O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 35
Ciclos


Notas iniciais do capítulo

Capítulo final.

Boa leitura!



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Deitado no chão, Patwin só abriu os olhos quando sentiu o tenro toque de Eyanosa. Estando também suja de sangue, ela tremia depois do momento de grande tensão, mas podia sentir um enorme alívio. Deitou-se ao lado do mestiço e disse:

— Acabou — ofegante, sua voz saía com dificuldade, mas era carregada de toda aquela paz que lhe fazia tanta falta. — Estamos livres.

“Livres?”, a mente de Patwin questionou. Ele ainda tinha suas dúvidas. Mahpee ainda estava por aí, e o jornalista temia que ele pudesse fazer algo de perigoso. No entanto, não era o momento de empreender uma caçada: sentia dor por todo o corpo e sua cabeça latejava depois daquele embate. Seu coração, no entanto, aos poucos voltava a desacelerar.

— Obrigado por me salvar — foi a única coisa que ele conseguiu dizer antes de segurar a mão da nativa.

Mais distante daquela cena, as pessoas da vila comemoravam o fato daquele terrível monstro ter encontrado seu fim. O corpo do deus protetor estava em terrível estado e era impossível identificar que aquilo fora, em algum momento, um ser humano. Ninguém nunca saberia que aquele ser havia sido o doce Adaky. Ao mesmo tempo, David e Marcus agradeciam aos céus por aquele horrendo pesadelo ter encontrado seu fim. No entanto, o pequeno jornalista ainda tremia só de pensar que quase perdera a vida.

— Arnold... — sua voz era carregada de pesar e de um certo receito no que pudesse ser dito. — Ele deu a vida por mim. Eu não merecia isso.

O padre, observando que o garoto estava entrando em um triste processo de autoflagelação, interviu dizendo:

— David, Arnold era um homem livre e dotado do poder de tomar suas próprias decisões. Eu o conhecia há anos, acredite. Era um bêbado e vivia para o álcool como eu vivo para a Igreja. Não existia nada em sua vida que valesse a pena morrer. Saiba, garoto: você deu motivação ao homem. A perda dele é trágica, mas não foi em vão. Não se sinta culpado — dito aquilo, deu um tenro abraço no pequeno jornalista e sentiu que lágrimas escorriam pelo rosto do garoto. — Vocês todos foram heróis aqui, acredite.

Dentro da igreja, Patwin e Eyanosa finalmente ergueram-se. Ouvindo chamados de ajuda advindos do compartimento secreto do local, o mestiço acionou a entrada secreta e permitiu que todas aquelas mulheres, crianças e idosos saíssem dali. Dentre as pessoas ali presentes, Margaret Olsen se destacava. Diferente do medo generalizado que se espalhava ali, ela mantinha uma expressão de determinação e coragem. Comemorou assim que viu a imagem de Pat.

— Você conseguiu! — Ela correu para os braços do homem, o que gerou um olhar desconfiado de Eyanosa. — Obrigada por tudo, Patwin.

Sentindo aquele doce abraço, o mestiço podia perceber mais mensagens do que as palavras podiam expressar. Aquela mãe já havia perdido demais. Perder suas raízes seria algo catastrófico. Aliás, não era só ela que agradecia: mais uma vez, a igreja ia sendo ocupada pelas diversas pessoas que minutos atrás haviam fugido dali. Elas encontravam um cenário cheio de sangue e morte, mas a esperança e a vitória brilhavam mais do que tudo.

— Patwin! — Uma voz se ergueu honrando o nome do mestiço. — Patwin!

Foi só questão de tempo para um coro se iniciar repetindo o nome do homem. Se antes ele era visto com certa estranheza, agora era celebrado como um verdadeiro herói. No entanto, o jornalista sabia que não era justo que as honrarias fossem apenas para si. Além disso, dentre as pessoas que o celebravam, ele podia se lembrar de alguns rostos que participaram da incursão contra a tribo secotan. Aproveitando toda atenção que tinha, ele pediu silêncio para poder falar. Tendo seu desejo concedido, começou:

— Vocês estão mal informados — falava com calma, mas de maneira firme. Caminhou ao lado da índia até o corpo sem vida do deus protetor. A multidão abria passagem para os heróis de Roanoke. — Este monstro aqui foi fruto de nossos erros. Nós o criamos no momento em que decidimos caçar uns aos outros. Ferimos nossos semelhantes por nos focarmos exclusivamente em nossas diferenças. E ainda justificamos isso dizendo que foi “justiça”. Vocês por acaso sabem o que é justiça?

Um clima tenso pairava no ar, mas o povo mantinha uma atenção ininterrupta. Patwin não entendia de onde vinham aquelas palavras, mas sentia que deveria dizê-las. Prosseguiu:

— Jessica Muller não foi morta por um índio ou “selvagem”, como vocês tanto falam. Ela foi morta por um homem que vivia para servir o tão adorado Edward Muller. Será que o poder dele nunca foi questionado? Será as ideias dele eram realmente impecáveis? Ou será que o povo “civilizado” de Roanoke preferiu o conforto da obediência cega? — Aquela informação era novidade para a população. Ensaiou-se um espalhar de cochichos espantosos, mas o silêncio logo imperou quando o mestiço voltou a falar. — O fato é: nós não vamos chegar a lugar algum matando uns aos outros. Edward quis vingança. Os nativos também quiseram a deles. Será que alguém quer ir até a tribo se vingar também? Espero que não. Eu estou cansado de toda essa violência, esse ciclo sem fim que nos arrasa por fora e por dentro. Vocês não enxergam como o mundo está? Há dez anos a Europa partia no meio por causa de uma guerra. É esse caminho que queremos? Eu não aguento mais. Vocês aguentam?

Com o questionamento lançado, aos poucos as pessoas foram dando suas respostas. “Não” era a palavra que mais se repetia e, com o passar dos segundos, foi ganhando força. Respirando profundamente, Patwin olhou para Eyanosa e viu que a nativa sorria encantada com as suas palavras. Ele caminhou para a saída da igreja e finalizou:

— Então vocês sabem bem o que não fazer. Ah, e só para constar: a verdadeira heroína é esta índia ao meu lado, ou melhor, “selvagem”. Ela merece todas as celebrações, não eu.

Dando um passo para fora da casa de Deus, o mestiço viu a mulher a qual ele tanto se importava sendo, pela primeira vez, admirada pelas pessoas da vila. Elas se aproximavam e observavam a índia de perto, uma imagem estranha para a maioria. No caminho, enquanto se desvencilhava das pessoas, o jornalista ouviu pedidos de desculpa por todo o massacre da tribo. “Acho que minha missão aqui está feita”, pensou com felicidade e orgulho.

Do lado de fora, Melinda Green já estava desperta. Apesar do golpe que levara da besta, a corajosa garota estava bem. Percorreu alguns metros e se viu diante do Padre Marcus e de David. O garoto ainda estava tenso, ainda que aos poucos recuperasse a calma. O homem de Deus, por outro lado, mantinha uma expressão de alívio e gratidão.

— Graças a Deus nos livramos daquela coisa — apesar de toda a coragem, era possível sentir algum resquício de medo na voz da menina. — Você está bem, David?

Tentando segurar as lágrimas, o garoto se virou para Melinda. Ainda que seus cabelos estivessem despenteados e suas roupas sujas de terra, ela mantinha sua beleza singular. David então a abraçou com força e, próximo ao seu ouvido, sussurrou:

— Ele quase me matou, Melinda — tentava manter a calma, mas a voz saía trêmula de sua boca. — Mas eu estou bem. Você foi incrível nessa luta, hein?

Dando um risinho, Melinda afastou um pouco seu rosto e encarou por longos segundos os olhos do pequeno jornalista. Eles estavam úmidos, mas pareciam se iluminar diante da imagem da moça. O garoto sentiu um formigar que se iniciou em seu estômago e se espalhou por todo o corpo. Engolindo em seco e criando uma coragem que superava a de enfrentar divindades e malucos poderosos, David deu um intenso beijo na garota. No entanto, os dentes de ambos se chocaram e o momento logo foi cortado.

— Não foi assim na minha imaginação — o pequeno jornalista não conseguiu conter uma envergonhada risada diante da situação. Para sua sorte, Melinda também ria estupidamente.

— Tudo bem — ela disse em uma intensidade mais baixa após o cessar dos risos. — Podemos treinar.

E, com um sorriso sorrateiro, o mais novo casal de Roanoke repetiu o movimento, dessa vez com mais sucesso. Não querendo atrapalhar o momento, Padre Marcus já havia se afastado há algum tempo. Caminhou até finalmente encontrar o mestiço. Ele ainda estava recebendo abraços e agradecimentos de muitas pessoas, mas logo conseguiu espaço e tempo para conversar com o homem de Deus.

— Conseguimos, Patwin. Eu não consigo expressar em palavras toda a felicidade que sinto — dizia com sincera emoção. — Por um momento, pensei que perderíamos tudo. Quando o demônio adentrou a igreja, senti que tudo pelo que lutamos seria em vão. Mas você e a Eyanosa mudaram tudo. Céus, até mesmo o Arnold se sacrificou para tentar evitar uma tragédia. Parece que cada um estava no lugar certo e na hora certa.

— Menos o Macawi — o mestiço disse com pesar. — O homem só queria paz. Não era justo que isso acontecesse com ele.

— E a paz virá! Não falo de uma paz cega, surda e muda para os problemas. Mas uma paz real. Patwin, essas pessoas estão admirando uma índia, ou como chamam, uma “selvagem”! Você acreditaria em algo assim dias atrás? Sei que estamos longe do estado ideal, mas evoluímos. E você foi uma peça fundamental nisso — o padre deu um abraço no jornalista. — Sabe, vimos que John Dee era aliado de alguns índios. Essa aliança nos salvou hoje. Que possamos restaurá-la para preservar mais vidas hoje e no futuro que há de vir.

O mestiço permitiu-se sorrir. Sim, ainda sofria pelas perdas daquela batalha, mas era inegável que a vitória era maior que tudo aquilo. A esperança havia prevalecido e um novo sol nasceria diante de Roanoke.

— Eu pude ouvir o que você disse na igreja — Marcus continuou com suas belas e calmas palavras. — Você foi perfeito. Sabe, há mil motivos para odiar o próximo, mas devemos nos agarrar a única razão existente para amar incondicionalmente.

Após ouvir aquilo, Patwin resolveu aproveitar os ruídos daquela atípica noite. Sim, havia muito barulho por ali: pessoas comemoravam pelo simples fato de estarem vivas, o vento continuava com sua cantoria sinistra e até o mar tinha a sua voz presente. Ainda assim, o homem sentia-se integrado de alguma forma com o lugar. Olhava para Eyanosa rodeada de novos admiradores e sorria. Ela era linda e toda sua carga de história e cultura secotan era de se admirar. O mestiço se via nela. Por outro lado, pôde também ver David e Melinda juntos. O casal estava um pouco mais afastado da multidão, mas o jornalista aproveitou para observar os genuínos sorrisos do garoto entre os beijos que ele dava na belíssima moça. Ele era como um irmão, ou até mesmo um filho para Pat. Ele também enxergava Nova York ali, e identificava-se da mesma maneira.

— Talvez eu seja tudo — disse em voz alta, provocando assim um olhar de estranheza do padre. — Eu não preciso ser o mestiço, o índio ou o nova-iorquino. Sou só Patwin Winslow. Parecido e diferente de tudo ao mesmo tempo. Quem não é?

Ainda sem compreender totalmente o que se passava na cabeça do homem, o padre deu um sorriso social. Após aquele momento de festividade, as pessoas aos poucos começavam a voltar para as suas casas. Marcus, no entanto, sabia que havia trabalho para ser feito.

— Arnold merece um ritual de passagem digno. O mesmo para Macawi. Acredito que este gostaria de algo condizente com sua cultura — falou para Patwin.

— Sim — o mestiço respondeu. — Eu e Eyanosa cuidaremos dele.

Com aquilo determinado, as horas passaram em alta velocidade enquanto cada um dos falecidos tinha um destino digno. Marcus celebrou uma singela missa em homenagem a Arnold, sendo ela acompanhada por alguns poucos amigos do xerife. Ao mesmo tempo, Patwin e Eyanosa levaram o corpo de Macawi para o bosque e realizaram o primeiro passo do ritual secotan, erguendo o corpo a uma altura de cerca de dois metros. A nativa estava um tanto emotiva com aquilo, mas a felicidade por ter colocado um fim a todo aquele inferno era maior.

— Ele está orgulhoso de você, Eyanosa — Pat a consolou. — A Mãe irá abraçá-lo com todo o afeto que ele merece.

Horas se passaram e a tempestade abandonou a ilha. O mar já estava calmo e os primeiros raios de sol atingiam o úmido solo de Roanoke. Pássaros cantavam e um novo espírito parecia tomar conta da ilha como um todo. No bar de Melinda Green, David bebia sem ter que pagar nada. Sentada ao lado dele, a garota sorria infinitamente e aproveitava aquele momento como podia.

— Eu não queira ir embora hoje. Sinto que poderíamos ter aproveitado melhor todo o tempo que passei na ilha — o pequeno jornalista comentou. — Mas valeu a pena.

— Aproveitado melhor? Você pagou bebida com um poema, salvou seu amigo da prisão, lutou contra um tirano e ainda por cima nos ajudou a enfrentar um monstro. Acha que não aproveitou bem? — Melinda deu uma gargalhada. — Isso pra não citar nossas últimas horas.

David não conseguiu conter uma risada envergonhada, que logo se converteu em um riso social ao ver a porta do bar se abrir. Patwin, Eyanosa, Padre Marcus, Selvagem, Negan, Jake e Margaret adentraram o lugar.

— Ah, então você estava aí — Jake falou de maneira totalmente indiscreta. — Céus, pensei que tivesse sido devorado por algum outro ser demoníaco.

David olhou para Melinda e viu sua garota com o rosto vermelho de vergonha, ao mesmo tempo em que ele mesmo não sabia muito bem como reagir àquilo tudo. Pat e sua turma logo se sentaram nas cadeiras restantes. O mestiço disse:

— Como no primeiro dia em que estive aqui. Só que com pessoas mais simpáticas.

O comentário do até então jornalista gerou gargalhadas generalizadas. Era um momento de leveza bem raro em Roanoke, ainda mais diante dos eventos recentes. Margaret parecia finalmente ter encontrado paz. Ela olhava para Melinda e cada sorriso da garota enchia o coração da mãe de alegria e esperança. Ao mesmo tempo, a jovem também se sentia feliz com sua independência, enquanto era recíproca em relação aos sentimentos da mulher mais velha.

— Eu não quero ser o estraga prazeres, mas o nosso barco deve sair em breve — Negan falou com certa tristeza. Ele via que o pequeno jornalista estava realmente feliz, mas ele tinha um dever para com o pai do garoto. — Vamos, David. Patwin, você vem, não é?

E então um incômodo silêncio tomou conta do bar. Simultaneamente, Melinda encarava David, enquanto Eyanosa olhava para o mestiço. O homem mais velho, no entanto, foi o primeiro a se posicionar.

— Amigos, vocês sabem que vivi eventos verdadeiramente intensos aqui. Eu não sou o mesmo, isso é um fato — Patwin mantinha sua fala serena, mas havia uma carga emotiva em sua voz. — Voltar para Nova York não me faria completo. Eu não me sentiria em casa, ou mesmo que eu estaria fazendo a coisa certa. De maneira igual, eu também não posso ser só mais um membro em uma tribo indígena. Eu não sou um índio. Mas, aqui em Roanoke, eu sei que posso ajudar. Sei que posso fazer com que a vida das pessoas melhore. Posso ser um elo entre a tribo e vila, alguém que una e não separe. E por isso eu escolho ficar aqui.

Com aquelas palavras ditas, o mestiço pôde ver o sorriso da nativa. Ao mesmo tempo, David queria começar a falar, mas foi censurado por Jake.

— Nem pense nisso, garoto — falou o jornalista.

— Eu sei — o pequeno jornalista não obedeceu. — Sei que tenho que voltar para Nova York. Não pretendo dificultar meu retorno. Essas semanas em Roanoke foram infernais. Mas querem saber? Eu aprendi muito. Definitivamente também não sou mais o mesmo. E sei que tenho muito a servir pelo jornal com tudo que aprendi.

O garoto podia sentir uma expressão de saudade e tristeza se formar no olhar Melinda. Ela queria ao menos que ele pudesse prolongar um pouco mais sua estadia. David, porém, voltou-se para ela e segredou-lhe:

— Eu vou voltar.

Teve como resposta um tenro beijo da jovem, que surpreendeu a todos.

— Só mais uma coisa — Pat pediu a palavra mais uma vez. — Eu sei que vocês são jornalistas e sei também que as coisas que aconteceram aqui dariam um ótimo furo no jornal. No entanto, vocês não precisam contar tudo. Eu sei que parece absurdo, mas John Dee escondeu todas aquelas informações por um motivo: ele temia que todo o poder envolvendo o nascimento do deus protetor caísse em mãos erradas. Não podemos tornar isso público. Falem de Edward Muller e de como o poder concentrado nas mãos do homem é perigoso. Falem dos perigos da omissão, da inércia e como tudo isso fortalece um ciclo de violência. Mas falem também que isso pode ser quebrado. Claro, vocês são livres para revelarem o que quiser, mas é só isso que peço.

Além da atenção de todos, o mestiço também recebeu a concordância. Mesmo o antipático Jake compreendeu bem a importância de manter algumas coisas em segredo. David, por outro lado, sentiu um verdadeiro orgulho e felicidade pela consciência e inteligência do amigo.

Todos foram até o porto para finalmente se despedirem. A vila em linha ia sendo deixada para trás. Os bosques, nativos, mistérios e lendas também.

— Espero te ver logo, meu amigo — David disse para Patwin. Um estranho silêncio surgiu entre os dois, sendo apenas quebrado quando o pequeno jornalista decidiu dar um abraço no homem que tanto admirava. — Eu nunca vou me esquecer de tudo que me ensinou.

— Tenha certeza de uma coisa, David: eu aprendi com você mais do que você aprendeu comigo — o agora ex-jornalista gargalhou.

Despedindo-se também de Jake e Negan, Pat viu seus amigos subirem no barco. O pequeno jornalista ainda aproveitou mais um pequeno espaço de tempo para reafirmar a promessa a Melinda de que retornaria logo. A garota sorriu e deu o seu “até logo” para aquele garoto tão único e interessante. O barco partiu e logo se perdeu dos olhos daqueles que ficaram na inacreditável ilha de Roanoke.

Distante dali, Mahpee dava seus passos rumo à pequena vila dos homens brancos. Com o sol já dando suas caras, o nativo tinha a esperança de ver o resultado da incursão do deus protetor por ali. Ainda assim, ele levava consigo seu arco e suas flechas para se defender de qualquer ameaça que aparecesse. No entanto, quanto mais próximo da vila linear, mais um frio tomava conta de seu estômago: as coisas pareciam estar monótonas. Sim, ele não via as aves voando em círculos em buscando carne fresca, assim como não sentia o cheiro de morte. Até que finalmente enxergou a vida.

— Mamãe, um nativo! — Uma criança disse para a matriarca da família enquanto apontava para Mahpee. No entanto, ao invés de medo, ela apresentava uma espécie de admiração. Tal criança já havia visto Eyanosa e a imagem do índio com um arco era um tanto quanto interessante. — Qual o seu nome?

Assustado, o secotan ergueu seu arco e apontou a flecha para a garotinha. Assustada, ela se afastou e foi para os braços da mãe, que logo correu para longe dali. Mahpee não entendeu. Esperava uma reação mais violenta, algum tipo de ataque. Seguiu caminhando com arco tensionado enquanto observava o ambiente ao seu redor.  A cada passo, mais pessoas apareciam e temiam aquela cena: o índio solitário buscando respostas. O velho viu homens, idosos e muitas crianças. E, ainda que apontasse o arco para eles, não obtinha nenhuma reação mais agressiva.

— O que fizeram com o meu deus?! — Gritou em secotan, não obtendo nenhuma resposta.

Prosseguiu com o seu andar, só sendo parado ao ouvir a voz do mestiço.

— Mahpee! — Patwin mostrava força e determinação. — O que faz aqui?

O nativo virou-se para o ex-jornalista e pôde ver que ele lhe apontava o revólver. Patwin não arriscaria perder mais ninguém depois de tanta luta e esforço. Assustado, Mahpee sentiu suas pernas tremerem. Não, aquilo não podia ser possível. O deus protetor havia mesmo sido derrotado? Aquilo era imperdoável. Que blasfêmia! Enchendo-se de ódio, pensou em atirar a flecha contra o mestiço, mas uma imagem logo o parou: Eyanosa apareceu logo atrás de seu alvo.

— Pai?! — A índia disse com profundo medo em seus olhos.

Abaixando sua arma, o nativo sentiu sua cabeça explodir com tantas informações. Tinha certeza de que sua filha estava morta, mesmo com os avisos de Macawi na noite anterior. “Eu arrisquei matar a minha própria menina?”, pensou com um estranho gosto amargo na boca. Olhando para trás, viu que havia ainda mulheres e crianças que se recolhiam para suas casas, além de velhos e homens que só queriam assegurar a vida e felicidade de suas famílias. “Eu arrisquei matar crianças defesas? O que eu sou?”.

— Eu... — Mahpee tentava formar alguma frase, mas sua mente sofria com um turbilhão de pensamentos. Ele sentia o peso da culpa, do medo, da coragem, da missão e da contradição. Não havia direção certa e, vendo que todas as suas decisões poderiam estar equivocadas, o índio caiu em um profundo poço de puro desespero. — Eu lutei pela tribo!

Fugindo de tudo e de todos, o velho índio deixou a pequena vila para trás. Eyanosa tentou perseguir o pai, mas logo foi parada por Patwin, que a acolheu em seus braços.

— Ele não fará nada de mal — disse o mestiço como se tivesse lido a mente do seu algoz. — Aquele não é um olhar de vingança, mas de perdição.

Ele estava certo. Não era apenas a sua amada que chorava, afinal. Enquanto corria, o rosto de Mahpee se encharcava com tantas lágrimas. A cada passo, ele podia sentir a dor e o peso de perder tudo aquilo em que acreditava. Era como um verdadeiro golpe da realidade ao ver que havia se tornado no monstro que jurara combater com todas as forças. Tinha consciência de que esteve a um instante de permitir que crianças fossem dilaceradas por um ser divino. Que benção seria essa? Que guerra seria essa? Ele seria só mais um Edward Muller. Enquanto corria, também pensava em como a tribo o receberia. Havia colocado a vida da própria filha em risco e também tinha elaborado uma traição contra tudo e contra todos. Era uma desgraça para seu próprio povo e aquilo não tinha qualquer perdão.

— Mãe, por que você não me parou?! — Gritou para os céus ao mesmo tempo em que caiu de joelhos na terra cheia do bosque.

Tudo que conseguia fazer era soluçar e deixar que as lágrimas molhassem o solo. Já havia deixado seu arco cair pelo caminho e agora carregava apenas suas flechas com as pontas envenenadas. Foi impossível não olhar para elas e sentir uma tentação de pôr um fim a todo aquele sofrimento.

— Se o meu servir à tribo só trouxe malefícios, que eu não sirva a mais nada — ao dizer aquilo, pegou uma flecha da aljava e penetrou sua barriga com força. — Que eu sofra tudo o que mereço!

E, ao realizar aquele ato, deitou-se ao lado das árvores e da natureza que tanto amava. Olhou para o céu enquanto seu sangue escorria e a dor tomava conta de seu ser. Apreciou os pássaros e o cantar dos ventos. Rezou para que todos os deuses tivessem piedade e o levassem rápido.

— E que cuidem da minha Eyanosa — foram suas últimas palavras.

Levou um tempo para que Patwin e Eyanosa encontrassem o corpo de Mahpee. Evidentemente, a nativa sofreu intensamente com a perda, mas o tempo fez o seu milagroso trabalho de reparação. As coisas seguiam em frente e, mesmo com toda aquela tempestade, Roanoke encontraria a calmaria. Um ciclo de violência havia sido quebrado e um novo amanhecer se tornava palpável para todos os habitantes da ilha, sejam eles índios ou não.

Agora, como um novo elo dentro de Roanoke, Patwin Winslow sentia-se completo. O seu processo de autoconhecimento continuava, afinal, quem é que se descobre por inteiro? Mas ele sentia-se grato por estar realizando a missão de sua vida. Estava, afinal de contas, feliz. E, olhando certa noite para o céu estrelado, sentiu paz. A noite não era mais tenebrosa e o próprio cantar dos ventos estava em harmonia com o todo. Lembrando-se da memória de seu pai, o mestiço disse:

— Obrigado por tudo. Acho que mais do que conhecer minhas raízes, eu conheci a mim mesmo. Agora eu sou livre.

FIM


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Notas finais do capítulo

Galera, eu nem sei o que escrever aqui. "Ciclos" foi o nome que surgiu para o capítulo hoje mesmo, confesso. Esse título conversa também muito comigo, como autor mesmo. É o fim da maior história que já escrevi até o momento, e eu me sinto extremamente feliz por isso. Fui imerso no universo de Roanoke por praticamente um ano e colocar um fim a tudo isso dessa maneira me deixa extremamente honrado. Espero que tenham gostado da obra como um todo e que o final tenha sido digno. Deixem seus comentários (fantasmas, caso existam, peço que apareçam hehehe) e recomendem para seus amigos caso tenham achado que a leitura tenha valido a pena. Repito o que sempre digo: MUITO OBRIGADO por todo apoio. E devo agradecer especialmente a Yokichan e o Matheus por terem acompanhado esta obra do início ao fim. Vocês são parte importante disso tudo e eu nunca esquecerei.

Dito isso, aguardo encontrá-los nas próximas histórias e loucuras! Até logo ♥

P.S: Digamos que um certo jornalista de baixa estatura possa ter mais algumas aventuras registradas em livros futuros.



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