O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 23
A caverna de ossos




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Ele vivia um verdadeiro conflito de sentimentos. Sentia que o dever havia sido cumprido, que a justiça fora feita e que ele era um homem bom. Por outro lado, sua consciência o alertava de que ele poderia estar errado. Ela dizia que ele fora um monstro, injusto, calunioso e demoníaco. Edward Muller não entendia aquilo. Ainda sentia entrar por suas narinas o cheiro da terra encharcada de sangue, aquele odor terrível e mortal. Ao mesmo tempo, também provava na boca o doce sabor da vingança, da missão muito bem realizada. Esse misto de emoções fazia com que o homem não entendesse exatamente aonde se encontrava.

— Muralha — ele chamou, mas não obteve resposta.

Abrindo os olhos com dificuldade, sentiu o peso de suas pálpebras e aos poucos abandonou a escuridão de sua mente para tentar entender o mundo ao seu redor. Estava deitado em uma confortável cama, com o corpo quase que inteiramente coberto. A sua frente, conseguia enxergar uma pequena mesa e, ao lado, armários. A janela do local estava quase fechada, permitindo que pouquíssima luz entrasse. No entanto, não era necessário ver mais para entender: “O meu quarto”, ele concluiu.

O lugar estava mais arrumado do que o normal. Ao lado da cama, havia um sininho sobre o criado-mudo. Havia também alguns medicamentos, provavelmente analgésicos. “Por que isso aqui?”, ele continuava buscando respostas mais precisas. Ainda deitado, encarou o espelho do quarto e se viu com uma cara péssima. A sua barba já estava crescendo novamente, formando uma rasa camada de pelos brancos sobre seu rosto. Suas feições permaneciam duras e havia uma constante expressão de dor em sua face. “Tem algo de errado”, refletiu.

Começou a pensar em todas as coisas que deveria fazer. Sim, Edward Muller sempre tinha algum dever a cumprir, essa era a sua função naquela vila. O homem estava sempre preparado para fazer o que ninguém mais tinha coragem. No entanto, o nada veio a sua mente. Não havia objetivo a ser cumprido, uma missão ou ato necessário por sua parte. Sentiu o vazio de sua existência, um vazio que ele não conseguia preencher. “O que eu perdi?”, dúvidas e mais dúvidas pairavam sobre sua cabeça.

Resolveu fazer um esforço para recapitular os últimos acontecimentos importantes da sua vida. Na sua mente, tudo ainda estava um tanto quanto turvo, o que tornava aquilo uma missão complicada. Ainda assim, Edward não era um homem famoso por medir esforços. Lembrou-se de sua esposa, Sarah Muller. A mulher de pele macia, voz suave e doces lábios. Um espírito de luz na vida do demônio de Roanoke. Estaria ela orgulhosa dos feitos de seu marido? Muller preferia não pensar nisso. Lembrou-se da doença que tomou conta dela e de sua morte enquanto buscava uma cura milagrosa com os nativos.

Sua mente então saltou para Jessica. Que bela filha. Inteligente, carinhosa, humilde, adorada pelas pessoas da ilha. “Teria um futuro brilhante”, ele pensou tristemente. A moça era tudo que havia restado da boa vida de Edward, no entanto, ela fora dilacerada de maneira brutal. Um crime desumano, revoltante e que precisaria de punição. Ou melhor: justiça. “E eu trouxe”, o homem concluiu.

E então várias imagens da grande batalha de Roanoke apareceram como num lapso diante de seus olhos. Finalmente lembrava-se do seu discurso, da multidão que o seguiu, do cansaço da longa viagem. Enxergava também os tiros que disparou, as vidas que ceifou. Seus ouvidos ainda conseguiam ouvir os altos sons de balas sendo disparadas, dos gritos de dor de seus homens. Sua pele sentia o suor escorrendo, o calor do momento, os danos. Estava cumprindo a missão da sua vida. “Por Sarah e Jessica”, pensou. Então aquele era seu objetivo de vida, aquilo que o movia para qualquer direção que fosse. E havia simplesmente acabado. O que fazer agora?

Sem ter uma resposta, resolveu que era a hora de levantar-se e ver como estava a vila. Sabia que muitos homens haviam morrido e Joseph era um deles. “Morreu lutando. Que Deus o tenha”, pensou mesmo sem acreditar totalmente em tais palavras. Retirou a lençol de cima de seu corpo e, finalmente, pôde se lembrar do motivo de sua visão turva, de sua memória fraca e do apagão das últimas horas vividas: parte de sua perna esquerda havia sido cortada.

De início, apenas o medo tomou conta do poderoso homem. Ele não entendia, as imagens não eram claras. Sua perna esquerda havia sido decepada até um pouco abaixo do joelho. E então ele pôde se lembrar de como a flecha viajou com velocidade e atingiu sua panturrilha. Lembrou-se da dor, do sangue e do medo. O puro medo de sentir as dores que Rico sentiu ou de, simplesmente, não cumprir o objetivo da sua vida: vingar a morte de sua filha. Logo em seguida, sua memória resgatou as imagens horrendas do homem rechonchudo e de Muralha. Sim, aqueles dois haviam cortado sua perna! E, por último, mas não em menor intensidade, lembrou-se do seu desejo pela morte durante aquele momento.

Que alívio teria sido partir ali mesmo. Com a missão cumprida, Edward sentia que aquele era o momento perfeito para reencontrar Sarah e Jessica, seja lá onde elas estivessem. Seria a hora ideal para a morte chegar e pôr um fim a sua vida miserável. Apesar das riquezas materiais, o homem havia sido engolido por um mar de tragédias e o amor que antes habitava o seu coração não estava mais lá.

Diante daquela dura realidade, Muller entrou em desespero. Ele via que a verdadeira tragédia era simplesmente estar vivo. Como a vida poderia ser irônica, não? As mulheres que ele tanto amara estavam mortas e enterradas, enquanto ele caminhava entre os vivos desejando estar morto. Sua única razão para continuar por lá havia simplesmente acabado: ele conseguiu sua vingança. Sua missão de vida estava feita, afinal. Ainda assim, o homem tinha que ser punido pelo calvário da existência. Chegou a pensar na possibilidade de pegar uma arma e pôr fim aquilo tudo, mas a coragem logo fugiu de sua mente. Edward Muller sabia: estava fadado a viver o resto de sua vida procurando um sentido para simplesmente existir. “Por sorte, não acho que tenho mais tanto tempo aqui”, pensou buscando alívio.

Memórias sombrias não acompanhavam apenas o homem mais poderoso de Roanoke. Os ecos da morte também seguiam os passos e pesavam nas mentes dos nativos da ilha. Adaky e Macawi sentiam esse peso de uma maneira singular, mas estavam fazendo um esforço para se livrar dele.

— Nossos antepassados souberam esconder isso muito bem — Adaky comentou com um leve toque de humor.

A dupla atravessara a densa floresta, deixando Mahpee e o resto da tribo para trás. O veterano líder estava encarregado de guiar os seus irmãos através da colheita de ervas, frutas e a caçada de animais. Precisavam de peles novas, estruturas para dormir, além de alimento e água. Os tempos eram duros, mas o homem era forte. Por outro lado, Adaky e Macawi ficaram encarregados de encontrar o lugar onde o deus protetor poderia ser despertado. Haviam andado alguns quilômetros cercados de todo aquele verde e pisando na terra fértil. Estavam cada vez mais próximos daquela belíssima estrutura rochosa singular. Seria uma serra? O pequeno nativo não saberia dizer, mas não se cansava de admirar o brilho que a umidade e a presença de musgo causavam.

— Nossas esperanças estão lá — Macawi explicou enquanto apreciava aquela visão privilegiada. A grande verdade é que ele nunca havia estado tão próximo daquele local sagrado. Ou seria amaldiçoado?

Ela tinha uma beleza ímpar e chamava a atenção. No entanto, não passava de uma bela paisagem para praticamente todos os moradores da ilha, incluindo os nativos.

— Vamos ter que subir isso aí? — O jovem questionou enquanto coçava alguns ferimentos que a longa caminhada deixara na sua pele. Pequenos arranhões e um corte de pequena proporção incomodavam, mas nada superava a vontade do índio de trazer justiça para o seu povo.

— As histórias tornaram-se escassas, Adaky — Macawi começou a explanar enquanto a dupla subia uma ladeira íngreme em direção ao topo da estrutura. — Você sabe o porquê do deus protetor ter sido banido e quase que completamente esquecido, certo? Ele ficou fora de controle e atacou o seu próprio povo. Sua sede por sangue não pode ser saciada e ele é capaz até mesmo de devorar os ossos, não deixando resquício algum para trás.

— Isso eu sei — Adaky disse com confiança. Suas pernas tremiam com a longa caminhada e com aquela subida íngreme. Olhava para cima e via que ainda faltava mais um pouco para chegar ao topo. — É lá em cima que devemos chegar?

— Você saberá.

Continuaram a longa caminhada e cada vez mais Adaky conseguia ver o resto do mundo ali de cima. Não era uma grande altura. Na verdade, deveriam estar a uns 150 metros acima do nível do mar. Mas, diante da pequenez do universo conhecido pelo nativo, aquilo parecia algo colossal. Ele imaginava como seria a vida caso tivesse nascido em outro lugar. Talvez pudesse ser um mestiço como Patwin, podendo viver em uma cidade. Com isso, quem sabe ele não poderia ter um relacionamento com Jessica Muller sem os julgamentos do pai? Sentiu um aperto no coração só de pensar na possibilidade. Sua tribo era um bom lugar, mas ele nunca se sentira completo. Depois da batalha, então, isso seria impossível.

— Eu queria viver em outro lugar — o jovem quebrou o silêncio. Macawi parou de caminhar e o olhou com atenção. — Quer dizer, que vida temos aqui? Que escolha temos? Macawi, você acha que é livre? Somos escravos desse lugar amaldiçoado. Esse deus protetor? Eu não o apoio por achar que é certo, mas por achar que não tem mais jeito. Você consegue enxergar isso? Somos um povo condenado vivendo sob o silêncio da morte.

O nativo mais velho recebeu aquelas palavras com serenidade. Respirou fundo e apenas o som das aves era ouvido naquele momento.

— Adaky, vivemos aquilo que aprendemos — começou. — O seu povo não é só o presente, não é só o que você enxerga. Nós temos uma história, somos mais do que uma geração qualquer. Somos um pouco de cada um e muito de nós mesmos. Abra os olhos: as pessoas de Roanoke também são assim.

— Eles são o que escolhem ser — Adaky respondeu apresentando um tom de voz mais enérgico do que ele mesmo planejava. — E eu escolho responder à altura. É escolha minha, não da tribo, de histórias, de gerações, de ninguém. Eu optei por vir aqui com você, Macawi. E a escolha foi sua também, não de seu pai ou avô.

O velho índio não pôde discordar. Afinal, as histórias eram claras: a última vez que o deus protetor fora invocado resultou na quase extinção da tribo. Tais informações foram passadas de pai para filho ao longo das gerações, mas cada vez mais o medo e a verdade foram se perdendo. A tragédia de Roanoke foi sendo esquecida, mas ainda haviam aqueles que preservavam a história. Ele e Mahpee eram um exemplo. Acordar o deus protetor seria mesmo uma boa ideia? “Estaríamos revivendo o nosso fim?”, Macawi refletiu. E então viu que Adaky havia tomado a frente e já seguia para o topo da estrutura.

— Espere — o velho alertou. — Não é no topo.

Adaky o encarou com estranheza, mas retornou alguns passos para entender melhor tudo aquilo.

— As histórias contam que a caverna de ossos está escondida pela beleza que brilha — Macawi explicou. — Está aqui.

O seu dedo apontava para um amontado de folhas e musgo que se concentravam a poucos metros de onde estavam.

— “Caverna de ossos”? — O jovem questionou com um certo receito.

— Você entenderá — Macawi seguiu em direção daquele amontoado de brilho e beleza em meio a ausência de vida.

Dali, a dupla conseguia ver o mar e suas ondas se quebrando repetidamente. Além disso, viam o contraste entre o verde do denso bosque, o azul e branco do mar, e as cores mais escuras, brutas e brilhantes da rocha.

— A lança — Macawi pediu.

Adaky entregou-lhe a arma e aguardou ansiosamente para ver o que seria feito. Colocando a ponta afiada sobre todo aquele amontoado de musgo, o nativo mais velho começou a tatear o que todo aquele verde escondia. Sentia a rocha dura por baixo, além de um aspecto grudento e úmido daquela vida vegetal. No entanto, não demorou para perceber que algumas pedras se faziam soltas. Encontrou uma pequena fresta e, usando a lança como uma alavanca, começou a fazer força. A dupla logo ouviu um desmoronar de pedras e, com isso, parte do musgo e das folhas também caiu.

— Um buraco? — O jovem questionou com descrença. Tudo que ele enxergava era uma escura cavidade a sua frente.

— A caverna de ossos — o velho respondeu enquanto cuidadosamente adentrava a escuridão.

Ainda que temesse que algo pudesse dar errado, Adaky seguiu o índio mais experiente. Seus pés tremiam e ele quase escorregou em decorrência da declividade, mas se segurou nas paredes rochosas e úmidas. Pouca luz entrava ali, mas aos poucos os olhos iam se ajustando a escuridão.

— Não pense que não sinto medo, garoto — a voz de Macawi ecoava com o vazio. — Eu estou tremendo aqui.

O menino nativo até pensou em parar por ali mesmo, mas logo lembrou-se da situação de toda sua tribo. Não, não poderia se acovardar. “Tenho que ser forte”, concluiu. Dando mais um passo nas trevas, sentiu seus pés se encostaram em rochas geladas. O frio subiu por todo seu corpo. O próprio lugar cheirava a medo e havia uma espécie de aura desconhecida que pairava aquele buraco misterioso, além da escuridão intensificar tal sensação.

— Por que esse lugar? Por que esse nome? Ele me dá calafrios — Adaky confessou.

— As histórias dizem que essa foi a morada escolhida pelo próprio deus protetor. Quando ele veio a terra em carne e osso, antes mesmo de assumir o corpo de qualquer secotan, escolheu essa caverna como morada — Macawi mantinha uma voz calma apesar do medo que aos poucos possuía sua mente. — É algo fantástico, não? Um buraco aqui no meio do nada. Nossos antepassados encontraram-no enquanto exploravam a ilha, tudo isso durante os primórdios. Ficaram amigos do deus protetor, mas por algum motivo ele teve que ir embora.

— Ir embora? Para onde?

— Uns dizem a Mãe Natureza se sentia ofendida com sua presença. Dizem que ele trazia uma carga de sangue e violência que não compactuava com a essência da natureza. Outros falam que isso não faz sentido. Quer dizer, a violência é algo natural, de certa forma. Animais caçam para sobreviver, nós também fazemos isso. O sangue de uns é derramado para garantir a sobrevivência de outros. Não seria a Mãe por si só adepta da violência?

A violência era, de fato, uma constante na vida da tribo secotan. Não era à toa que eram conhecidos como guerreiros, de uma maneira geral. Historicamente eram famosos por lutar contra outras tribos e, geralmente, vencer. Ainda assim, Adaky não havia vivido tal época: o seu tempo era muito mais pacífico do que séculos atrás. Ainda assim, ele enxergava a violência em seu cotidiano: eles caçavam, fabricavam armas, tinham flechas e lanças com a pontas envenenadas graças ao amplo conhecimento que tinham sobre ervas, flores, entre outros. Mas não seria essa uma violência justificada ou limpa? Ou simplesmente seria tão errada e brutal quanto a violência que Edward Muller praticou contra sua tribo? Naquela batalha, as mortes vieram, mas não serviram para que ninguém sobrevivesse. Foi a morte com o fim em si mesma.

— O que você acredita, Macawi? Não o que dizem, mas o que você diz? — Adaky queria que o mais velho contasse mais do que histórias e lendas.

— Acredito — o índio fez uma pausa, como se na verdade estivesse pensando em toda aquela questão apenas agora. — Acredito que a morte, a violência, a vida e a paz são todas faces do nosso mundo. Não opostas, mas complementares. Assim como os deuses. Eles não estão aqui para brigar entre eles, mas para constituírem o nosso mundo juntos. Equilíbrio, creio que isso seja a chave.

— Então por que você acha que o deus protetor fugiu daqui?

— Eu não sei, Adaky — Macawi mostrou uma sinceridade na voz até então incomum. — Talvez ele não tenha fugido. Talvez as histórias estejam erradas e isso aqui tenha sido o presente que ele nos deixou para enfrentarmos tempos difíceis. Quando o mundo anda desequilibrado, talvez ele seja a maneira de reestabelecer o equilíbrio. O que acha?

— Acho que é o suficiente — Adaky encerrou.

Àquela altura, os olhos dos dois nativos já estavam mais adaptados a toda aquela escuridão. A pouca luz que entrava pela abertura que forçaram tornava-se cada vez mais do que suficiente para que enxergassem de uma maneira que fossem capaz de se movimentar por lá sem medo.

— Estamos perto — o mais velho avisou.

Caminharam mais alguns metros e o corredor de pedras aos poucos se alargou. A escuridão e o eco deixaram de ser um elemento de medo, e tudo que o jovem nativo sentia era curiosidade. Ele sentia fome da verdade e uma sede imensa por justiça. Sabia que estava perto de encontrar aquilo que reequilibraria as coisas, ou ao menos era assim que acreditava. No entanto, logo se assustou com algo que tocou o seu pé.

— Pela Mãe! — Gritou como um garoto de pouco idade.

Macawi o encarou com olhos repreensivos, ainda que Adaky não conseguisse distinguir tão bem tal feição. Abaixou-se, tateou o chão e conseguiu segurar aquilo em que havia tocado.

— Um osso? — Disse erguendo-o na altura dos olhos. — Isso parece...

— Humano — o velho nativo completou. — Uma costela partida, aparentemente.

E, naquele momento, Adaky entendeu o porquê de aquela ser chamada caverna de ossos. Mas havia algo de errado com aquele osso. Ele era negro e duro como pedra, além de contar com estranhas protuberâncias ao longo de sua estrutura. Antecipando as perguntas do garoto, Macawi falou:

— Esses são ossos de todos os guerreiros que já foram portadores do deus protetor. Lutaram com honra e estão aqui para abençoar o lugar. Já faz muito tempo desde o último. Estão entre o humano e o divino, por isso essa aparência e estrutura.

Adaky assustou-se com aquela imagem, mas prosseguiu com o seu destino ao lado do índio mais experiente.

— Ali! — Macawi apontou.

O jovem nativo forçou a vista para enxergar com perfeição. Uma espécie de altar feito de pedra esculpida se fazia presente no centro do local. Ele era levemente côncavo, tornando-o distinto de qualquer outro altar visto anteriormente. Após tal objeto, só havia mais pedra, nenhuma saída. Abaixo dele, havia ainda um espaço vazio, cuja função o jovem não entendia completamente.

— Oferendas? — Ele supôs com pouca precisão.

— O altar do deus protetor, esculpido por nossos antepassados — Macawi voltou a explicar. — Este lugar é especial, Adaky. Aqui é onde o receptáculo deve se deitar e esperar a vinda do deus. Claro, não é um processo simples: muita dor é sentida. Além disso, devemos utilizar ervas e até mesmo as rochas presentes deste lugar sagrado. Então usamos o espaço ali presente para criar uma espécie de fogueira.

O garoto encarou o mais velho com medo em seus olhos. Passou a encarar as rochas ali presentes e viu que elas eram, de fato, diferentes. Pareciam mais leves do que as rochas do resto da ilha, mas havia algo de sombrio e misterioso nela. Ele não sabia explicar, mas podia sentir.

— Como eu disse, é um processo doloroso — continuou o índio veterano. — Mas aquele se deita ali, não volta como um homem, mas como um deus.

Adaky começou a encarar o altar com uma estranha admiração. Sentia-se confuso: seus últimos dias haviam provocado emoções muito contraditórias. Antes de tudo, estava tendo um romance com Jessica Muller. Era uma menina diferente de tudo que ele já vira, talvez por isso não conseguisse se livrar da memória dela. No entanto, a morte da garota veio como uma queda de um precipício. Depois disso, foi ainda aprisionado e torturado. E então conseguiu fugir com Patwin e Richard. Encontrou dias felizes na tribo, aproveitou uma boa amizade e sentiu alegria genuína. “Tudo destruído em uma noite”, pensou com desgosto, raiva e desprezo. Agora estava diante do medo, do incerto, da curiosidade e da excitação. Roanoke precisava ser salva de Edward Muller.

— Eu irei — disse em voz alta.

— O quê? — Macawi demonstrou descrença em sua voz, pensando não ter entendido muito bem.

— Eu irei ser o receptáculo do deus protetor — Adaky manteve a firmeza. — Não me importo com as dores que venha a sentir. Já perdi tudo, Macawi. E de que servi a tribo? Ao menos assim eu terei feito algo por aqueles que amo.

O velho até pensou em dizer algo contra aquilo, mas enxergava uma motivação tão forte no jovem, que se manteve em silêncio por longos segundos. Após pensar bem no que fazer, disse:

— Se está disposto, garoto, que você possa nos salvar.


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