WILL

Eu sinceramente odeio batalhas que são à noite. Não porque meu pai é Apolo, nada a ver (ou talvez um pouco no subconsciente), mas sim porque é escuro e eu sinceramente já estava com sono. Mas não… lá estávamos nós prestes a começar uma batalha contra um monstro que conseguia fazer todos os nossos golpes atravessarem completamente inofensivos. Como se derrota um monstro assim?!

— Aceitando qualquer ideia para matar um monstro que todo golpe atravessa! - falei alto torcendo para alguém ter uma ideia genial.

— Alguém tem um golpe que não seja tão… físico? - perguntou Sam - Tipo… controle de mente ou… ou… sei lá… 

Arco e Flecha estava longe de ser um ataque não físico. Curar não era nem um ataque. O que só me restava a capacidade de ser uma lanterna ambulante, mas como o barco já tinha chamas ambulantes aparentemente controlando-o, não precisávamos de mais uma lanterna. 

Ao meu redor, Hearthstone remexia na sua bolsa de runas, o monstro se aproximava cada vez mais rugindo bem alto fazendo os pelos da minha nuca se arrepiarem. O desespero estava tão grande que Blitzen e Sadie falaram ao mesmo tempo.

— Aquela runa que usou pode nos fazer ganhar tempo…  - dizia Blitzen para Hearthstone.

— Eu tenho uma ideia meio bosta que pode nos fazer ganhar um tempinho. - disse Sadie também segurando a varinha - Se eu conseguir acertar nesse escuro.

Nico ia falar alguma coisa, mas não consegui ouvir pois tudo foi interrompido quando o monstro, apesar de nosso desespero em achar algo para matar algo impossível de atingir, começou a gritar de pura dor. Era um grito horripilante, agudo, como se o monstro estivesse sendo rasgado em pedaços e que parecia vir do fundo do tártaro… ou seja lá de onde monstros sumérios veem. 

No começo, o Asag estava longe demais para a luz do barco alcançá-lo o suficiente para conseguirmos ver qualquer coisa. Mas, naquele ponto, conseguimos ver alguma coisa e, apesar da minha habilidade de lanterna ambulante não ser minha favorita, eu me iluminei e torci para minha ajudinha extra fazer a diferença na tentativa de ver melhor o que acontecia.

A visibilidade ainda não era a melhor coisa do mundo, o que deixava a visão bem pior. A escuridão parcial deixava o Asag parecendo mais horripilante do que ele já era. Eu não sabia o que era pior, a pele que parecia carne viva, ou a combinação horrenda de asas como as de um morcego, quatro chifres bem longos e pontiagudos, todos os dentes bem pontiagudos também e ainda por cima uma língua bem longa. e 

No meio desse cenário de pesadelo, consegui ver o Asag se contorcendo de dor chegando a arranhar os próprios braços e rosto. Como isso não era exatamente o que esperávamos que fosse acontecer tão subitamente pouco tempo depois do Asag aparecer, todos estávamos meio chocados e surpresos. Mas também não demorou muito para olharmos ao redor, curiosos com o que ou quem estava causando isso, e notarmos um detalhe importante.

Todos nós, com exceção de um, estávamos perdidos olhando ao redor tentando entender o que acontecia, mas não Anúbis que estava com o cetro com a ponta na direção de onde o monstro estava e com uma expressão de concentração no rosto que sinceramente me deu um pouco de medo. 

Eu não sei se Sadie sabia o que tava acontecendo ali, só sei que ela se recuperou mais rápido da surpresa e apontou para o Asag com sua varinha.

— SA-MIR! - gritou Sadie ao mesmo tempo em que Hearthstone usava uma runa e eu achava que, dado o estado do monstro, talvez testar a efetividade de uma flechada seria uma boa.

Preparei minha flecha vendo os dois feitiços de Sadie e Hearthstone dando sinais positivos já que via hieróglifos aparecendo no corpo do monstro e deles parecia sair fumaça e faíscas. No meio disso tudo ainda, o corpo do monstro começou a congelar parcialmente, mas já estava descongelando quando atirei minha flecha. 

Sinceramente, eu achava que ela ia passar direto, já que vi o corpo dele começando a engolir minha flecha como se ela não fosse nada. Mas acho que a intangibilidade dele falhou, pois a flecha não continuou seu percurso. Ficou lá, engolida pela metade com a pontinha final da haste para fora. O mesmo não pode ser dito para o raio do garoto asteca ou maia, o Eduardo. Ele passou segundos antes da minha flecha e atravessou o monstro sem fazer aparentemente estrago algum. Isso me rendeu um olhar irritado da parte dele como se eu tivesse alguma culpa do ataque dele não ter dado tão certo assim.

— TÁ DANDO PARA ATINGIR ELE MAIS OU MENOS, VAMOS APROVEITAR! - incentivou Mestiço que parecia já a umas boas horas ansioso para comprar porrada com alguém.

— Ele está mais em cima do mar do que do barco! - lembrou Victoria - Só quem sabe voar ou sei lá conseguirá chegar tão perto.

No meio da discussão, sob o olhar irritado de Eduardo, eu preparei outra flecha, mas não atirei, pois Nico colocou a mão sobre a minha no arco e, sem olhar para mim, disse:

— Não gaste suas flechas.

— A primeira parou na metade. Deve ter causado algum dano. - falei olhando para ele que ainda olhava para o Asag.

— Olhe de novo. - pediu Nico.

Bem, olhei de novo. A minha flecha ainda estava lá mas… ela estava se mexendo. Caindo lentamente como se uma hora estivesse fixa no corpo do monstro e na outra estivesse fixa em absolutamente nada ou então em um monte de gosma, pois ela ía caindo devagar. Do mesmo jeito, o dano dos feitiços de Sadie e Hearthstone era curado rapidamente. Quanto ao sei lá o que que Anúbis fazia… bem, não tinha nada visual para eu analisar. Mas era fato que, apesar de tudo, o que fazíamos parecia só atrasar um ataque pior e qualquer dano se curava tão rápido que o Wolverine e Deadpool teriam inveja.

Contudo, pelo menos, no meio daquela confusão toda, o Asag ia ficando cada vez mais para trás. Isso também significava que, cada vez mais, a luz do barco emitida por mim e pelas chamas-marinheiros não conseguia alcançá-lo. O breu tomou conta completamente, não conseguimos ver mais nada, apenas escutar o grito de pura dor extremamente desconfortável de se ouvir.

Mas não era só porque não dava para ver mais nada que iríamos parar. Ah não. Sadie, Anúbis e Hearthstone continuavam concentradíssimos nas suas magias mesmo com 0% de visibilidade. Até que então, já razoavelmente longe, ouvimos o barulho de algo grande se chocando contra a água. No segundo seguinte, os três suspiravam aliviados e Blitzen gesticulava algo para Hearthstone que eu chutava significar algo como “acho que ele caiu na água”.

— O que raios acabou de acontecer? - perguntou Eduardo.

Eduardo estava claramente bem mais perdido na situação do que o resto de nós, o que fazia sentido já que ele, até onde eu entendi, chegou na Base del Quinto Sol depois de tudo que aconteceu em Teotihuacan. Provavelmente as meninas, Victoria e Micaela, não atualizaram ele direito dessa parte dos nossos problemas. Bem, eu não tinha visto elas conversando direito com ele até agora. Acho que não se dão bem.

Mas enfim, enquanto Eduardo olhava para nós em busca de explicações, Blitzen, Hearthstone e Mestiço olhavam Anúbis extremamente curiosos e preocupados para entender o que ele tinha feito. O resto de nós estavamos menos curiosos pois logo me lembrei, ele fez o mesmo com Chalchichiuhtlicue em Teotihuacan, mas Blitzen, Hearthstone e Mestiço não estavam lá para ver já que foram para Chichén Itzá.

— Isso foi o mesmo que você fez com “Chalchal” né? - perguntou Sadie para Anúbis pensando o mesmo que eu.

— Chalchiuhtlicue? Sim, foi…  - respondeu Anúbis.

— E o que exatamente é “isso” que você fez? - perguntou Blitzen.

— Tentar arrancar a alma dele…- explicou Anúbis.

— E funciona? Funcionou? - perguntou Sam exatamente o que eu e provavelmente os outros queriam saber também.

— Não. - respondeu Nico, aparentemente já sabendo a resposta.

— Não dá para ir até o final… Foi o que fiz em Teotihuacán para dar tempo de fugirem.  - justificou Anúbis, aparentemente não era nenhuma novidade -  Chalchiuhtlicue também não, mas no caso do Asag não funciona porque ele só pode ser morto pelo Sharur.

— Mas… pelo menos dá para desmaia-lo ou algo do tipo, pelo visto, né? - perguntei e Anúbis afirmou com a cabeça.

Sam se distanciou da discussão, indo para a popa do barco e ficou olhando para a água talvez tentando ver alguma coisa. Os mexicanos se juntaram a ela também. Mas Blitzen ainda parecia curioso.

— Parecia complicado fazer esse negócio da alma… - disse Blitzen - Não conseguiu duas vezes.

— Com deuses e monstros com essas regras de o que pode ou não matar não costuma funcionar mesmo. - respondeu Anúbis.

E assim, do nada, Blitzen começou a rir bem alto e intensamente como se tivesse ouvido a maior piada do mundo. Eu olhei para Nico esperando que ele tivesse entendido qual era a graça, mas ele simplesmente deu de ombros igualmente perdido. Mas quando Blitzen olhou para Mestiço, fui começando a entender qual era a graça.

— E você… - disse Blitzen ainda rindo entre as palavras e olhando para Mestiço - Você queria gastar… sua necessidade dar porrada em alguém com ele…

— Então temos algum tempinho de tranquilidade antes de ele voltar novamente? - perguntou Sam se virando para nós, mas ainda na popa do barco.

— É o que me parece. - respondeu Sadie - Acho que a nossa parte deve ter ajudado um pouquinho, não? Nem que seja para ganhar uns 5 minutos a mais de ele desmaiado.

— Não sei dizer… - respondeu Anúbis.

— Vamos ficar de olho então. - incentivei enquanto vi Sam se afastando da popa, pegando um tapetinho, uma garrafa d'água e o celular na mochila - Uns ficam de olho e o resto fica pensando num jeito de derrotar ele.

— Não tem como derrotar, só enrolar ele infinitamente até encontrarmos essa bosta de Sharur. - disse Nico.

— Podemos discutir isso também. - falei - Onde achar a Sharur.

— Eu preciso de uns minutinhos, ok? - disse Sam posicionando o tapete num canto do barco bem afastado de nós e parecendo checar no celular a angulação perfeita dele em direção a algo… algo como a Meca, pensei - Finjam que eu não existo por uns minutos… a não ser que o monstro apareça de novo. Eu estou atrasada já.

— Ok. - respondi.

Tentando dar privacidade para Sam, eu e os demais nos dividimos em dois grupos bem desproporcionais. Eu e Eduardo ficávamos de pé de olho nas águas que o barco deixava para trás prestando atenção em cada barulho estranho para ter certeza que não era o Asag voltando, e o resto do pessoal discutia sentado no chão o que fazer com o nosso perseguidor. Apesar de não estar no segundo grupo, eles estavam perto o suficiente para ouvirmos a conversa também e admito que prestei atenção.

— Podemos ficar repetindo isso que fizemos agora até chegar na Europa… - sugeriu Victoria, mas ela mesma não parecia confiar nas próprias palavras. 

— Não disseram que tem algo que impede vocês de chegar até lá? - perguntou Sadie.

— Se é assim, esse não vai ser o único dos nossos problemas até a Europa. - disse Nico - Não sabem nada sobre esse problema de vocês?

— Não. Desculpe. - respondeu Micaela.

— Sem falar que a gente cansa.. - disse Blitzen, talvez por Hearthstone, não sei dizer, estava de costas para eles - … Você cansa né?

— Eventualmente…Mas não sei quando. - respondeu Anúbis - Essa magia da alma não é exatamente fácil.

— E também não sabemos nada sobre onde encontrar o Sharur… - disse Mestiço com raiva e aparentemente socando o piso do barco - Tantos empecilhos para chegarmos até o País de Gales.

— Vai dar tudo certo. - garantiu Blitzen.

— Hearthstone, - disse Sadie - eu tenho uma magia que talvez, junto com alguma runa sua, derrube o Asag por um tempo também. 

— Ele disse que depende. - respondeu Blitzen - Quer saber como é a sua, se é a que você usou a pouco.

— Estava pensando em outra. - disse Sadie - Tem uma que deixa o adversário calmo e outra que derruba ele no chão. Mas elas só duram enquanto eu estiver usando a magia então… eu vou me cansar e quando isso acontecer, ele tá bem de novo. O ideal seria ao menos desmaiar o Asag ou algo que a gente não precise estar fazendo esforço para continuar a funcionar.

— Tem a de congelar, mas ele descongelou bem rápido. - disse Blitzen depois de alguns segundos de silêncio pensativo - Mas consigo deixar ele preso num loop. Pode funcionar por uns segundos.

— Fazer isso até a Europa, mesmo intercalando, parece bem cansativo. - disse Mestiço.

— Tem um outro feitiço que eu tenho pensado mas… ainda não testei. - admitiu Sadie.

— O que é pra ele teoricamente fazer? - perguntou Nico.

— Confundir a cabeça do adversário. - respondeu Sadie - Só espero que também não enquanto eu manter o feitiço.

— Deve funcionar. - opinou Anúbis.

— Você nem viu ainda… - reclamou Sadie.

— Você conseguiu misturar magia egípcia de milhares de anos com o Google Maps. - disse Anúbis - Eu não duvido de nada mais.

— Você também ajudou… - lembrou Sadie.

— Pode ficar com todos os créditos desse. - disse Anúbis.

— Podemos fazer o teste. - sugeriu Mestiço - Então ficamos revezando até a Europa… acho que é o jeito. 

 O pessoal ficou mais alguns minutos discutindo como seria esse revezamento e esse teste e então, quando Sam se juntou a nós novamente, o assunto foi como realmente resolver os problemas que nos esperavam ao invés de só enrolar. O problema, era que ninguém fazia a menor ideia.

Eu não sabia quão doloroso a longo prazo poderia ser ter sua alma quase arrancada do corpo a força, mas provavelmente era bastante, pois deu tempo de uns tirarem uma soneca depois que nos vimos sem ideias milagrosas quando o Asag se aproximou novamente.

Ao menos foi uma boa chance para testar a ideia de Sadie, que depois de alguns poucos ajustes e tentativas, funcionou. Aparentemente o problema inicial era sinônimos errados de palavras em egípcio, enfim, não entendi direito. O importante é que funcionou o suficiente para nos deixar na sequência de ‘lidadores do Asag’ em Sadie, Anúbis, Hearthstone, Anúbis, Sadie, Anúbis, Hearthstone, Anúbis, Sadie, Anúbis e assim em diante. Tenho que fazer um abaixo-assinado para ter sempre um deus nas próximas missões. Muito útil.

Apesar de tudo, nossa noite foi muito mal dormida. Acordei várias vezes com as aparições de Asag que, no começo, lidamos até bem. Tudo tinha caído numa sequência de ações fácil já que o monstrengo não parecia ser muito inteligente também. Mas conforme as horas foram passando e ninguém conseguia descansar direito, tudo foi ficando gradualmente mais desleixado, e perigoso.

Uma ou duas vezes, o Asag conseguiu de fato alcançar o barco e todos tivemos que lutar, ou nos defender, pra falar a verdade. Numa dessas vezes, o feitiço de Sadie derrubou o monstro bem no piso do barco fazendo ele chacoalhar fortemente e quase virar. Ele inclinou tanto que Micaela de fato caiu na água mas foi prontamente resgatada por um exausto Eduardo. 

Esses problemas principalmente causados pelo cansaço fez a sequência ‘lidadores do Asag’ mudar mais pro final da noite. Mas eu estava simplesmente cansado demais para raciocinar como ela tinha ficado. 

Eu ainda estava morrendo de sono quando o sol nasceu. Nem imagino como Sadie e Hearthstone estavam. Cansado, levantei tentando não acordar Nico logo do meu lado, bocejei e fui atrás dos três ‘lidadores do Asag’ enquanto aproveitava o que provavelmente era nossos últimos minutos antes dele aparecer novamente.

Sadie e Hearthstone estavam horríveis. Eles estavam dormindo, mas a aparência deles era simplesmente péssima. Com olheiras nas olheiras, os olhos deles estavam bem fundos e eles estavam largados de qualquer jeito no chão usando como cobertor o que parecia ser a jaqueta de Anúbis para Sadie e o terno de lã preta de Blitzen para Hearthstone.

Ao lado de cada um dos nossos ‘lidadores do Asag’ adormecidos, estavam os donos do casaco que servia de cobertor com a diferença que Blitzen estava dormindo ao lado de Hearthstone e Anúbis estava sentado ao lado de Sadie, com o cetro do outro lado dele, parecendo, preocupantemente e incrivelmente, de fato meio cansado.

— Hey. - disse para ele e peguei um pacote de biscoitos na sacola amontoada de comida que estava no meio do caminho - Longa noite?

— Bastante. - respondeu ele.

— Quantas visitas do nosso amigo monstrengo eu perdi enquanto dormia? - perguntei.

— Cinco, e acho que estão ficando mais frequentes.

— Bem, ele claramente é burro o suficiente para não pensar em como revidar de nós. - disse - Pedir para ele ser sem determinação o suficiente para tentar se vingar mais rápido seria pedir demais. Quem lidou com as últimas cinco?

— Eu. Eles precisam dormir.

— Hoje a tarde chegamos na Europa e talvez… talvez conseguimos algum lugar que ele não consiga chegar perto, como a Base Del Quinto Sol.

— Espero. - respondeu Nico atrás de mim se juntando a conversa - Já era para ele ter aparecido né? O Asag. Já faz algum tempo desde a última. Ou teve outra que eu perdi?

— Não… a que você acordou foi a última mesmo. - respondeu Anúbis.

— Queria acreditar que isso é um sinal que derrotamos ele ou que ele desistiu mas… não estou com um bom pressentimento. - disse Nico.

— Gente… - disse Sam lá na proa do barco.

Eu não tinha notado que ela também estava acordada. Mas também, eu não tinha olhado o barco direito. Nós três olhamos para ela, lá na proa segurando o seu tapetinho provavelmente tendo acabado de terminar sua primeira oração do dia, e notamos que ela parecia preocupada com algo que acontecia na frente do barco.

— Aquilo por acaso é uma caravela? - perguntou ela olhando para o horizonte.