em seguida, despediu-se de Macawi. Partiu com agilidade rumo ao lugar que anteriormente pertencera a sua tribo. As distâncias eram grandes, mas Pat confiava que ela daria conta do recado.

— Acabou de revê-la após um bom tempo e já a envia em uma missão perigosa? — O índio mais velho questionou o jornalista. — Acha que foi sábio?

— Ela sobreviveu até agora sem a ajuda de ninguém. Céus, eu mesmo estaria morto se não tivesse encontrado várias mãos no caminho para me erguer. Mas ela? Ela é forte, Macawi. E o plano faz sentido: Roanoke precisa de nós bem aqui — o mestiço respondeu com uma confiança capaz de causar inveja. — Confie no sangue da sua tribo.

Longe dali, oculto pelos misteriosos bosques da ilha, Mahpee preparava-se para o ato final de sua vingança. Sentado na terra úmida, ele apreciava o escurecer do céu ao mesmo tempo em que sentia a gélida brisa esfriar seu corpo. Estar ali, em contato com a natureza, trazia uma intensa paz para seu coração. Sim, ali ele podia esquecer um pouco de todo o sangue derramado, dos sofrimentos e das traições. Só existia ele, a Mãe e o deus protetor. A criatura que desafiava a racionalidade estava ao seu lado: encolhida, machucada e enfraquecida.

— Oh, deus, em breve você terá motivos para se erguer — o índio proferiu enquanto preparava mais uma porção de ervas.

Mahpee sabia bem que o deus protetor precisava descansar após cada noite de caçada. Toda aquela ferocidade tinha um preço e, ainda que distorcido e modificado, aquele ainda era o frágil corpo de Adaky. O nativo mais velho ficava imaginando se havia ainda algum traço do espírito do garoto, mas tudo que ele conseguia enxergar era uma criatura cansada, monstruosa e inumana. O corpo esguio e acinzentado era assustador, mas o mais sinistro eram os olhos e seus estranhos sons. No entanto, Mahpee estava seguro ali. “Hoje encontrarei um fim digno para toda essa tortura”, pensou.

Sim, ele sabia que o ataque deveria ser definitivo. Imaginava que estivessem o procurando por aí e a qualquer momento ele e o deus protetor poderiam ser abatidos, ainda mais com a criatura em tão frágil estado. Mas era só questão de tempo para a divindade encontrar a sua força e se tornar capaz de fazer o que faz de melhor: derramar o sangue dos inimigos do povo secotan.

— Deus, sabe que faço isso pelo seu povo, não é? — Mahpee começou a falar, como que em um desabafo. — O povo da vila não vai parar, eu sei que não. Não adianta eliminar o líder deles. Sempre haverá alguém querendo vingança ou desejando conquistar algo que é nosso. Não posso deixar isso acontecer. Sei que meus irmãos de tribo irão me chamar de traidor pelos tempos que hão de vir. Mas também sei que uma outra parte irá reconhecer que fiz tudo isso para salvá-los. Eu vi o mal que habita o povo branco e não pude ficar parado. É apenas isto: sou um secotan defendendo seu sangue. Que eu seja julgado pelos deuses quanto a isso. Sei que fiz e faço a minha parte.

Com aquelas palavras ditas, viu que a criatura ao seu lado se mostrava cada vez mais disposta. A noite também tomava conta do céu ao mesmo tempo em que as ervas estavam preparadas. Uma intensa chuva ia tomando conta da ilha e o índio sabia: havia chegado a hora.

— Que a justiça seja feita — disse em voz alta enquanto iniciava sua marcha rumo à vingança final.

Em meio a tempestade que recaía sobre o seu mundo, Patwin refletia: como havia parado ali? O que uma simples viagem em busca do sangue de seu pai o fizera viver? Bem, certamente aquela situação não era a mais desejável, mas era o que o destino lhe oferecia. “Que eu possa ajudar este lugar de alguma forma”, o mestiço pensou em meio a toda aquela ansiedade. Ele podia sentir que a qualquer momento uma forma bestial apareceria na pequena vila.

— O mundo nos reserva grandes surpresas, não acha? — Macawi aproximou-se e demonstrou uma certa amargura em sua voz. — Eu nunca pensei que lutaria para defender uma vila de brancos.

— Lutamos por toda a ilha, Macawi. Só espero que isso tudo acabe logo — Pat segredou.

Simultaneamente, Padre Marcus e Melinda equipavam as armas com as balas revestidas de prata. A garota havia feito um trabalho excepcional e era incrível o fato dela ter conseguido aquilo em tão pouco tempo.

— Estou impressionado — o homem de Deus comentou enquanto separava a munição agilmente.

— Espero que minha mira também o impressione — ela brincou, mas logo viu o rosto de surpresa do padre.

— Você pretende lutar contra besta?

— Por que não? Esta não é só a terra do meu pai, mas a minha também. Devo fazer de tudo para defendê-la. E eu sei atirar, então por que não usar isso a favor de todos?

Com aquilo no ar, só restou a Marcus concordar. Melinda não era só corajosa, mas também esperta e sabia bem o que estava fazendo. Certamente não se colocaria em uma situação arriscada caso não soubesse exatamente como escapar, ou ao menos era assim que o padre queria acreditar.

Após alguns minutos, o quarteto finalmente se reuniu. Melinda e Marcus entregaram uma espingarda e um revólver para Patwin. “É sempre bom ter uma reserva”, o mestiço pensou enquanto examinava o que havia recebido. Macawi optou por continuar com o seu arco, pois não fazia ideia de como usar aquelas armas de fogo.

— Bem, já carreguei as armas com as balas de prata — Melinda começou a explicar. — Há ainda algumas balas reservas, mas não é muita coisa. Em última medida, ainda temos bastante munição convencional. Espero que nos sirva bem.

E, com todas as explicações dadas, o grupo se espalhou pela linha que a era a pequena vila de Roanoke. Enquanto caminhava, Patwin lembrava-se dos seus primeiros passos naquele lugar. Lembrava-se de comparar mentalmente com a imensidão de Nova York. Aquele lugarzinho no meio do nada era, de alguma maneira, desprezível para o homem com sangue secotan. Ainda assim, tinha que admitir: sofreu e cresceu como nunca por ali. Havia adquirido marcas as quais jamais se livraria. Certamente, era um homem mudado. Aquela noite iria apenas coroar – ou enterrar – tudo aquilo.

— Tenham fé — o padre disse de maneira firme. O medo penetrava seus ossos, mas ele segurava na mão de seu Deus e se mantinha firme. — Não estamos fazendo isso em vão.

A escuridão desabou sobre eles. Das sombras, puderam ver a aproximação de um homem envolto em fumaça. Ouviram a sua voz abafada declamar cantos sombrios e orações a deuses que eles, com exceção de Macawi, desconheciam. Mahpee já estava na área central da vila, mais ou menos entre o bar e a delegacia, quando o índio mais moderado mostrou as caras para seu irmão de tribo.

— Irmão — a voz de Macawi estava falha e cheia de medo e tristeza. — Nós não precisamos disso. A justiça já foi feita: os homens que comandaram o massacre de nossa tribo estão mortos.

Mahpee soltou uma risada irônica enquanto observava o vazio do local. Patwin, Melinda e Marcus permaneciam ocultos enquanto torciam para que o nativo aliado desse um jeito em toda aquela situação.

— Irmão? É assim que me chama? Você deixou de ter qualquer vínculo com a tribo quando decidiu se unir com esse miserável povo. O que faz nesta vila, afinal? Onde estão todos? Posso não os ver, mas o nosso deus pode — o tom ameaçador da voz do índio estremecia aquele que um dia fora seu amigo mais próximo.

— Não precisa terminar assim, Mahpee! Veja bem, até mesmo a sua filha está conosco. A Eyanosa... — Macawi fora rapidamente interrompido.

— Cale-se! Não ouse falar de minha filha. Ela está morta como todos os outros. Caso não, por que não está aqui com você? Não use minha filha como instrumento para suas falcatruas, Macawi! — Irritado, Mahpee precisou de um tempo para encher seus pulmões de ar. Aquela fumaça ardente adentrou seu corpo e ele sentiu-se inflamado de ódio. Não aguentava mais esperar. — Que todo esse engodo tenha fim!

E, ao dizer aquilo, deu um tenebroso grito que ecoou por toda a ilha. Tremendo de medo, Macawi viu uma sombra se aproximar por trás do odioso índio. A sombra cresceu e, estando perto o suficiente, tornou-se assustadoramente visível: alto, com os ossos distorcidos e um olhar demoníaco, o deus protetor era muito pior do que a imaginação poderia criar. Apesar do bom nativo já ter visto aquela figura anteriormente, era muito diferente estar do lado oposto em relação a ela. Ao mesmo tempo, Patwin, Marcus e Melinda se enchiam de medo. A pele acinzentada, o grunhir feroz e os dentes afiados como facas eram só o começo. Havia algo na postura daquela fera que deixava claro que ela estava esfomeada e não pararia por nada. “Que pare por nossas balas”, o mestiço implorou.

Não houve mais conversa. Em um gesto de puro desprezo e desejo cego por vingança, Mahpee ordenou que a fera atacasse tudo que houvesse pela frente. Macawi agilmente sacou o arco, mas logo viu que não teria tempo para disparar uma flecha: o deus protetor estava logo a sua frente. E então Patwin resolveu agir. Mirando sua espingarda com cuidado, disparou enquanto visualizava em sua mente a bala de prata acertando em cheio a cabeça daquele monstro. No entanto, o projétil passou longe da criatura. Ainda assim, o estouro da arma chamou a atenção de seus algozes.

— Ocultos como covardes! — Gritou o índio antes de recuar e desaparecer na escuridão.

O mestiço se viu em uma situação complicada: o deus protetor agora o encarava com fúria ardente em seus olhos. Começando a correr, a criatura mostrou ter uma agilidade sobre-humana. Tentando recarregar a arma, Pat se atrapalhou e deixou que uma de suas balas caísse. Por sorte, pôde contar com a precisão de Melinda, que agilmente acertou o peito da criatura. Padre Marcus também disparou, mas errou por muito pouco. Urrando de dor, o deus protetor sangrava intensamente, ao mesmo tempo em que o ferimento não apresentava qualquer indício de recuperação. Um sangue escuro, quase negro, escorria de seu peito e umedecia o chão. Ainda assim, o monstro era forte e era evidente que não cairia tão facilmente.

Cheia de raiva, a criatura virou-se para Macawi que, quase sem forças, disparou uma flecha em vão. Foi uma cena trágica: assim como fizera com Edward Muller, a divindade ergueu o nativo e o perfurou brutalmente com suas garras. Sangues e vísceras se espalharam, enquanto Patwin ainda brigava para conseguir recarregar sua arma. “Isso não pode estar acontecendo!”, o mestiço gritava consigo mesmo mentalmente. Sedento por sangue, o deus protetor procurava por mais vítimas. Seus olhos infernais observavam todo aquele cenário de horror. De um lado, encontrava a corajosa e certeira Melinda Green. Do outro, o homem de Deus recarregava sua arma enquanto tremia de medo. E, logo atrás, o mestiço sofria com sua falta de habilidade com armas de fogo.

Focando em quem mais havia lhe feito mal, a divindade secotan foi em direção a Melinda. A garota mirou sua espingarda já carregada para o ser acreditando ser um tiro fácil, mas foi surpreendida: o deus protetor parecia ter alguma inteligência, afinal. Ao invés de simplesmente correr em linha reta, ele passou a seguir uma trajetória em ziguezague, dificultando qualquer acerto. A filha de Donald Green disparou e errou. Vendo-se diante da morte, no entanto, foi salva por um tiro certeiro do padre. A criatura estava a poucos metros da garota e já estendia sua mão cheias de garras. O tiro de Marcus acertou aquelas afiadas lâminas feitas de ossos em cheio, partindo-as em pedaços e machucando profundamente o membro daquele demônio. Mais uma vez sentindo uma dor a qual não estava acostumado, o deus protetor reagiu com violência e acertou um golpe em Melinda com sua mão já sem garras. A moça voou alguns metros e se chocou contra a parede do seu bar, desmaiando instantaneamente.

Com agora só duas pessoas despertas e aptas para enfrentar o terrível monstro, Patwin sentiu o gosto da morte viajar por todo seu corpo e instalar-se em seu coração. “Não, pai, não posso errar agora”, ele pensou com todas as suas forças. E errou novamente. Por sorte, o padre foi mais certeiro. Com um tiro direto na perna do deus protetor, o homem de Deus e o mestiço puderam ver a odiável criatura mancar e até mesmo soltar um grunhido de dor digno de um cão amedrontado.

A criatura sentiu genuíno medo e, desesperada, procurou por qualquer forma de fugir. Ela simplesmente não estava acostumada com qualquer tipo de dano permanente. No entanto, os moradores da vila tiveram azar: os olhos do deus protetor pararam na igreja. Vendo as grandes portas de madeira, lembrou-se da sua prazerosa noite na mansão de Edward Muller. Sentia bem a passada facilidade em romper aquelas portas e matar aquele homem. Sim, aquele era o caminho que a divindade queria seguir. E, com isso em mente, agilmente destruiu a entrada do templo sagrado.

Patwin e Marcus entraram em completo desespero. Correndo como se não houvesse amanhã, a dupla imaginava as piores situações possíveis. O mestiço enxergava claramente a imagem de um David dilacerado, enquanto o padre visualizava a igreja encharcada do sangue dos moradores de Roanoke. Não havia final feliz para aquilo.

Enquanto corriam, o deus protetor se deparou com uma imensa quantidade de carne fresca. Muitos homens se faziam ali presentes, mas a sua frente, com o corpo congelado de medo, a entidade encontrou um pequeno e apetitoso garoto. David não conseguiu nem mesmo gritar quando se viu agarrado pela criatura. Já havia aceitado a morte quando viu aqueles afiados dentes se mostrarem a sua frente. No entanto, algo aconteceu. Em um ato inesperado, Arnold jogou-se entre o deus protetor e o pequeno jornalista. O garoto pôde ver o xerife encharcado de sangue enquanto os dentes da divindade penetravam sua carne. Usando suas últimas forças, o homem da lei disse:

— Corra! — E, sacando seu revólver, deu uma sequência de tiros na cabeça do monstro.

Em um piscar de olhos, a multidão que havia dentro da igreja correu para fora do local. Foi um empurra-empurra, desespero e falta de controle. No fim, Patwin levou muito mais tempo para adentrar o local do que esperava. O padre acabou ficando pelo caminho. Finalmente adentrando a casa de Deus, o nova-iorquino encarou os olhos da profana criatura secotan enquanto ela regenerava todo o dano que a sua cabeça havia sofrido.

— Agora somos apenas nós dois — o mestiço disse enquanto tentava ganhar algum tipo de coragem divina. Estava ele e o deus protetor diante um do outro. David já havia se retirado junto de Selvagem, e apenas o corpo já sem vida do xerife marcava presença no cenário. As mulheres, crianças e velhos permaneciam ocultos no compartimento secreto da igreja, apenas ouvindo e sofrendo com um intenso pavor. — Vamos!

Sacando o revólver, Patwin teve que ser rápido. O demônio saltou sobre ele e o até então jornalista foi ágil em disparar. Sentiu o sangue quente da criatura se espalhar por seu corpo, mas também sofreu com o peso daquele ser sobre ele. Estando acima do mestiço, o deus protetor mostrava seus terríveis dentes e se preparava para acabar com tudo aquilo de uma vez. Erguendo suas garras restantes, estava a um segundo de acabar de vez com a vida de Patwin Winslow. Sem conseguir mover os braços ou mesmo disparar seu revólver, o mestiço apenas fechou os olhos enquanto aguardava a morte. O medo tomou conta de seu ser e ele só queria que aquele momento simplesmente desaparecesse. “Que seja rápido”, pensou desesperadamente.

E desapareceu. Sentindo algo que não esperava, o homem de Nova York abriu os olhos ao provar do sangue quente do deus protetor que atingiu seu rosto. Examinando bem a situação, viu que uma ponta curva, afiada e prateada atravessava o peito da criatura, que urrava em desespero. Agarrando-se a sua vida, o mestiço desvencilhou-se do deus enfraquecido e deu um tiro em sua cabeça. Sem conseguir se regenerar, a criatura ainda urrou de desespero uma última vez antes de finalmente desistir de se agarrar a vida.

Com um ponto final naquela batalha, Patwin pôde entender toda aquela situação. Erguendo-se, pôde ver que quem segurava a lança prateada era Eyanosa. A nativa ofegava e sofria de grande nervosismo, mas parecia ter conquistado um pouco de alívio, afinal. O povo de Roanoke, por outro lado, observava toda a cena a distância enquanto os medrosos corações enchiam-se de alegria por terem sobrevivido àquele pesadelo. Próxima ao bar, Melinda finalmente despertava e sorria sabendo que aquele inferno teve fim.

Deitando-se no chão da igreja, o mestiço fechou os olhos e agradeceu. Havia sobrevivido e, apesar das vidas perdidas, o povo de Roanoke estava a salvo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eu nem sei o que dizer aqui. Enfim, certamente pensarei em algo bacana para quando o último capítulo chegar hahaha. De toda forma, obrigado por mais essa leitura e por todo o apoio ♥
Diz aí o que achou e o que espera do capítulo final de "O Sangue do Mestiço". Até breve!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Sangue do Mestiço" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.