Noite Vermelha escrita por MicheleBran


Capítulo 2
Capítulo 2




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2

Um Caso Complicado

 

Sara foi recebida pelo barulho de água correndo no banheiro quando voltou para casa. Largou as chaves do apartamento em cima da mesa da cozinha e colocou as compras em cima do balcão.

Enquanto ouvia Thiago cantarolando uma música qualquer debaixo do chuveiro, guardou alguns itens e fez seu café da manhã — torradas e café com leite.

Colocava o prato e os talheres na mesa para começar a comer quando o rapaz saiu do banheiro com uma toalha em uma mão e o celular na outra.

— Bom dia — cumprimentou. — Fome?

Ele abanou a cabeça, negando.

— Seja rápida, temos uma reunião em... — Ele lançou um olhar de esguelha ao relógio acima da entrada do banheiro. — Meia hora.

— Problemas?

— Um caso novo, a Joana me ligou antes do banho. Há umas duas noites, registraram uns ataques na serra.

A Serra de Apucarana era o limite oeste de São Miguel, uma região isolada, coberta de árvores e grandes trechos de rocha nua, com trilhas e pontos para prática de esportes radicais.

Havia poucas residências ao longo das faces da encosta, a maioria fazendas no sopé das montanhas, e uma tribo isolada ainda morava no seio da floresta, protegida em uma grande área de reserva ambiental. De longe, nas noites de céu limpo, habitantes curiosos que olhassem do local certo podiam ver fogueiras acesas.

A visão era fascinante e sinistra ao mesmo tempo.

— Certo. Disseram o que poderia ser, ou precisaremos investigar?

— Um pouco de cada. Tem uns boatos... O pessoal da Sociedade acha que é algum teriantropo desgarrado. Segundo alguns relatos, foi um animal grande, como uma onça ou um lobo. Outros dizem que foi uma pessoa com garras longas. Não se sabe ao certo. — Thiago colocou a toalha molhada no encosto de uma das cadeiras: — Em resumo: a gente precisa dar uma boa olhada antes de ter certeza.

Ela assentiu e ele foi ao quarto. Enquanto comia, ouviu o irmão colocar os instrumentos de trabalho na mochila: caderno com informações técnicas das criaturas que caçavam, armas de fogo com munição especial, facas de prata, instrumentos de ferro, amuletos de proteção e baterias extras para os celulares, em caso de emergências.

Sua parafernália do tipo já estava preparada. Thiago é que tinha o costume de organizar e reorganizar tudo antes de cada caso. Uma forma de se manter calmo e com a mente ocupada antes de se lançar ao perigo, talvez.

Pouco depois, deixaram o prédio. Percorreram a pé as poucas quadras que os separavam do centro da cidade e não precisaram de muito tempo para ver a casa grande e antiga que servia de sede para a Sociedade. A fachada cor de creme com grossas colunas escuras sustentando o teto da varanda era inconfundível.

Ao contrário do que o senso comum dizia sobre as mulheres, Sara era terrível com datas. Sempre se dera mal nas aulas de história por causa disso. Lembrava apenas os aniversários do irmão e dos pais além do seu. Por isso, não sabia mais dizer quando a S.E.S. fora fundada, apenas que tinha sido no início do século XIX por dois irmãos britânicos e dhampirs, filhos de um vampiro com uma humana, para manter a ameaça sobrenatural sob controle.

A organização se espalhara por quatro continentes naquele meio tempo e, embora não fosse tão abrangente quanto a dos vampiros, que tinha tentáculos no mundo inteiro àquela altura, dava conta de manter o equilíbrio entre humanos, vampiros, bruxos e teriantropos. Conseguira evitar derramamento de sangue mais de uma vez agindo rapidamente para conter revoltas e caçadas mortais. Até mesmo alguns vampiros alvos de ataques injustos por parte de humanos já haviam sido protegidos por ela.

No Brasil, em especial, os vampiros corriam risco por todos os lados. Precisavam dividir espaço com os lobisomens, sobretudo no interior do país, e quase haviam entrado em uma guerra civil anos atrás. Divididos entre os que queriam permanecer livres e os que requisitaram a proteção da Ordem do Dragão — a organização responsável pela política vampiresca no mundo inteiro —, cuja contrapartida era se dobrarem às suas regras, por pouco o mundo não descobrira o segredo de séculos.

Manter tudo por debaixo dos panos também era parte de seu trabalho. Mais do que investigar o que acontecia, precisava tirar da cartola uma desculpa plausível e lógica para o que os olhos dos leigos viam, mesmo que fosse tudo às claras demais para que a história funcionasse, como parecia ser o caso que tinham em mãos. Para isso, o prédio funcionava, publicamente, como uma fundação fechada que realizava pesquisas sobre cultura, mitologias e folclore local.

Até então, estava funcionando.

Sara voltou ao presente no exato momento em que pôs os pés no último degrau da escada e passou pela porta do hall. Os dois seguiram pelo amplo salão de entrada junto com alguns pesquisadores e caçadores que chegavam para iniciar seus turnos de trabalho. Entraram em um corredor à direita e caminharam até a última sala, com uma placa de metal soldada à porta.

“Joana Prates, Subdiretora Geral”, dizia o retângulo prateado.

— Entre — ela respondeu do outro lado após Thiago bater de leve.

Ele girou a maçaneta e abriu espaço para a irmã, passando logo depois e fechando a porta atrás de si.

— Bom dia, meninos — ela cumprimentou ao vê-los se sentarem.

A responsável pela sede brasileira da Sociedade parecia preocupada, mesmo por trás dos modos alegres de sempre. A situação devia ser grave.

— Bom dia, senhora Prates — ela respondeu. — O Thiago disse que a senhora ligou.

A mulher foi direta:

— Temos um novo caso pela frente e vocês me pareceram os mais indicados para cuidar dele. — Só então ela pareceu se lembrar de seu machucado. Lançou um olhar de relance ao braço enfaixado. — Espero que já esteja bem, Sara.

— Estou — ela assegurou, com um sorriso, embora não fosse uma verdade completa. — É apenas precaução, não se preocupe. Podemos fazer o trabalho.

— Ótimo.

Pelos próximos minutos, ela expôs a situação em detalhes.

Os primeiros relatos haviam chegado há pouco mais de vinte e quatro horas. Alguns moradores na parte serrana da cidade relataram atividade suspeita numa das muitas cavernas da área e, quando alguns homens mais corajosos foram investigar, encontraram corpos de animais destroçados e muito sangue no chão. Porém nada parecia justificar os ataques. Não existiam predadores conhecidos na área.

A coisa toda só se revelou preocupante quando duas crianças contaram ter visto alguém tentando atacar a mãe. A mulher não se lembrava de nada, parecia meio aérea e incapaz de fornecer maiores informações.

Além disso, tinham fotos e algumas gravações do local. A cena grotesca teria feito algum leigo ficar enjoado e virar os olhos para longe da cena, porém não os dois irmãos — já tão experientes no ramo, apesar da pouca idade.

— Alguns pesquisadores foram até lá colher material para análises iniciais, mas não chegamos a maiores resultados. Então é necessária uma investigação completa. A função de vocês é descobrir mais sobre o caso que não sejam mentiras e fofocas. Precisamos ter um panorama claro sobre tudo isso, descobrir com o que estamos lidando e, só então, poderemos saber como agir.

Sara assentiu.

— Sim, senhora. Iremos até lá agora mesmo.

— Um de nossos carros está à disposição na garagem. — Ela estendeu as chaves por cima da mesa. — Vaga 22.

Thiago assentiu e os dois deixaram a sala rumo ao local indicado. No caminho, Sara viu Pedro saindo de uma das salas do térreo com algumas pastas nas mãos.

— Dia de atualizar os arquivos. — O rapaz deu de ombros após cumprimentar Thiago com um beijo. Em seguida, abraçou a cunhada e emendou um gracejo: — Alguém tem que se sacrificar pelo resto do grupo, não?

— Vejo você mais tarde? — perguntou Thiago.

— Claro. Se cuida. — Então lançou um olhar de esguelha a Sara e corrigiu: — Se cuidem, vocês dois. Não quero mais ninguém dessa família em um hospital, pelo amor de Deus!

Sorriu e deu as costas, caminhando até outra sala.

Os dois irmãos entraram em outro corredor e passaram pela porta que os levaria ao pátio externo.

— O que acha que é? — perguntou Thiago enquanto colocava as mochilas dos dois no porta-malas de um carro preto de duas portas. — Teriantropos mesmo?

— É possível. As marcas e o sangue no local batem com o que um felino grande ou um lobo fariam — ela respondeu ocupando seu lugar no banco do motorista. — E talvez seja um dos puros, que vira animal ou volta a ser humano quando quer.

Ele assentiu e ela prendeu os cabelos em um rabo de cavalo alto. Fez uma careta ao mover demais o braço, mas logo se recompôs. Não rápido o bastante, percebeu ao ouvi-lo perguntar:

— Tem certeza que tá bem mesmo?

— Não é nada, Thi. Confie em mim. Vou ficar bem.

Então desviou os olhos dos dele e deu a partida.

 


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Notas finais do capítulo

Teriantropo: do grego "Terian", animal, besta; e "antropo", homem. Teriantropia é o nome mais adequado para a habilidade sobrenatural de se transformar em animais. Metamorfos são aqueles que se transformam em qualquer coisa (até em seres inanimados), o que não se encaixava com o que eu queria para meu "universo" (e eu sei que soa arrogante falar assim, mas fazer o quê? rs).

E sim, eu tive que pesquisar um milhão de anos pra descobrir isso rs



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