O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 24
Invocação


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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A igreja nunca esteve tão movimentada num dia de semana comum. Patwin se recuperava de seus ferimentos com a ajuda de Margaret, enquanto David revisitava os escritos e pistas de John Dee em busca de algo que ele sabia que faltava. “Deixamos algo passar, tenho certeza”, o garoto pensava. Por outro lado, o padre sentia um certo alívio pelo retorno do mestiço, mas sabia que ainda havia mais para fazer: prometera a Margaret que iria descobrir o paradeiro de seu filho e trazê-lo de volta. “Se isso for possível”, ele refletiu com certo receio, quando Selvagem apareceu para lhe dar algum carinho.

— Boa menina — Marcus coçou atrás de suas orelhas e a cadelinha esfregou seu focinho úmido em sua batina. — Queria ter mais tempo para aproveitar você, Selvagem. Mas há pessoas que precisam mais de mim nesse momento. Que Deus nos ajude.

Ele estava sentado em um dos tantos bancos de madeira do local. A sua frente, apenas Cristo o encarava. O altar estava com sua entrada secreta escancarada, enquanto David entrava e saía do lugar com uma frequência surpreendente. Sentindo-se de frente para o seu Senhor, o padre segredou:

— Tenho medo, Senhor — falou em voz baixa e logo abaixou a cabeça em sinal de respeito ou talvez vergonha. Nem mesmo ele sabia definir bem. — Carrego os segredos dessa ilha há anos. Aliás, tais segredos vêm de muito antes: meu pai, avô, bisavô e então se perde pelo tempo. Eles nunca precisaram usar esse conhecimento tão bem escondido. Por que eu? Pensei que já estava cumprindo minha missão aqui espalhando Sua palavra para essas pessoas. Pensei, afinal, que elas me escutavam. Quer dizer, todos os domingos essa igreja lotava. Homens, mulheres, crianças. Mas de que adiantou? Os homens foram à guerra matar seus iguais. Não, não foi uma guerra. Foi um massacre completamente gratuito e sem razão. E qual o meu papel nisso? Sinto que falhei e que já é tarde, Senhor.

Selvagem sentia a insegurança de Marcus em suas palavras e, nem por um segundo sequer, saiu de seu lado. De alguma forma, aquela presença pequena e peluda dava conforto para o coração atormentado do padre.

— Talvez haja algo que eu ainda possa fazer, sei que há — ele rezava com convicção. — Tenho que ajudar a Margaret, o David, o Patwin, a ilha! Não sei como, mas irei. Confio em Tua providência e sei que sempre há uma luz na escuridão. Enfim, chegou a hora de dar mais um passo nisso. Temo muito que possa encontrar o pior, mas sei que é o certo a se fazer. Ajude-me, Senhor.

Finalizando sua prece, o padre se levantou e foi até os aposentos da igreja acompanhado de Selvagem. Lá, Patwin jazia numa cama. O ferimento ainda estava feio, mas uma pequena melhora já era perceptível. Margaret, por outro lado, rezava um terço. Ela encarou Marcus assim que ele apareceu. A mulher podia sentir o que estava para ser dito.

— Eu irei descobrir a verdade — ele começou com serenidade. — Richard deve estar em algum lugar. Irei conseguir as respostas diretamente de Edward Muller. Ele é um louco, mas nunca me ofereceu perigo.

Margaret então apontou para o seu tapa-olho.

— Isso não foi culpa dele. Quer dizer, não diretamente — Marcus tentava se desviar daquela dolorosa memória para que o medo não se apoderasse do seu ser. — Assunto passado. Apesar das monstruosidades do homem, não podemos ceder ao medo. Eu nunca cederei.

Patwin, que estava quase desacordado, mal pôde entender o que foi dito. Margaret aproximou-se do homem de Deus e, segurando suas mãos, disse:

— Encontre meu filho e traga-o em segurança — os olhos da mulher enchiam-se de lágrimas enquanto ela dizia aquilo.

— Eu irei fazer o meu melhor! — Aquela era a única promessa que o Padre Marcus poderia fazer. Ele não iria mentir para ela, pois sabia que havia uma alta chance do filho da moça estar morto.

— Traga-o — ela repetiu, mas o homem respondeu com o mais profundo silêncio.

Marcus deixou de encarar os grandes e castanhos olhos de Margaret, e voltou para a nave central da igreja. David estava no compartimento secreto. Era incrível como o garoto estava lidando bem com toda aquela velharia poeirenta.

— Tudo bem aí? — O padre questionou encarando o local fracamente iluminado por velas que o pequeno jornalista acendera. — Não cause um incêndio, hein?

— Pode deixar, padre — David respondeu sorrindo. O garoto estava em êxtase com o retorno de seu grande amigo e parceiro de trabalho, ainda que o medo fosse uma constante em seus pensamentos. Ele sabia que os riscos não haviam cessado, a não ser que a sede de punição e “justiça” de Edward Muller tivesse acabado. — Esperava encontrar algo útil, mas para ser sincero, acho que não vamos sair de lugar nenhum até as traduções chegarem. Isso se chegarem.

O bom-humor podia ser um antídoto para maus tempos, mas era necessário mais que isso no momento. Marcus adentrou o compartimento e, aproximando-se do pequeno jornalista, segredou-lhe:

— Fique ao lado de Margaret — o garoto olhou-o com estranheza. — Eu quero muito encontrar o Richard vivo, mas temo que não seja a realidade. Se ele estivesse bem, provavelmente Edward já teria o soltado, ou ele ao menos estaria na prisão. Mas nem isso. Temo que ele esteja morto, David.

O garoto engoliu em seco com o simples pensamento do que poderia ter acontecido com Richard. Apesar do pequeno jornalista não ter tido muito tempo para conviver com o artista, ele conhecia relativamente bem a mãe do estranho.

— Ela ficaria destruída — David concluiu com grande tristeza no olhar. — Não, isso não pode ser verdade, padre. Já não perdemos de mais? Isso não é justo!

— Não nos cabe julgar o que é justo. O que nos cabe é fazer o certo em qualquer hipótese — Padre Marcus falou de maneira firme. — Não importa mais onde estamos, o que houve ou o que achamos que haverá. O que importa é o que fazemos. Ajude essa mãe. Daqui a alguns momentos, pode ser que eu apareça na porta da igreja com um filho que estava perdido. Mas também possa ser que eu simplesmente traga um cadáver. Apenas fique ao lado dela, David. Você já fez muito com todas essas pesquisas e com a tradução que encomendou. Você já é um grande herói, garoto.

Com os olhos arregalados, o pequeno jornalista apenas assentiu. O homem subiu para a nave central e se encaminhou para a saída da igreja, mas parou ao ver que Selvagem havia se colocado na frente da porta.

— Minha linda — ele disse com carinho. — A missão nunca para.

Ela permaneceu lá, como se não quisesse que ele saísse. Ainda assim, o padre acariciou-a mais uma vez e, desvencilhando-se de suas lambidas e pulos, saiu da igreja.

O sol havia dado lugar a espessas nuvens e o sinistro pairava no ar. Alguma coisa estava errada, mas o padre ignorou os seus pressentimentos e seguiu com fé e coragem. A vila estava praticamente vazia e o homem de tapa-olho não demorou para encarar a grande estrutura que era a mansão de Edward Muller.

— Muller! — Ele começou a chamar após bater na porta e esperar um bom tempo. — Muller, sei que está aí. Precisamos conversar algo sério!

A cena parecia um déjà vu: Marcus já vivera aquilo. Lembrava bem da última vez em que visitara o ricaço de Roanoke. Havia trocado duras e verdadeiras palavras com o homem, mas falhara em fazê-lo mudar de ideia. No fim, o ataque contra os nativos aconteceu da mesma forma. “Não posso falhar novamente”, pensou o homem de Deus. Começou a escutar pesados passos, assim como naquele dia sombrio.

— Você de novo, padre? — Quem abria a porta era o odioso Muralha. Para quem havia passado por uma batalha, ele parecia um tanto quanto intocado. Não havia qualquer ferimento perceptível ou mesmo sinais de cansaço. — Quer arrumar outro tapa-olho? Eu adoraria, mas não seria adequado.

“Sempre com sarcasmo e ódio em suas palavras”, pensou Marcus. Aquilo o enfurecia, mas deveria medir as palavras. Estava lá por apenas um motivo, e ele tinha nome: Richard Olsen. Qualquer outro desejo ou ideia era mera distração.

— Sou um homem um tanto quanto falante — conseguiu manter uma voz serena, ainda que seu coração batesse em alta velocidade em decorrência do nervosismo. — Quero conversar mais uma vez com Edward Muller.

— Por quê? Sabe que ele irá discordar de cada uma de suas palavras, homenzinho santo.

— Não é da sua conta — a voz que se ergueu vinha de dentro da mansão. — Vamos, cansei desse joguinho. Mande o padre entrar!

Ainda que fizesse a contragosto, Muralha permitiu que Marcus entrasse. Do lado de dentro, o padre pôde ver Edward Muller. Mas havia algo de errado com o homem.

— Sua perna... — o padre não conseguiu completar a frase.

— Sim — o poderoso de Roanoke foi ágil na resposta. — Menos mal que eu tinha uma destas.

Equilibrou-se com a perna que estava inteira e balançou uma muleta que carregava do outro lado.

— Vem, vamos conversar em particular — disse Edward enquanto se locomovia com dificuldade até a cozinha. — Muralha, espere aí fora. Quando terminarmos, aviso.

O gigante ensaiou uma expressão de raiva, mas a conteve. Marcus caminhou pela sala de entrada da casa, encarando a desarrumação recorrente, mas também vendo mais uma vez a beleza dos quadros espalhados por ali. Muller, diferentemente de antes, apresentava uma expressão difícil de se distinguir. Se por um lado lembrava alívio, por outro parecia impaciência. “Um homem em eterno conflito”, concluiu o homem de Deus.

— Aqui está bom — Edward falou, finalmente sentando-se e apontando para uma cadeira ao lado. — Vamos, sente-se, Marcus.

O padre seguiu as palavras do homem mutilado.

— O que veio tratar hoje? Imagino que esteja aqui para me condenar por meus meios de fazer justiça contra aquelas que atormentam essa ilha. Melhor: atormentavam. Não irão atormentar mais. Isto aqui? — o demônio de Roanoke apontou para o lugar onde deveria estar o resto de sua perna esquerda. — Eles o fizeram. Homens santos, hein? Apenas um bando de selvagens que precisavam ser civilizados. Fico feliz em fazer a minha parte. Imagino que Jessica e Sarah estejam agradecidas.

Ao citar os nomes das mulheres de sua vida, Edward encarou o quadro com as imagens delas.

— Muller... — Padre Marcus não conseguia acreditar que o homem realmente pensava estar fazendo algum tipo de justiça. As palavras lhe fugiram por um momento, mas bastaram alguns segundos de silêncio para retornarem. — Eu deveria falar sobre como você errou de maneira grotesca com isso. Mas a responsabilidade não é totalmente sua, se quer saber. Tantas pessoas participaram dessa caçada sombria. Todas são culpadas. Você é só mais um dentre eles, ainda que tenha idealizado isso tudo.

Muller estranhou o fato do padre não ter simplesmente o chamado de “demônio” ou outra coisa do tipo. O homem de Deus prosseguiu:

— Eu adoraria poder dizer que você ainda tem salvação, que existe espaço para o arrependimento. Quer saber? Existe, mas é um longo e árduo caminho para você — Marcus deu uma pausa para respirar fundo. — Mas não é disso que vim falar. É algo bem mais próximo de nós do que da tribo ou da floresta. É aqui. Onde está Richard Olsen? Eu sei que você sabe. Tem uma mãe aí fora em prantos sem poder nem imaginar o paradeiro de seu filho. Por favor, Edward, você sabe como é sofrer por uma filha. Ajude Margaret. Diga-me: onde está Richard?

— Richard... — o demônio de Roanoke parecia não se lembrar, mas não passava de enganação. Em sua mente, ele revivia as cenas do assassinato do garoto, e um doce sabor atingiu seu paladar. Ele havia gostado daquilo. — Ah, o artista louco.

— Sim, o artista louco — o padre estava impassível.

— Ele deve estar nadando com os peixes.

Sentindo um profundo espanto, Marcus saltou da cadeira com ferocidade. Segurou-se para não avançar contra Edward Muller. Era inacreditável que o homem pudesse falar de assassinato a sangue frio com tanta facilidade.

— Quer saber a verdade? Quer que eu conte tudo, padre? — O demônio de Roanoke agora apresentava uma expressão puramente desafiadora. — Ele foi um covarde. Entregou a tribo e seus salvadores com a mais branda tortura. Depois ainda tentou me matar. Um verdadeiro lixo de artista, um peso morto para o mundo. Fiz um favor quando cortei sua garganta.

— Como você pode... — as palavras saíam com dificuldade da garganta do padre. O seu impulso era saltar contra Edward e acabar com ele ali mesmo. Mas ele acreditava que aquilo não era o certo a se fazer. “Viraria um animal assim como ele”, refletiu brevemente. Com os punhos fechados e respirando fundo, concluiu. — Como você pode dizer isso com tanta facilidade? Você o conhecia! Vai dizer que também era um “selvagem”?!

— Ele, selvagem? Covarde demais — Muller deu uma risada sádica. — Mas ele desdenhou do corpo da minha filha, padre. Também invadiu o necrotério e encarou o corpo desnudo e dilacerado dela. Agradeça-me, Marcus: fiz o dever que o seu Deus não teria conseguido.

Tremendo de raiva e sem encontrar as palavras certas, Marcus saiu em disparada para fora da casa. Não aguentaria ficar nenhum segundo a mais ali. “Margaret precisa saber. Mas como?”, ele se questionava enquanto abria a porta da sala. Muralha o encarou com um sorriso sádico e o homem de Deus seguiu sua caminhada infernal carregando consigo péssimas notícias.

Dentro da mansão, o demônio de Roanoke dava um sorriso triste. Tivera um momento de prazer provocando tais sentimentos no padre, mas uma voz na sua cabeça falava algo que ele pouco entendia. Talvez, na realidade, ele nem quisesse mesmo entender. Optou pela escuridão e pela surdez, pois assim os próximos passos de sua vida seriam menos dolorosos, ao menos para ele.

Longe dali, havia quem já estivesse em fases mais avançadas do luto. Após a descoberta da localização da caverna dos ossos, Macawi e Adaky retornaram para a tribo. Mahpee conduzia bem o seu povo. Eles caçavam, construíam e aos poucos uma nova forma de vida ia se formando. A dor, a saudade e o medo ainda estavam presentes, mas em menor intensidade. A vida como um todo sempre seguia, independente da interferência da morte.

— Eu estava pensando numa coisa, Macawi — Mahpee disse quando finalmente se reencontrou com seu irmão de tribo. — Devemos encontrar os corpos de nossos irmãos mortos. São muitos, eu sei, mas eles precisam de um tratamento digno. Penso em enviar expedições com alguns homens fortes para, pouco a pouco, buscar os nossos. Assim podemos entregá-los da maneira certa à Mãe.

— Uma preocupação justa — Macawi concordou. Estava cansado das caminhadas dos últimos dias, mas a conversa que tivera com Adaky o animara: o garoto realmente seria o receptáculo do deus protetor. — Mas temos algo mais urgente para ser feito: a caverna de ossos foi encontrada. Está tudo lá: as pedras, o altar e nossos antepassados. Mais do que isso: Adaky está disposto a ser o receptáculo.

Mahpee já havia percebido o ímpeto do garoto nos dias passados, mas não esperava tamanha força de vontade, ainda mais para algo que o tornaria algo completamente diferente do que ele era. Ainda assim, aquela era, sem dúvidas, uma notícia boa. E, como um bom conhecedor das histórias antigas, o índio veterano sabia bem o que fazer.

— Precisamos das ervas — ele começou. — Não só isso: precisamos das orações. Irei com vocês e mais um grupo de irmãos até a caverna. Levarei as ervas necessárias para controlar o apetite do deus protetor.

— Sim — Macawi respondeu com ânimo e deu um forte e inesperado abraço em seu amigo. — Nós iremos conseguir. O deus protetor estará ao nosso lado!

— Que a Mãe nos permita — Mahpee finalizou.

Com tudo aquilo determinado, em pouco tempo a tribo conseguiu tudo que era necessário para a efetuação do ritual. Naquele dia, Macawi, Mahpee e mais dois nativos estavam reunidos na caverna de ossos em torno do altar. O jovem Adaky estava deitado sobre ele.

— Você está certo disso? — Macawi questionou uma última vez. — Não há volta para o que estamos prestes a fazer.

O garoto encarou a escuridão da caverna mais uma vez. Se o lugar já era escuro, um dia nublado permitia que ainda menos raios de sol adentrassem. Não havia muito o que olhar, ou motivos para temer. Já estava abraçado pelas trevas e tudo que pensava era na cena de morte e horror que os seus iguais viveram. “Eu deveria ter tido essa força para te salvar, Jessica”, pensou uma última vez no grande e único amor da sua vida. “Talvez, quando tudo isso acabar, os deuses me permitam encontrá-la. Que assim seja!”.

— Eu nunca estive mais certo — finalmente respondeu. — Pela tribo!

Dito aquilo, a preparação prosseguiu. Diferentes ervas e flores foram colocadas sob a estrutura de pedra na qual o jovem estava deitado. Mahpee começou a entoar um canto mórbido cujas palavras em dialeto secotan eram ditas de maneira tão rápida que nem mesmo Adaky podia entender. Os dois índios ao seu lado repetiam na mesma velocidade, enquanto Macawi colocava fogo nas ervas e flores, transformando o altar numa espécie de caldeirão, aquecendo aos poucos e esquentando o pequeno nativo.

— Diante da morada do deus protetor, nós suplicamos: venha e assuma o corpo deste que se faz em sacrifício — Macawi cantava numa voz quase chorosa. — Que seu corpo esteja preparado para honra de recebe-lo, oh, grande deus! Que seus músculos recebam sua força, que seus olhos recebam a sua visão, que seus sentidos se tornem aguçados e que o seu sangue se torne tão vermelho quanto sua ira contra aqueles que atentam contra seu povo. Reviva, oh, grande deus protetor.

E, dizendo aquelas últimas palavras, o velho nativo pegou um par das estranhas rochas que habitavam aquele lugar único. Colocou-as sobre o corpo de Adaky, que logo sentiu o peso daqueles objetos.

— Que você possa carregar a verdadeira força de ser um deus — concluiu o índio veterano.

E então, as palavras velozes de Mahpee e os outros dois índios foram cessadas. Para encerrar o ritual, jogaram uma espécie de chá sobre todo o altar. Sendo ele levemente côncavo, uma grande porção do líquido cobriu o corpo de Adaky, que começava a sentir um certo medo de tudo aquilo, mas não poderia vacilar.

Um silêncio incômodo tomou conta do local. Nem o céu, os animais ou o próprio vento ousavam fazer ruídos. A fumaça das ervas sendo queimadas começou a se espalhar pelo lugar, enquanto Mahpee mantinha bem próximo de si uma porção delas, sendo ainda necessárias depois para manter o deus protetor sob controle. As costas do jovem nativo começaram a ser esquentadas junto do chá que se fazia presente sobre ele. O calor logo se espalhou para o resto do corpo e, o que antes parecia uma sensação agradável, passou a causar agonia.

O ar tornou-se denso e Adaky mal conseguia respirar. A dor tomou conta de todo seu corpo e ele sentia como se estivesse sendo cozido vivo. Não conseguiu segurar os gritos de agonia pura. Além disso, as pedras sobre o seu corpo caíram sobre o líquido que se espalhava pelo o altar e, aos poucos, soltaram uma substância púrpura que prontamente se alastrou por todo o chá. O nativo sentia as queimaduras cada vez mais intensas e os seus pulmões cheios de algo que não lhes servia. Sentiu ainda aquelas duas estranhas pedras se desfazerem em pó com uma facilidade antinatural e, aos poucos, ocuparem os espaços dos poros de todo seu corpo. Ele sentia-se invadido, torturado, corrompido.

Sua vida passou diante de seus olhos. Lembrou de sua infância comum, de sua paixão por Jessica Muller, da dor de perdê-la e de todo inferno que se sucedeu. Pensava ainda estar gritando, mas não saía som algum da sua boca. Boca essa, aliás, que também se enchia do estranho líquido. Sentiu seu corpo inchar, seu intestino se contorcer e podia jurar que ouvia as pedras conversarem consigo. No entanto, não entendia uma palavra do que diziam. Tentava enxergar, mas nada via. Imaginava que os índios ainda estavam lá entoando seus cantos e orações. Por um momento, desejou que algum deles o salvasse daquela dor. Entretanto, cerrou o punho ao decidir resistir. Punho? Não entendia mais o que era sua mão. Totalmente queimada, com os nervos danificados, o que ele sentia era outra coisa. Sentia algo duro, afiado, inumano. Sentia o mesmo de seus pés, ossos, carne. Absolutamente tudo.

Mas não importava mais. Logo seus olhos foram tomados pelo estranho líquido. A escuridão tornou-se ainda mais escura e ele mesmo se perdeu. Não havia mais Adaky. Apenas o deus protetor.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?

Muito obrigado pela leitura :D



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