Liawë escrita por Vaalas


Capítulo 3
Capítulo III ― Freya


Notas iniciais do capítulo

E o pov mais uma vez volta para Freya, nascida do gelo.
Boa leitura!



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“Um elfo” disse Foyer naquela manhã “Veio cheirando à verão e à bronze, cruzando os limites das Terras Frias há oito dias. Matou três dos nossos e continua avançando, cada vez mais ao norte. Deve chegar aos Dedos em quatro ou cinco luas.”

O grande lobo encarou-me do outro lado do salão, os olhos amarelos tentando ler meus próximos passos antes de eu sequer fazê-los. Me esforcei para deixá-los ocultos.

― Ele vem só ou traz consigo companhia?

“Vem sozinho, irmã, mas carrega uma espada feita de aço de Vanra e um arco de freixo comprido, cheio de flechas de prata no alforje” Foyer balançou a cabeça “Sabemos bem o que ele veio buscar, Freya, e deveríamos destruí-lo antes que ele chegue tão perto daqui.”

― Sinto por suas perdas, irmão, mas terei que lidar com isso sozinha. Sei bem o que ele quer, o mesmo que outros antes dele quiseram. Deixe que esse elfo venha até mim, porque um ser do verão jamais entenderá as leis destas terras sem que sinta-a na pele. ― Encarei meus dedos, as unhas compridas demais, e senti que minha voz ecoava pelo salão ― Volte para casa, Foyer, e leve sua matilha junto. Tenho certeza que eles sentem falta de suas crias tanto quanto de suas fêmeas, e já passaram muito tempo longe.

“E deixá-la sozinha aqui, com um guerreiro de sol se aproximando para matá-la?” olhou em volta do salão e viu seus irmãos, sua matilha, assentirem em sua direção. “Chael sequer retornou da viagem ao Punho, irmã; você ficará sozinha aqui.”

 Sorri, balançando a cabeça, e senti uma pequena camada de gelo se formando em minha palma.

― Eu nunca estarei sozinha aqui, Foyer, pelo menos não enquanto o inverno durar.

x

As lamparinas queimavam nos seus suportes enquanto eu andava, mas o corredor ainda conseguia se manter imerso em escuridão, como se cada sombra possuísse um segredo a esconder nos cantos. Deixei que as tivesse. Dobrei duas esquinas e segui ao longo de três corredores inteiros, antes de chegar aos meus aposentos.

Meu reflexo me encarou nas paredes de gelo do quarto e precisei conter o impulso de desviar o olhar. Minha pele estava ainda mais pálida e branca que nunca, quase doente ― e embora eu pudesse sangrar, tinha a sensação de haver neve correndo em minhas veias no lugar de sangue.

― Um elfo ― murmurei para mim mesma, entrando no cômodo e sentando em frente à penteadeira. ― Um elfo querendo o coração da Bruxa.

Muitos homens já desejaram o mesmo ao longo desse meio século. E mesmo que ninguém saiba de fato de onde eu surgi, muitas histórias já foram criadas a meu respeito. Dizem que eu havia perdido meu coração para um mago, ou bebido do sangue de uma estrela. Havia matado um druida das Terras Sombrias e tomado seus conhecimentos para mim, sacrificado sereias da costa leste para roubar suas escamas, ou até mesmo matado um dragão e bebido de suas lágrimas. Há quem diz até que a Bruxa de Gelo matou o próprio Senhor do Inverno, Arwan, e aprisionou todos os ventos e brisas em uma garrafa enfeitiçada, para contê-los.

Apenas Chael talvez saiba de onde vim ― e Chael havia descido até Froster há um mês, para doar um pouco do nosso poder para nossos irmãos lunares, que ainda partilham do sangue do inverno, por mais que sejam mestiços do verão ―, o que eu era havia meio século: apenas uma criança do inverno, com gelo no sangue, abençoada com um sopro de Arwan. Havia morrido como uma humana e renascido como aquilo, algum meio-termo entre ambos.

Encarei meu reflexo no espelho da penteadeira e escovei meus cabelos pelo que deveriam ser horas. Estavam tão grandes àquele ponto, escorrendo negros na altura dos joelhos, que precisava jogá-los sobre a coxa para escová-los até o fim. Não havia rubor algum nas minhas bochechas, cor alguma nos meus lábios. Sequer lembrava de como era ter algum bronze na pele e vermelho no rosto.

 Quando acabei, pousei as mãos sobre o colo e olhei dentro dos meus próprios olhos. Havia muito tempo que parecia olhar para uma estranha.

― É apenas um elfo. Posso lidar com um elfo.

Cristais de gelo se formaram na ponta dos meus dedos.

x

Em algum momento na semana seguinte, estava sentada à mesa de jantar comendo amoras frescas com pão preto e queijo, quando um vento frio entrou na sala sob sua forma de espectro. Era leve, translúcido e flutuava acima do chão sem ressoar passos. Os olhos eram azuis, no entanto, claros como o céu. Avançou em minha direção com pressa.

“Ele chegou” me alertou, parando ao meu lado. Doei-lhe um pouco de gelo, para prolongar seu tempo naquela forma. “Acaba de parar em meio às árvores no outro lado da campina”

Pousei o pedaço de pão que segurava sobre o prato. Havia alguns olhos me observando em silêncio na sala: pequenos espíritos de lagos há muito congelados, brisas, sombras de terras distantes, fadas enfraquecidas e pequenos seres mágicos que buscaram abrigo junto à mim. Eram todos irmãos, todos filhos e crianças de gelo, tais como eu.

― Deixe que ele venha, estarei esperando ― disse, levantando-me ― Não há nada a temer.

Não tinha certeza se havia convencido alguém, uma vez que os olhos me seguiram até mesmo pelos corredores, enquanto me afastava da sala de jantar e seguia para o Grande Salão, construído pelos próprios elfos milhares de anos antes, numa época em que viver nas Terras Frias ainda era lucro para aqueles seres com tanta luz e fogo correndo nas veias, numa época em que a magia não havia enfraquecido ao ponto de ser apenas uma faísca perto de se apagar.

Segui sob o alto arco de gelo, erguido por pilastras que eu mesma fortaleci quando me mudei para lá ― quando não era mais do que uma criança, ou pelo menos quando ainda me parecia com uma ―, o teto alto abobado, erguido metros e metros acima com pequenos cristais de enfeite sobre o que antes eram vitrais coloridos contando a história daquele povo.

Tudo ali era bem colorido antes que eu chegasse, muito verde, amarelo e vermelho, mas abandonado, com as tapeçarias cheias de poeira e se quebrando ao toque dos dedos. Arranquei todas, uma por uma, e deixei que a luz escassa do sol preenchesse o salão e brilhasse através dos cristais de gelo e da neve.  Tudo ali era pálido agora, condizente com o lugar e com quem o habitava. Os Dedos eram a casa de qualquer criança do inverno que buscasse abrigo, era meu lar, dado a mim por Arwan, e eu o defenderia e protegeria os meus semelhantes.

Subi degrau por degrau com cuidado e então sentei-me no que antes fora um trono de galhos ressecados ― hoje também era feito de gelo, pois eu já havia sentado ali antes e meus dedos já haviam tocado aqueles galhos selvagens, endurecendo-os até não passarem de sombras escuras sob uma grossa camada de gelo.

Então esperei. Olhei para frente, para a entrada aberta, e esperei por ele.


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Notas finais do capítulo

oi



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