Crônicas Mitológicas escrita por Elias Franco de Souza


Capítulo 5
Pélias


Notas iniciais do capítulo

Jasão volta a aparecer na história, e surge o Cavaleiro de Bronze de Therion, a besta, a constelação original hoje identificada como o Lobo.



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Em seu gabinete, o rei de Iolco contava suas moedas de ouro, tarefa que ele prezava em realizar pessoalmente. A sala era enfeitada com mobílias adornadas em ouro, tapeçarias exóticas, vasos de bronze e esculturas de mármore. Havia uma abertura ampla, sob longas cortinas brancas, que dava para uma sacada, por onde entrava a luz do meio-dia. Pélias era um homem no início da meia-idade, porém aparentemente ainda com muito vigor físico. Seus cabelos loiros desgrenhados desciam até o ombro, e seus olhos eram de um azul muito límpido.

— Entre — pronunciou alto, ao ouvir alguém bater à porta.

— Meu rei, esse é Jasão, filho de Filêmon e Báucis, a quem o senhor requisitou receber pessoalmente — anunciou o guarda.

— Ah, é claro! Entre, entre... Traga-me a encomenda. Coloque-a sobre a mesa. Deixe-nos ver — disse, levantando-se da cadeira e ajudando Jasão a descarregar os tecidos. — Ah, essas colchas que sua irmã fez ficaram maravilhosas. Ficarão esplêndidas nas novas camas. De fato, o talento dela em tecer só é comparável ao da própria deusa Atena[1], senão maior.

— Não diga isso. Não queremos ofender a glauca Atena — advertiu Jasão, rindo, mas também com uma expressão preocupada.

— É, de fato... Foi apenas força de expressão. Os deuses que me perdoem... Eles sabem, e eu também, que Atena é inigualável na arte de fiar. Agora, sente-se rapaz. Eu não lhe chamei aqui apenas para entregar as colchas. Vamos conversar — esperou o garoto sentar-se, antes de continuar. — Você certamente está estranhando o nosso encontro, já que essa é a primeira vez que eu recebo a sua entrega pessoalmente. Você está certo em estranhar, posso ver em seus olhos. O meu pedido em recebê-lo não foi despropositado. Veja, eu tenho a mais alta consideração por sua irmã e pela família dela. Mas não esqueçamos que estamos em tempos de guerra. Pagar alto por esses serviços... Supérfluos... É um privilégio difícil de manter. E eu pago adiantado. Hoje, entretanto, o essencial são alimentos e equipamentos bélicos para as tropas, você sabe disso...

Conforme falava, Pélias analisava as reações do garoto a cada uma de suas palavras. Apesar de jovem, ele parecia estar se sentindo muito à vontade para alguém que era recebido por um rei pela primeira vez. O rapaz não era facilmente impressionável, concluiu Pélias, e parecia estar acompanhando a sua retórica, como se já soubesse desde o início aonde ele queria chegar.

— Eu tenho conhecimento de que a demora em acatar o seu pedido de casamento o desagrada. Nós lamentamos por isso, e somos muitos gratos pela sua paciência, por financiar o trabalho da minha irmã e ainda proteger as nossas terras da invasão inimiga por todos esses anos. Mas eu garanto que o seu pedido logo será aceito. A demora é justificada pois eu estou para viajar para as montanhas hoje, e só retornarei daqui seis meses. Como Hele vai se casar, esse foi o último verão que passamos juntos.

O rapaz era bem articulado e instruído para um garoto do campo, pensou o rei.

— Eu compreendo, meu jovem. Agradeço a sua explicação e fico feliz em saber que logo haverá casamento. Sabe, eu lutei por muitos anos nessa guerra na esperança de que ela logo terminasse e eu pudesse me casar e constituir família. Mas depois de quinze anos, não tenho mais expectativa de que ela acabe tão rápido assim. E por isso eu preciso me casar o mais rápido possível, para que meus filhos não lembrem de mim apenas como um velho — concluiu com uma sonora gargalhada, ao que o garoto tentou acompanhar.

— O senhor certamente não esperará muito mais. Eu lhe asseguro... Então, com sua licença, meu rei, permita-me retirar a minha humilde presença.

— Espere — o rei adquiriu um tom mais sério, surpreendendo Jasão. — Não se vá ainda. Embora seja verdade que eu só o chamei aqui para me informar sobre a minha futura noiva, notei algo muito curioso em você. Você me lembra alguém que eu conheci há muitos anos... Eu estive pensando sobre isso enquanto conversávamos. É alguém que eu não vejo desde antes da guerra começar.

— E quem seria? — o garoto pareceu mais interessado agora

— O meu irmão — Pélias deu um tempo para Jasão digerir a mensagem, analisando-lhe cada gesto facial.

— Isso é inesperado — respondeu, finalmente. — Quem diria que eu lembraria ao meu rei alguém que lhe foi tão próximo?

— A semelhança entre vocês é incrível. Existe alguma chance do meu futuro cunhado ser, na verdade, o meu sobrinho? — essa pergunta pareceu assustar o garoto. Pélias precisava cuidar mais do tom se quisesse arrancar algo do camponês.

— Quê? É impossível. Já conversamos sobre adoção uma vez lá em casa, e nossos pais garantiram que somos filhos deles — respondeu rindo. Ele estava mentindo, tinha certeza disso. Pélias era perito em ler micro expressões faciais.

— Entendo. Me perdoe por depositar essas expectativas em você. Realmente, seria coincidência demais eu reencontrar o meu sobrinho desaparecido após tantos anos, e tão longe de onde Esão morreu — notou como esse nome chamou a atenção de Jasão. — Você pode ir agora, meu rapaz. Sua companhia já me entreteve o bastante.

Jasão agradeceu mais uma vez a atenção do rei, e se retirou. Pélias ficou sozinho, submerso em seus pensamentos. Esão era o verdadeiro rei de Iolco, antes de morrer. Apesar de mais novo, ele era na verdade o seu meio-irmão. Por isso, a menor chance do verdadeiro herdeiro de Iolco estar vivo aborrecia Pélias. Mas ele não queria mandar matar o seu futuro cunhado sem ter certeza disso. Temia que a tristeza pela morte de Jasão abalasse a saúde e a beleza de sua futura esposa, a donzela mais bonita da região.

— O que você acha Orfeu?

Após algum tempo, um vulto se revelou, surgindo por detrás das cortinas.

— A quanto tempo você sabe que eu estou aqui? — perguntou o jovem de cabelos loiros e túnica de linho branca.

— Desde que você chegou. Eu posso não lutar a muito tempo, mas ainda sou o Cavaleiro de Bronze de Therion[2].

— E continua traiçoeiro como uma... — comentou com ironia.

— Você pode ser um Cavaleiro de Ouro, mas eu não o temo. Meça as suas palavras.

— Pois eu acho que você mais ladra do que morde. Sua armadura deveria ser a de Cão Menor — Orfeu deixou Pélias irado. Mas o cavaleiro de bronze tentou não demonstrar isso. Desde que Esão havia o superado e ingressado os treinamentos para se tornar um cavaleiro de patente maior que ele, Pélias tinha um complexo de inferioridade em relação aos cavaleiros de ouro.

— Responda o rei: o que você acha do garoto? Ele é filho de Esão? — questionou autoritário.

— Talvez seja. Não podemos concluir nada ainda... Eu posso investigar, é claro, mas isso não termina o meu trabalho aqui. Não se esqueça disso — advertiu.

— Certamente... Volte para espionar o meu sucesso militar após acabar com o garoto — retrucou com desgosto.

Orfeu também deixou o gabinete, pela sacada. Pélias detestava a sua presença. Não engoliu a desculpa dele ter sido enviado a Iolco para ajudar a repelir uma suposta investida massiva e iminente dos atlânticos, conforme um oráculo do Santuário teria alertado. Os atlânticos não trairiam o acordo com ele. O Cavaleiro de Therion acreditava que se o Santuário enviou Orfeu era porque já suspeitavam de seus negócios com o inimigo.

 

 


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Notas finais do capítulo

[1] Mais conhecida como a deusa da guerra, da sabedoria, da estratégia e da diplomacia, Atena detém também muitos outros atributos, entre eles o de instrutora na arte da tecelagem.

[2] Therion é o nome pelo qual os antigos gregos chamavam a constelação de Lupus (Lobo). Essa constelação representava um animal selvagem e indomável, sendo usualmente designado como a besta ou a fera. A associação com o lobo surgiu apenas na Idade Média.



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