Registro Panorâmico escrita por Titi


Capítulo 28
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Notas iniciais do capítulo

Desculpa ter ficado esse tempo sem postar, eu acabei não me ligando. Vou postar um pouco mais hoje. Espero que gostem.



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Em casa, o meu irmão estava na cozinha.

          –E aí, Quésia, como foi a escola? –ele disse com a boca cheia de porcarias oriundas de fast food.

         –Foi aceitável... Que lixo todo é esse de novo?

         –Meu almoço.

         –Almoço? Como você pode chamar isso de almoço? Essa meleca não tem valor nutritivo... Isso é milk shake de chocolate?

         –É sim, e se você parar de querer bancar a saudável, eu deixo você ficar com ele.

         Olhei pra Edgar com certo descaso, peguei o copo e fui pro meu quarto. Me julgue se quiser, não vai mudar o sabor do milk shake. Antes de tomar eu tomei um banho e troquei de roupa. Estava um pouco calor.

         Peguei meu celular e vi que já tinha mensagem de um certo branquelo de olhos claros. Ele disse que queria falar comigo pelo computador. Acho que o notebook já serve. Quando eu entrei, ele me perguntou se podia me chamar por vídeo. Eu disse que sim... Não sei o que deu na minha cabeça. Fui correndo tentar me arrumar e tipo... Deu certo não. Ele estranhou a minha demora e disse que ia fazer a chamada. Tocou, tocou, tocou e eu não atendi até que ficasse bonita... Pois é, ia demorar bastante.

         Hebrom me chamou no bate-papo de novo e perguntou a razão de eu estar demorando tanto. Eu disse que não era nada e ele me pediu que eu dissesse a verdade... Então eu disse. Aí ele começou a me bajular, dizendo que eu era linda e não precisava disso tudo. A ladainha até que foi bem convincente. Resolvi atender logo.

         –Oi... –ele acenou pra mim pela webcam. –Eu não sei mexer nisso daqui direito... Sorte que o Wendy tá aqui pra me explicar.

         –O Wendel mora com você? Já o vi por aí antes...

         –Não, não, ele é meu vizinho! Mas às vezes ele vem aqui pra jogar. Dá um “Oi” pra Quésia, Wendy! –ele virou a câmera na direção do geek, que estava de costas usando o vídeo game.

         –Não. –o asiático respondeu.

         –Vai, por favor! –Salamander insistiu.

         –Oi, Quésia. Pronto, chega.

         –Ah, pera aí, cara! Diz que ela não é linda!

         –Ela não é linda. –Yamada sequer virou pra me olhar.

         –Não vale! Você nem a viu!

         –Eu só fiz o que você pediu pra eu fazer! –o japa deu um berro e o Hebrom corou.

         –Deixa pra lá, ele tá estressado porque não consegue passar da fase dois... –Hebrom sussurrou pra mim.

         –Fase três! Não consigo passar da fase três! Não tente diminuir o meu potencial! –ele corrigiu.

         –Tanto faz, Wendy, isso é só um jogo. Às vezes dá vontade de tacar ele longe só pra ver se você me dá mais atenção. Amigo, amigo, to vendo o amigo...

         –Foi mal... –Wendel pausou e deu um longo suspiro.

         –Tudo bem...

         –Oi de novo, Quésia. –o asiático não parecia nem um pouco entusiasmado.

         –Oi... Se você tá mesmo ocupado, Yamada, não precisa ficar aqui pra falar com a gente... Não é, Hebrom?

         –É... Eu não quero te obrigar a fazer uma coisa que não quer.

         –Vocês são dois lindos! Quando eu passar dessa fase, falo com vocês. –ele virou e voltou a jogar.

         –Ele acabou de dizer que a gente só vai voltar a se falar quando você tiver a idade de Matusalém... –Salamander enfiou a cara num dos travesseiro do sofá. Não entendi a piada... –Falando em idade... Qual é a tua?

         Achei que você soubesse... Já sabia meu nome antes de eu me apresentar.

—Catorze.

—Quatorze?! Meio nova... –o rosto dele ficou vermelho. –Não vamos poder casar ainda...

—Haha! Só que eu já vou fazer quinze... E sobre essa coisa de casar... Sorte minha.

—Eu sou tão horrível assim?

—Não é bem esse o ponto... E a gente já falou disso. Mas e você? Quantos anos tem?

—Dezesseis.

—Só?! Não sei o motivo do drama que você fez. Eu já estava me preparando pra te mandar de volta pra um museu. É meio baixo pra sua idade, não? –o fiz rir.

—Pois é... E você é meio precoce... Mas eu alto o suficiente pra você! Ahm... Espera... Acabei de perceber uma coisa... “Vocês são dois lindos”! Eh! Viu só? Ele também te acha linda.

         –Eu tenho minhas teorias bem elaboradas e penso que ele disse isso naquela hora por interesse, Brom.

         –NÃO ACREDITO! QUE FOFA! Ela me chamou pelo apelido! –ele começou a sorrir de um jeito bem bobo. Tive a leve impressão de que estava sendo zoada.

         –Não sabia que você gostava tanto de ser chamado assim.

         –Pra mim não tem diferença, na verdade. Mas vindo de você foi uma gracinha!

         –Cof! Cof! Gay! Cof! –Wendel fingiu tossir.

         –Então... Como é que tá o trabalho de Artes?

         –Ainda nem comecei a pintar... E também, nem sei de onde tirar tinta.

         –Ah, eu perguntei pra professora se a pintura com tinta era obrigatória. Ela disse que pode ser qualquer coisa, desde que o desenho fique colorido.

         –Hm...

         –Quésia, eu posso ver como está o teu?

         –Claro que pode. –tirei aquele rolo de dentro da minha mochila e abri, tentando fazer com que o Salamander enxergasse.

         Era ele de terno e chapéu coco na calçada, com as mãos nos bolsos. Eu pintaria tudo de preto e só deixaria cor nos olhos dele.

         –Tá MUITO realista! Uau! Não sabia que você desenhava tanto!

         –Agradeço... E você? Vai desenhar o que?

         –Uma vez eu vi um quadro da rainha Ester... Vou tentar copiar, só que com alguns ajustes.

         –Rainha Ester?

         Não, não sou ciumenta a ponto de ter raiva de um quadro... Bem... Talvez um pouco.

         –É de uma história... Eu vou tentar resumir: Ester vivia com seu tio porque era órfã. Um dia, o rei Assuero mandou matar sua esposa, Vasti, por ter se recusado a assistir um dos banquetes do rei... Aí ele resolveu fazer um concurso para encontrar uma rainha mais bonita do que a antiga. O tio de Ester, Mardoqueu, disse pra ela participar do concurso. De certo ela venceu, porque era muito bonita. Mas tinha um problema, ela era judia e... Então... O que é isso que você tá tomando?

         –Ah... Milk shake de chocolate.

         –Sabia que esse tipo de coisa que você gosta vicia?

         –Eu não sou viciada em cafeína!

         –Então para de tomar essa coisa, chocólatra.

         –Não sou chocólatra.

         –Então para!

         –Não to a fim...

         –Sei... A verdade é que você não consegue.

         –Eu não vou cair no seu joguinho, Salamander.

         –Não é joguinho, é só a verdade... Quesinha, você dorme direito?

         –Geralmente não... Por quê?

         –Só pra saber... –ele deu uma olhada sarcástica em mim. Se preocupa mais com minha saúde do que eu... Nunca vi coisa tão bizarra. –Enfim, voltemos.

         –O que tem a ver o fato dela ser judia?

         –É que na história, há um homem que é próximo do rei e procura tomar o reino.

         –O que tem a ver?

         –Esse homem odeia o tio de Ester por ele não se prostrar perante ele.

         –O que tem a ver?

         –Ele quer matar todos os judeus...

         –O que tem a... Eita... E depois?!

         –E depois eu não vou contar o final.

         –Por que não?! Tá, eu paro de tomar o milk shake, mas conta!

         –Não é isso! Eu quero que você descubra sozinha!

         –Tá e onde é que eu vou achar a versão verdadeira dessa história?

         –Você gosta de ler?

         –Lógico!

         –Então eu compro uma Bíblia pra você.

         Bíblia? Essa história é da Bíblia? Argh... Depois de um tempo eu fiquei com remorso de ficar com um pé atrás por ele ter dito “Bíblia”. Nem conheço e já estou dizendo que não é boa... Deve ser por causa da primeira impressão que eu tive de Deus. Se eu não gostei de Deus, acho que também não gostaria da chamada “Palavra de Deus”... Mas aquele livrinho que o Salamander me deu até que era estimulante... Só lendo pra descobrir se gosto e concordo com Bíblia ou não, mesmo.

         –Comprar?

         –Isso. Vai ser seu presente de aniversário.

         –Meu aniversário ainda tá bem longe, pra ser sincera.

         –Então... Vai ser o presente de aniversário do ano passado!

         –Tá certo. A tua mãe está aí?

         –Infelizmente não... Ela saiu e acho que não volta tão cedo.

         –Aqui tá muito tédio... Me mostra sua casa.

         –Nope!  Eu quero que você venha aqui um dia desses e conheça ela todinha por si mesma.

         –Sei... Um dia desses seria mais ou menos quando?

         –Ah... Não sei... Mas só vai dar pra ser depois do Carnaval.

         –Falando em Carnaval... O que você vai fazer nele?

         –Acampar!

         –Eu sempre quis acampar...

         –Ah, ótimo! É só pedir a autorização do seu irmão!

         Até parece que ele vai deixar, né?

         –Melhor deixar pra uma próxima então...

         –Pelo menos tenta, Qué. Vai que Deus amolece o coração dele?

         –Há... Duvido muito.

         Meu comentário parecia ter deixado o Salamander um pouco desconfortável. Resolvi terminar a chamada antes que eu dissesse alguma coisa pior.

         –Eu... já vou. –falei.

         –Ah, já?! Tá muito cedo, Qué...

         –Tenho que terminar o trabalho.

         –Certo... Boa tarde! Fica com Deus. –ele deu um beijo estalado na webcam. Esse garoto é meio maluco... Mas maluco de um modo bom. Pelo menos é o que eu considero... agora.

         Fiquei pensando... Eu não quero me converter só pra agradar o Hebrom... E tampouco só pra ser uma pessoa boa. Você não precisa de religião pra ser uma boa pessoa, mas às vezes ela é um incentivo. Não sei como eu passei tanto tempo sem acreditar em nada... Vai ver era porque eu estava demasiadamente ocupada com o caos que era minha vida no orfanato. Eu nunca fui de parar pra pensar nas coisas, como faço agora... Espero que isso seja uma evolução.

         Desci as escadas e vi que o Cortês assistia o noticiário. Fui tentar assistir também. Só dava desastre, desastre, desastre e mais desastre... Quando tinha uma notícia de que alguém fez alguma coisa boa, era como se a pessoa fosse um alienígena. Fazer o bem virou uma coisa peculiar, rara... E todo mundo acha isso normal. O que tem de errado com eles? A única certeza que me deu, é que eu não quero fazer parte desse tal “todo mundo”. Eu não quero fazer a diferença, eu não quero que as pessoas recordem de mim por eu ter pensado em coisas revolucionárias... Se eu conseguir socorrer alguém já está bom. A Marisa vivia me dizendo que quem salva uma vida, salva o mundo. E o mundo em que vivemos tá clamando desesperadamente por salvação... Isso é inegável.

         –Só passa coisa ruim nessa TV... Não sei o motivo de você continuar assistindo.

         –É a realidade, oras. –respondeu.

         –Não gosto da realidade.

         –Certo, mas vai ter que aceitá-la... Ou talvez crie um mundo imaginário, como a maioria das pessoas faz. Imagine que existe vida após a morte... Tem tanta gente acreditando nisso. Vivendo como se fosse eterno... Mas, particularmente, eu só não te digo pra viver como se fosse o último dia da tua vida porque eu sei que você ia sair fazendo um monte de cagada.

         –Hm... Entendi... Edgar...

         –Diz aí, nanica.

         –Você acredita em Deus?

         –Acredito sim... Por quê?

         –Ah, sei lá... Achei que a resposta fosse não.

         –O que? Só porque eu não sou um anjinho de pessoa? Eu me esforço, sabia? Mas eu não me digo cristão... Sei que eu to muito longe de ser isso. Mas, sei lá, né?... Além disso, eu não conheço todas as religiões completamente. Não sei se alguma delas presta ou se tem alguma em que eu me encaixo... –quando ele disse isso, eu o fitei. – Ah, tá, já sei. Você vai falar “Se você pensa assim, por que detesta tanto a religião do meu namoradinho?”.

         –Eu não ia dizer isso... Mas até que é uma boa sugestão.

         –Quer saber? A religião do Hebrom fala sobre uma coisa que Deus dá, e eu gosto muito. Se chama “livre arbítrio”, que é a liberdade de escolha... E eu escolhi ficar bem longe dos membros daquela igreja.

         –Não sei se rio ou se choro depois de ouvir isso.

         –A minha pessoa não tá tentando te influenciar em nada, ok? Você pode até fazer parte de uma sociedade secreta... Desde que você tenha uma boa índole, eu vou me orgulhar de te chamar de irmã...

         –Verdade?

         –Não. Mas foi bonito o que eu disse, não foi?

         –Você é um mané.

         –Um mané que você vai ter que aturar até virar maior de idade, bonequinha. Que fique claro que debaixo do meu teto não é permitido crente bitolado. –Cortês deu uma piscadela e fez aquele gesto com as mãos como se elas fossem armas.

         Da hora essa coisa de ter um pensamento super lindo e não colocar ele em prática... Me lembra do que o Hebrom disse... E também lembra daqueles discursos de Miss Universo pedindo a paz mundial. Fui pro meu quarto e olhei pra cima, através da janela:

         –Escuta, eu não sou nem doida de Te ameaçar... Mas eu só queria dizer que espero que Você tenha uma boa compensação pros humanos decentes que estão sofrendo aqui. Pelo que eu li sobre Você, Deus, é onipresente e tudo mais. Eu sei que você tá ouvindo! Se é que Você é real, né... Mas enfim, dá pra perceber que eu estou tentando acreditar na Tua existência... To até aqui, aparentemente falando com uma nuvem... Parecendo uma maluca... Ai, eu acho que isso não é pra mim...

Enfim, aposto que se eu pedir um sinal Você vai me deixar no vácuo, porque eu não faço o que Você quer. Ou talvez não... Ah, dane-se isso, vou pedir do mesmo jeito! Se Você for bom do jeito que dizem, por favor... Ahm... Não me deixa morrer sem saber que Você é real... Como eu já disse, se Você for mesmo, é claro... Porque não tem cabimento pedir alguma coisa pra alguém que não existe e... Aff! Você entendeu. Acho melhor eu parar com isso. –fechei a janela.

         Agora eu não sei o que fazer pra descobrir se ele me atendeu... Bem que podia aparecer escrita no céu “Mensagem visualizada.” pra facilitar a minha vida... Por que tudo tem que ser tão complicado? Ainda mais esse assunto que eu só descobri agora. Eu fiquei alternando em fazer coisas que todo mundo faz naquele dia... Até lavei a louça. Tentei me manter ocupada com seja lá o que for... Eu não queria mais pensar nesse assunto por hoje.

         No fim do dia, Salamander me mandou uma mensagem dizendo que queria falar comigo outra vez. Disse que podia ser agora mesmo, porque na hora, eu não estava ocupada. Contudo, ele respondeu uma coisa que me fez engolir a seco... “Precisa ser pessoalmente.”


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Notas finais do capítulo

Isso não parece um bom sinal...



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