Noite Vermelha escrita por MicheleBran


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/750282/chapter/1

1

Uma Atadura Coberta de Sangue

 

Sara acordou atordoada.

Não costumava sofrer com insônia nem lembrava a última vez que tivera um pesadelo, mas lá estava ela: olhos abertos no escuro, sem nada ver, coração disparado, sentidos em alerta.

Lá embaixo, havia os sons da rua. O quarto andar estava silencioso e no apartamento de cima, ouvia apenas o sussurro fraco de uma TV ligada no que parecia ser um filme.

Rolou para o lado, disposta a ir ao banheiro, porém se arrependeu amargamente ao sentir a dor se espalhar por todo o braço como um choque elétrico. Mordeu o lábio inferior para não praguejar em voz alta e respirou fundo antes de cambalear até a porta e ligar a luz do corredor.

— Thi? — sussurrou no escuro.

Nem sinal de resposta. Normalmente, o irmão, Thiago, ou ficava trabalhando até mais tarde ou passava o tempo na casa do namorado, Pedro.

Lançou um olhar ao relógio no corredor. Mesmo que estivesse em casa, ele já devia estar dormindo há horas.

Os primeiros raios de sol já despontavam no horizonte quando ela alcançou a cozinha. Sob a luz tênue, esticou o braço esquerdo. Uma mancha vermelha contrastava com o branco na faixa em seu braço. Desfez o curativo — mordendo o lábio para tirar o último pedaço, grudado na pele — e olhou o machucado com uma careta.

Sabia que tinha que ficar feliz por não estar pior, cortes com lâminas sujas e parcialmente enferrujadas raramente acabavam bem, mas não conseguia evitar o desgosto.

Como pudera ser tão tola?

Devia ter prestado mais atenção. Aquilo era indispensável no seu trabalho, pensou enquanto revirava o armário de remédios que Thiago organizava com tanto afinco. Encontrou uma nova atadura, um spray antisséptico, uma pomada contra infecções e voltou para a pequena mesa com quatro cadeiras.

Começou a trabalhar com cuidado, primeiro limpando o ferimento e retirando os restos de sangue seco, depois colocando a pomada e esperando que secasse. Enquanto isso, suas memórias vagavam.

Não esperava que trabalhar como caçadora de criaturas da noite fosse, de alguma forma, seguro. Especialmente para ela, o irmão e Pedro, o outro membro da equipe — três humanos normais e sem nada de especial, ao contrário dos mestiços e alguns poucos vampiros a serviço da Sociedade de Estudos Sobrenaturais —, a função era sinônimo de hematomas, cortes e risco de morte constante.

Mesmo assim, estava se machucando demais nos últimos tempos.

Quase quebrara um braço numa luta com um vampiro meses antes e então aquele corte. Não era profundo a ponto de necessitar de sutura, apenas o bastante para incomodar e, volta e meia, sangrar mesmo sendo tratado desde que fora aberto — duas noites atrás.

“Podia ser pior”, ela tentou se consolar enquanto enfaixava novamente o antebraço e mandava para dentro um analgésico com um copo de suco de laranja retirado de uma caixa quase vazia dentro da geladeira.

Foi só quando se lembrou de que precisava fazer compras.

Outros itens surgiram em sua lista de tarefas, apenas para serem chutados para longe pelas lembranças da noite fatídica. Não conseguia deixar de lado a memória nítida daquele lugar fétido e escuro no meio da mata, distante demais da cidade para sequer parecer próximo a um grande centro urbano.

Parecia suspenso no tempo e no espaço, saído direto dos livros de alta fantasia que lera na adolescência. Certamente seria descrito como o local onde repousava um mal antigo por uma mente criativa.

Não era uma mentira por completo.

Precisavam parar uma bruxa, uma das mais fortes com as quais já se defrontaram, antes que ela despertasse um vampiro secular e sanguinário, que já andava sobre a terra quando a vida moderna não era sequer um sonho distante ainda.

Alcançaram a entrada da caverna no início da noite e o som fraco de um tambor à distância e a luz do que parecia ser uma centena de velas eram seus únicos guias. Os mapas e bússolas não eram mais confiáveis.

O canto rouco da mulher junto com o ribombar do instrumento ecoava pelas paredes e o chão se inclinava suavemente para baixo. Sara tinha a impressão de entrar bem devagar nas entranhas da terra para encontrar o desconhecido, o perigo.

Conforme se aproximavam, as batidas foram parando lentamente, até restar apenas a voz, que baixara até não passar de sussurros. Soava mais como o rosnado de uma fera do que uma voz humana.

Sara já conhecia o ritual. Para despertar um vampiro, obviamente, sangue era o ingrediente necessário. Apenas uma pequena porção já seria o bastante, não mais do que uma seringa de 20ml, talvez; mas para trazer o sugador de sangue de volta com a plenitude de seus poderes, uma quantidade maior era necessária.

Se pudesse ser direto da fonte, melhor ainda.

Conseguiram surpreendê-la no exato momento em que a terrível feiticeira de mil nomes se preparava para golpear uma vítima com uma faca bem na altura do pescoço.

Sara se lançou contra a mulher, apenas percebendo tarde demais que não sairia como o esperado. A bruxa era habilidosa e largou a moça desacordada — que certamente devia constar na polícia de São Miguel Arcanjo ou de alguma cidade próxima como desaparecida —, girando o punhal em direção à caçadora em seguida.

A lâmina era antiga e meio enferrujada de um lado, embora o fio ainda estivesse afiado o suficiente para rasgar a pele de seu antebraço e sujar o chão e o que parecia um longo altar de madeira meio podre com seu sangue, que fluía em profusão.

Pressionou a mão contra o corte aberto e, num pensamento rápido, percebeu que o melhor era sair de cena. Ferida como estava, mais atrapalharia do que serviria para alguma coisa. Depois disso, a noite era uma confusão do tempo que passara na caverna, a volta para casa e a consequente ida à enfermaria na sede da Sociedade, que era conhecida simplesmente pela sigla S. E. S.

Suas memórias só iam até ali. Depois, eram pedaços. Perdida entre a dor e a perda de sangue, só voltara à consciência plena em meio a lençóis de um branco profundo, deitada em uma maca com o braço enfaixado e latejando — o que só aumentava suas crenças de que a lâmina fora embebida em alguma substância mágica.

Fora Thiago, sentado em uma cadeira ao seu lado, quem lhe passara as informações. Haviam conseguido. Destruíram a bruxa. O maléfico vampiro alemão que, seguindo os relatos de que dispunha, fugira para o Brasil após a Segunda Guerra não era mais uma ameaça. Sequer conseguiram encontrar seu esquife. Estava tudo bem.

Com esse pensamento em mente, resolveu tomar um banho para começar o dia mais disposta e ignorar a impressão que não a abandonava desde aquela noite: de que era constantemente observada, de que algo estava errado e coisas muito ruins ainda aconteceriam.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Noite Vermelha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.