Crônicas Mitológicas escrita por Elias Franco de Souza


Capítulo 6
Jasão


Notas iniciais do capítulo

Um bardo, ou aedo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, lendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados. Era simultaneamente músico, poeta, historiador e acessoriamente moralista. Foram muito importantes na Grécia antiga para transmitir histórias como a da Guerra de Troia ao longo de séculos em que ainda não existia a escrita.

No recém-publicado capítulo 6 de Crônicas Mitológicas, Jasão encontra-se com um bardo, com o qual discute histórias dos cavaleiros de ouro.



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Após comprar e almoçar peixe em Iolco, Jasão pegou a estrada de volta para o interior. Caminhava em bom ritmo, à sombra das árvores, para se proteger do sol da tarde, e planejava chegar na costa leste do Monte Pélion antes do anoitecer.

Agora, fora da cidade, já estava mais tranquilo. Por um momento, seu instinto lhe disse que o rei pudesse querer matá-lo. Por isso, mentiu sobre não desconfiar de seu verdadeiro pai e inventou que já houvesse descartado a possibilidade da adoção com seus pais. Embora Pélias tivesse lhe dado uma pista valorosa para encontrar seu pai biológico, era arriscado demais fazer essa investigação com ele. Ao menos, Jasão descobriu duas possíveis informações que lhe ajudariam. Que o nome de seu pai podia ser Esão, e que ele era irmão do rei de Iolco. Se Jasão pudesse confirmar que esse Esão foi um Cavaleiro de Zeus, e cuja constelação pudesse ser identificada por quatro estrelas quase alinhadas, ele teria certeza absoluta de que era mesmo filho dele.

Porém essa não era mais a única preocupação de Jasão. Seu coração ainda doía por ter ignorado Hele – embora tivesse sentimentos conflitantes pela irmã de criação, a declaração súbita atingira seu coração de uma forma que nem mesmo o deus Eros[1] poderia ter sido tão certeiro. Jasão passou o dia inteiro pensando nela. Tivera esperanças de que ao conhecer o noivo de Hele, se sentiria feliz pelo futuro dela, e dessa forma aceitaria a separação iminente. Pelo contrário, no entanto, sua conferência com o rei Pélias o fez crer que ele era um homem perigoso e em quem não podia confiar-se. Hele definitivamente não podia se casar com ele. Não havia riqueza no mundo que justificasse passar o resto da vida presa a um crápula. Entretanto, Jasão não tinha certeza do que deveria fazer para ajudá-la. Planejava buscar a orientação de seu sábio tio. Ele também se preocupava muito com a sobrinha, e saberia o que fazer.

— O que é isso? — indagou, pensando alto.

Uma bela melodia interrompeu seus pensamentos. Do fundo do bosque, fora da estrada, uma música ecoava em sua direção. Ela tinha um ritmo melancólico, porém sedutor, e parecia estar chamando por ele. Jasão nunca havia ouvido algo tão belo. Como havia deixado Iolco mais cedo do que o planejado, tinha tempo livre para chegar na casa de seu tio antes do anoitecer, e decidiu descobrir de onde o som vinha. Depois de percorrer cerca de cem metros, chegou a um córrego onde encontrou um jovem loiro sentado à margem, tocando um instrumento de cordas desconhecido.

— O que é isso que você está tocando? — perguntou com receio de incomodá-lo. O jovem errou uma nota com a interrupção, e parou de tocar imediatamente. Ele estava com os olhos fechados, mas abriu-os lentamente para fitar Jasão, analisando-o dos pés à cabeça. — Eu... Acho que te atrapalhei. Peço perdão por isso.

— Não se preocupe — o tranquilizou com um sorriso. — A solidão estava ficando monótona. Gosto de tocar na companhia de outras pessoas. Isso é uma lira. Nunca viu uma?

— Não. Só tinha ouvido falar. Meu tio disse que foi Apolo quem a inventou.

— Quase isso. Na verdade foi Hermes quem criou a primeira. Mas ele deu a Apolo em troca do caduceu, pois o deus da música, obviamente, tinha mais talento para tocá-la.

— Ah, é verdade. Eu não lembrava bem da história — explicou-se, sentando-se.

— Gosta de histórias? — Indagou enquanto voltava a tocar a lira, agora num ritmo diferente, mais alegre. — Eu conheço algumas.

— Gosto. Principalmente as de feitos heroicos — respondeu animado. Havia algo de curioso naquele bardo. Embora o conhecesse a pouco tempo, já se sentia à vontade em sua presença. Seria efeito daquela música?

— Então eu vou lhe contar uma dos Cavaleiros de Zeus. Sabe a respeito deles?

— Bom, eu já conheço a maioria das histórias que os bardos contam deles. O meu tio sabe muitas — confessou, sem esperança em ouvir algo novo.

— Ah, mas eu garanto que sei muitas das quais você nunca ouviu falar. As minhas histórias são únicas, porém todas verdadeiras! Me diga, dos cavaleiros de ouro, quais você conhece?

— Deixa eu ver. São muitos... Quer que eu te fale todos? — Jasão tinha certeza que Esão não seria um cavaleiro de ouro, pois seu tio já havia lhe falado de todos. Mas talvez valesse à pena investigar o que o bardo poderia saber. Conversar sobre os cavaleiros de ouro era um bom assunto para começar.

— Por favor.

— Bom... Meu tio já me contou dos quatro cavaleiros de serpentário antes dessa armadura ser banida. Asclépio, Sísifo, Tântalo e Íxion...

— Estou surpreso. Poucos conhecem essas histórias. São muito antigas.

— Estou surpreso também que você tenha reconhecido eles — observou.

— Que outras você se lembra?

— Vamos ver, dos cavaleiros da era atual, ele me contou do Cadmo de Libra, o único capaz de matar o dragão filho de Ares, do Héracles de Sagitário, que foi o único cavaleiro da história a sobreviver à provação do zodíaco, além dele ter matado vários monstros como a Hidra de Lerna, o Leão de Nemeia e o Javali de Erimanto...

— Quê mais? — questionou enquanto acompanha com atenção.

— O Édipo de Peixes, que matou a Esfinge de Tebas, e seu discípulo Narciso, que lutou em seu lugar na guerra. O Perseu de Aquário, que matou a Górgona. Egeu de Escorpião e seu filho Teseu, que herdou a famosa Espada de Mercúrio. Peleu de Leão, e seu sacrifício na batalha do Cabo Sunio... Tem também Atreu de Capricórnio, Cleóbis e Bitão de Gêmeos, Protesilau de Touro, Teras de Câncer, Leonteu de Libra, Academo de Virgem e seu sucessor Sufax... E os mais novos que são Aquiles, Ájax, Diomedes, Agamêmnon, Castor, Pólux e Odisseu — Jasão ficou pensativo durante alguns segundos antes de concluir — Isso é tudo o que eu conheço.

— Só isso? Tem certeza de que não esqueceu nenhum? — Indagou, não parecendo impressionado.

— Sim... Por quê? — Jasão achava curioso que aquele homem conhecesse todas essas histórias e ainda as considerasse poucas. O garoto tinha certeza de não ter se esquecido de nenhum.

— Não me entenda mal. Você tem um conhecimento vasto sobre a maioria dos atuais cavaleiros e seus predecessores. Eu já esperava que você fosse desconhecer um ou outro, mas me chamou a atenção que você não tenha citado o nome de nenhum Cavaleiro de Áries.

— Hã? É mesmo... — como foi que Jasão nunca percebeu isso? — É estranho mas, de todas as 13 armaduras, meu tio nunca me contou sobre nenhum cavaleiro de Áries. Às vezes eu até esqueço que essa é uma das constelações do zodíaco — o músico riu.

— Então, já que você não conhece nenhum, eu vou te contar uma história sobre um deles. Vamos começar pelo último cavaleiro de Áries, que foi... Esão — Jasão congelou ao ouvir aquele nome. — Ele morreu já faz quinze anos, e depois dele ninguém o sucedeu. Foi um pouco antes da guerra começar... Que cara é essa que você está fazendo? Já tinha ouvido esse nome antes?

— Esse tal de Esão... Ele teve filhos? — abalado, Jasão fitava o chão, e tinha dificuldade para seguir com naturalidade na conversa. Como pode se esquecer? Acabara de se lembrar que a constelação de Áries, embora tivesse mais estrelas, podia ser mais facilmente identificada através de seus quatro astros mais brilhantes, que se dispunham quase em uma linha reta.

— Hm... Sim... Ele teve somente um filho. A esposa dele adoeceu algum tempo depois de dar à luz, e Esão morreu logo em seguida. Mas ninguém sabe o que aconteceu com o filho dele, ou qual era o seu nome. Esão manteve esse filho em segredo após a morte da esposa. — O bardo parou de tocar a lira. — O que é que deu em você? Não me diga que você conhece o filho desaparecido dele? — questionou rindo. Jasão sabia que sua expressão estava o entregando.

— Eu... Não sei. — O rapaz não tinha certeza se era seguro revelar a suspeita. O bardo o analisava.

— Eu posso lhe ajudar, mas somente se me contar a verdade. — O músico parecia ser mesmo amigável... Certamente era mais confiável do que o rei Pélias. Jasão poderia conversar com ele.

— Eu tenho tido sempre os mesmo sonhos nas últimas semanas. Nele, esse homem chamado Esão diz ser meu pai e me aponta uma constelação no céu, que me parece ser a de Áries — Jasão achou melhor omitir a conversa que teve com o Pélias por enquanto.

— Então é sobre você... Não conhece o seu pai biológico?

— Eu tentei tocar no assunto de adoção com os meus pais uma vez, mas eles ficaram muito irritados. Então eu tenho essa suspeita. — O bardo se levantou. Jasão percebeu que a feição dele havia mudado bastante. Seu rosto, antes tranquilo, agora estava tenso e sério. O bardo caminhou a passos lentos na direção do garoto, que continuava sentado. — O que você está fazendo? — questionou, desconfiado.

— Não se mova — ordenou. Apesar de suspeito, Jasão não sentia perigo em suas intenções, então o obedeceu. Ao se aproximar, o bardo tocou-lhe a testa com a mão, e manteve o toque por vários segundos. Jasão não soube precisar quanto tempo passou, devido a ansiedade do momento. O que esse estranho estaria fazendo? Quando finalmente o soltou, o bardo abriu um sorriso, o que deixou Jasão ainda mais acanhado com a situação esquisita. — Não se preocupe. Você não é filho dele — concluiu.

— Como... Você sabe... Apenas por tocar a minha testa? — questionou incrédulo.

— Você certamente já ouviu falar sobre o cosmo dos cavaleiros, não ouviu? — Jasão acenou positivamente. — Filhos de cavaleiros herdam um cosmo tão grande quanto a dos seus pais, de forma que ele pode ser sentido por outro cavaleiro mesmo que a pessoa em questão não saiba manifestá-lo. É dessa forma que nós identificamos crianças com potencial para serem treinadas e se tornarem cavaleiros. Mas, no seu caso, por mais que eu me esforce, não consigo sentir um resquício de cosmo se quer. Tanto Esão quanto a esposa dele foram cavaleiros poderosíssimos. Por mais que o filho deles tivesse herdado os genes errados, ele deveria ter no mínimo o cosmo de um cavaleiro raso... Mas não pude sentir nada em você, é quase decepcionante. Para ser indetectável, o seu cosmo tem que ser tão pequeno quanto o de um macaco.

— Eu sou... Decepcionante? — A comparação com um macaco o deixou constrangido. O músico lhe deu as costas e começou a ir embora. — Espere! Onde você vai? Como vou acreditar em tudo o que você disse?

 

Jasão se levantou para correr atrás do bardo, mas antes que pudesse tocar-lhe o ombro, sentiu uma força batendo-lhe no peito, como se tivesse se chocado contra uma parede invisível, não conseguindo avançar mais. Sem entender o que aconteceu, pensou que tivesse apenas ficado louco por um instante, e tentou correr atrás dele mais uma vez. Mas antes que desse mais de dois passos, foi repelido por outra força invisível contra o peito, dessa vez mais forte, e que o lançou dois metros para trás. Jasão exclamou de susto e rolou para trás ao cair no chão, olhando incrédulo em todas as direções ao redor a procura do que tivesse lhe atacado.

— Que porra é essa?!

— Nunca ouviu falar em telecinese, o poder de mover objetos com a mente? — indagou.

— Telecinese?! Eu... Já. Mas eu não acreditei que você fosse mesmo um cavaleiro. Onde está sua armadura? — o bardo soltou uma amistosa gargalhada.

— Você acha que a gente anda com ela por aí o tempo todo? Escute, garoto, eu estava interessado em você, pois você podia ser o filho de Esão. Mas já determinei que não é. E mesmo que fosse, com esse cosmo minúsculo que você tem, tão pequeno que eu nem posso sentir, você não serviria de nada. Não faz diferença alguma para o futuro do mundo você estar vivo ou morto; não é ameaça para ninguém. — O menosprezo estava irritando Jasão, que gostaria de revidar. Mas ele não podia fazer nada contra alguém que era um verdadeiro cavaleiro. — Se você quiser ter uma história sua para contar dessa sua vida medíocre, pode dizer que cruzou seu caminho com o Cavaleiro de Ouro Orfeu de Virgem, e ele poupou a sua vida.

Antes que Jasão pudesse retrucar, sentiu outra força invisível, dessa vez bem mais forte. Jasão foi lançado e depois foi sendo arrastado dezenas de metros para trás, rolando muito rapidamente através do terreno. Era como se um furação o estivesse empurrando para longe, sem que ele pudesse oferecer qualquer resistência. Quando a força finalmente desapareceu e Jasão parou de rolar pelo bosque, ele já estava a pelo menos cem metros de distância, e não conseguia mais ver Orfeu por entre as árvores. Sentou-se, remoendo-se de dor devido às escoriações causadas pelos choques contra o solo, e percebeu que estava de volta à estrada.


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Notas finais do capítulo

[1] Eros (Cupido, no latim) é o deus do amor, filho de Afrodite e Ares. Atirava setas envenenadas com amor e paixão.



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