Maldição Soverosa escrita por P B Souza


Capítulo 3
Malditos Malefícios da Maldição.


Notas iniciais do capítulo

Faz 3 meses?
Faz!
Mas voltei!!!
Queria falar pra vocês que essa fic me deu um trabalho enorme de background, por isso a demora! ~estava lendo alguns livros sobre a cultura indígena e suas histórias e costumes~
E além disso, agora tem ENEM pra me ferrar também, não é mesmo?
xD
Bem, mesmo assim tirei um tempinho para vir aqui falar com vocês sobre um assunto muito sério: Quando você tá amaldiçoado é bom tomar cuidado!
O capítulo ficou grandinho, mas fiz com muito amor!!! O próximo não será tão grande, juro! Já está escrito alias ~o próximo e alguns mais pra frente~
Então é isso. Boa leitura, e nos vemos nas notas.... A, claro. Não poderia esquecer de citar. A imagem no meio do capítulo.. ignorem minha caligrafia pouco caprichada e qualquer errinho na planta! E o risco no meio é separando 1 andar do 2 andar. Só isso :)
Boa leitura!



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Não à toa que considerada

Maldita é a cobra

Que outra criatura

Envenena até quem ama?

 

Kaio acordou no dia seguinte ainda se sentindo afetado pelo… ele sequer sabia como chamar aquilo. Maldição… que termo ridículo. Estava obstinado a esquecer tudo e voltar a viver sua vida da forma de sempre.

Havia completado 18 anos da pior maneira possível e provavelmente nunca se esqueceria da data e dos acontecimentos, mas podia criar novas memórias!

Seu aniversário, 30 de setembro, havia caído em uma sexta-feira. Kaio inconvenientemente passou o feriado em um hospital sendo lavado por tubos de dentro para fora, picado por agulhas colhendo sangue, e outras coisas que ele sequer conhecia o nome. O médico, Dr. Euclides, cuidava de sua família desde sua avó (ambos são amigos e Euclides e Teodora se conheceram por intermédio do avô, já falecido, de Kaio).

Ele, porém, sempre achou que a avó e o Dr. Euclides nutrissem mais que amizade um pelo outro, mas nunca ousou proferir tais pensamentos em som audível, já que sua família tinha certa honra para manter agora que estavam se estabelecendo de novo na cidade como uma “família nobre”.

A família Soverosa havia surgido por volta de 1400 em Portugal, mas ganhou notoriedade por volta de 1520 quando, com planos astutos, chamaram a atenção de navegadores e começaram a erguer fortuna com as navegações. Mas só em 1600 que ganharam real destaque nas altas-rodas, sendo esta a data normalmente usada para marcar o início oficial da família Soverosa, já que só nessa época a família ganhou títulos e terras, honrarias que vieram do próprio rei.

Kaio não sabia bem a história da própria família, mas alguma desgraça (que agora ele creditava à maldição) causou a ruína e a quase extinção dos Soverosa e apenas sua vó havia conseguido reerguer o império, e isto a duras penas. O trabalho em si ainda estava em andamento, tendo em vista que os Ambrósio eram bem mais influentes que os Soverosa, e o que antes era uma influência a nível nacional, em todo o Império, hoje em dia era a picuinha para quem mandava na pequena cidade.

Teodora era, de longe, uma inspiração para Kaio. Mesmo sendo julgada louca por alguns membros da família e de outras famílias também. Kaio sempre viu, na avó, uma mulher imponente, talvez até demais. Sabia que ela havia reerguido o império, e tentava imaginar como aquilo teria desgastado sua pobre avó. O passado simplório, o casamento, ser internada considerada louca, perder o primeiro esposo, casar de novo, engravidar, batalhas judiciais para reaver terrenos, sobrenomes, heranças, tudo aquilo e pôr fim a maldição como cereja do bolo de desgraças.

Ele nunca acreditou que a avó estivesse louca, mas se fosse verdade, se Teodora realmente fosse louca, Kaio não podia esperar menos. Qualquer um com metade das responsabilidades que ela teve enlouqueceria na metade do mesmo tempo!

*****

Se levantou da cama, ainda bem cedo, e esticou os ossos ouvindo a coluna estralando e o joelho também.

A casa ainda dormia. O relógio do celular marcava 6:22 AM.

— Que saco. — Reclamou sozinho indo para o banheiro.

A casa dos Soverosa era enorme, metade estava fechada e em péssimas condições, a outra metade (aonde moravam) era velha com fantasia de casa nova.

Seu banheiro mesmo tinha recebido muito recentemente piso de verdade, pois antes era de madeira, e a madeira estava bem podre porque era piso de madeira há mais de cem anos. As paredes, agora azulejadas, antes tinham manchas de mofo aqui e ali. O gesso do teto também havia sido trocado, e as janelas concertadas…

A verdade é que tudo isso não tinha porque ser feito antes, pois Teodora não morava ali, nunca marou, apenas era dona de tudo aquilo e antes de Teodora a casa estava abandonada pois os bisavôs de Kaio sequer sabiam serem donos de tudo aquilo.

A casa de sua avó não ficava longe, mas era uma casa bem mais simples, uma casa comum. Havia sido nessa casa que sua mãe havia crescido após Teodora voltar dos Estados Unidos para reconquistar o que era seu por direito. Nessa época, Bethânia já era uma criança, e após Teodora reconquistar os documentos da propriedade Soverosa, a própria nunca quis morar lá.

Deixou para que, após Bethânia se casar nos Estados Unidos em um casamento quase tão armado quanto havia sido o de sua avó, sua mãe retornasse e esta, apenas então, assumisse o casarão.

Kaio sabia que seu pai amava sua mãe, mas toda vez que olhava para Christopher via interesse na mesma proporção que via amor. Ele é um homem de negócios de uma família emergente, o importante é que ama ela, e a nós. Era uma verdade simples de aceitar. Teodora havia programado tudo com aquela viagem, anos atrás quando Kaio sequer existia. Os Soverosa precisavam de um segundo sobrenome forte para poderem se apoiar enquanto voltavam a se erguer, ainda mais após o testamento do avô de Kaio não deixar nada para Teodora. Bethânia tinha um único dever, conseguir esse sobrenome. E este era Viwtman.

Quando voltaram ao Brasil (Kaio já com seis anos), Christopher aconselhou que ocupassem a Propriedade de uma vez por todas. Os Soverosa eram uma família muito poderosa para deixarem tudo desmoronar enquanto ocupavam uma cobertura no centro da cidade.

Christopher podia até mesmo ser um Viwtman, mas ajudou os Soverosa sem pensar duas vezes, afinal, agora eles eram uma família, e o próprio homem sabia que o sobrenome de sua esposa, no Brasil, pesava muito mais que o próprio.

Kaio ainda se lembrava dos primeiros três anos na casa; tudo gemia, armários desmontavam quando usados, janelas abriam sozinhas durante as noites, ratos corriam por todos os cantos, mas lentamente tudo se ajeitou ao som de marteladas e serras por todos os lados.

Hoje, anos depois de voltarem a ocupar o casarão da família, Kaio ainda via sinais de abandono, bem mais discretos e por vezes despercebidos pelas visitas, mas caso prestasse atenção podia-se ver cada um deles. E cada um conta uma história.

No velho banheiro fantasiado de novo, escovou os dentes e lavou o rosto ouvindo a água descer pela tubulação na parede, mais um detalhe da idade da casa, as paredes pareciam já estarem ocas, prestes a cair se alguém as socasse com força o bastante.

Resolveu que não tomaria banho, estava muito frio para isso e além do que, temia ficar cego de novo, mas evitou pensar nisso como se assim, evitando o pensamento, fosse evitar o inevitável.

De volta ao quarto pegou suas roupas e se vestiu. Calça jeans, a camiseta branca do internato aonde praticamente todo menino e menina rica estudavam, a camisa xadrez por cima. No criado-mudo do lado esquerdo da cama pegou seus colares, escolheu um com uma lua crescente e uma estrela presa por uma fina corrente de ponta a ponta na lua. Era uma lua islâmica, mas Kaio usava por achar bonito e não pela religião em si.

Terminou de calçar os tênis e deixou o quarto saindo no Hall dos quartos privados. A casa possuía sete quartos, originalmente nove, mas um deles foi transformado em estufa pela última geração Soverosa ali, e o outro em um escritório adicional quando Christopher notou que não existia sala privada adjacente à sala de reuniões.

Dos sete, quatro ficavam isolados na Ala Leste do primeiro andar com uma escada própria ao térreo, esses quartos eram o seu, de sua mãe e pai, o de Laila e um de visitas. Os outros quartos ficavam na Ala Oeste junto da estufa, hall de visitas e jardim de cima tal como a entrada para o sótão, mas está Ala era fechada.

Desceu pela escada pisando nos degraus acarpetados, o que engolia o som. Saiu no corredor leste das janelas, o mesmo por onde havia, dias atrás, saído correndo para vomitar nos fundos.

Entrou na cozinha e batendo a mão no interruptor acendeu todo o conjunto de luzes.

Kaio sempre foi preguiçoso por natureza, por isso preferiu pegar só um saco de biscoito e ir embora ver TV.

Não tinha como ir ao internato por conta própria, teria em breve, quando tirasse sua carta e então pudesse tomar o carro que quisesse da garagem, mas no momento tinha que esperar dar o horário de seu pai sair, então pegar carona… ou então chamar o motorista, mas não gostava do sujeito, então preferia esperar pelo pai mesmo (jamais considerou usar o transporte público).

*****

Christopher Viwtman era um homem de negócios com empresas, fábricas e fazendas para gerir, mas felizmente fazia tudo isso de casa, o que lhe dava a vantagem de poder dormir até mais tarde (o que nunca passava das 9 horas da manhã), no entanto seu relógio sempre despertava às 7:00 AM em ponto.

Kaio conhecia bem a rotina do pai, então esperava. 7:10 Christopher descia as escadas com o tablet na mão, abrindo o noticiário da manhã colocava o café para fazer enquanto o pão ia na torradeira com margarina sem sal e uma pitada de orégano.

Ouvindo o barulho, Kaio se levantou deixando a TV ligada na sala e foi até a sala de jantar. A luz do sol já entrava pelas cortinas. O relógio decorativo de parede perto da porta da sala de jogos apontava 7:18.

— Bom dia, pai. — Kaio disse com a voz acima da do noticiário do tablet enquanto Christopher descascava uma maça.

— Bom dia. — Ele respondeu seu filho enquanto não tirava os olhos do noticiário e da maça, então deixou a maçã de lado, os dedos deslizando pela área multitarefas já verificavam os valores da bolsa para prever aonde investir e aonde não investir, se sua empresa lucraria ou não.

— Pode me levar até o Edoniquim? — Perguntou, parando do outro lado da mesa.

Christopher levantou os olhos verdes para Kaio em um segundo e voltou a olhar o tablet, a mão apalpando o ar até encontrar a maça.

Kaio assistiu enquanto o pai levava lentamente a maça até a boca aberta, abismado olhando o tablet. Mordeu. Crack. A maça estralou, suculenta.

— Pai?

— Claro… quando? — Respondeu, então furiosamente fechou o noticiário e começou a digitar um e-mail. — Malditos chineses. — Esbravejou.

— Em uns dez minutos?

Kaio foi à cozinha deixando o pai com seu e-mail. As torradas ficaram prontas com um sininho característico da máquina. Eram quatro. Kaio olhou para a porta do corredor, normalmente Amanda e Jussara entravam por ali antes das 8:00 AM para começarem mais um dia de trabalho.

— Dez minutos? — Christopher respondeu, se levantando e indo à cozinha também, tablet sempre na mão. — Quer ir agora?

— Aconteceu alguma coisa na View Tech? — Kaio perguntou pegando uma das torradas do pai e mordendo-a, ouviu o estralo enquanto fumaça subia na frente do seu rosto, o cheiro de orégano era delicioso, sua barriga roncava de fome.

— Não, mas vai acontecer. A Techbot acabou de comprar nossa patente. — Christopher disse mordendo a torrada com fervor. — Cinco minutos, no carro!

— Na garagem?

— Eu passo na porta! — Foi a resposta, a voz em animação e saiu com duas torradas na mão e o tablet na outra.

Kaio conhecia pouco sobre a empresa do pai, a View Tech, sabia que eles mexiam com formas inovadoras para plantio… isso era tudo que sabia. Já a Techbot… uma gigante americana do ramo há anos (de onde Christopher foi demitido por focar sua equipe em pesquisas de plantio, e daí a ideia de criar a View Tech). A Techbot tinha mais interesse no meio bélico e móvel como computadores e celulares inteligentes, já a View Tech tinha outras prioridades, como assegurar melhores semeaduras, diminuição de consumo de recursos brutos e controle de emissão de resíduos de forma sustentável.

Para Christopher a Techbot era uma empresa focada no hoje enquanto a View Tech olhava para o amanhã!

*****

Kaio então desligou as luzes da cozinha e passou para a sala de jantar e para a sala de TV aonde desligou a televisão também, em uma rápida carreira saiu no Hall de entrada sentindo o cheiro de madeira tratada. A casa já iluminada pelo sol ficava com aquele tom avermelhado forte no hall, resultado do pau-brasil usado em sua construção original que, por uma pequena fortuna, foi restaurado.

As vantagens de se ter um pai dono de empresa de tecnologia incluíam certas tecnologias. Na porta de entrada Kaio agarrou a maçaneta de bronze polido e colocou o dedão no meio, aonde haveria o encaixe para chave. O leitor de digitais destrancou a fechadura no mesmo instante. Abriu e saiu.

Às vezes ele achava tudo muito exagerado ali, quando cruzava a porta principal do casarão, era o momento mais opulento de seu dia. A entrada da casa era composta por jardins na esquerda e direita, uma fonte enorme no centro com uma estrada de paralelepípedos alinhados circundando não só a fonte como a própria casa, e esta era construída com dois braços partindo do núcleo, inspirada no château de Versailles, o objetivo era claro: intimidar o visitante passando a impressão de superioridade dos anfitriões.

Pela estrada vinha a Mitsubishi Outlander 2016 de seu pai, silenciosa e rápida. Kaio olhou para a casa rapidamente, as paredes beges, as dezenas de janelas com arabescos feitos em gesso pintado ao redor, as trepadeiras ao redor da escada de acesso… achava tudo opulento, exagerado, desnecessário… na casa de Teodora tudo era bem menor e bem mais aconchegante.

 

Partiram então.

O interior do carro era tão luxuoso quanto o interior da casa deles. Kaio via tantos botões no painel que sequer sabia a função de metade deles, mas eu pai vivia apertando um ou outro aqui e ali. A verdade é que o carro podia quase que se dirigir sozinho.

Deixaram a residência Soverosa ainda adormecida. O terreno enorme ficava para trás lentamente dando espaço para outras casas no horizonte. A avenida principal que levava à casa de Kaio se ramificava em outras avenidas no Bairro do Iambuci, aonde morava.

E então o bairro surgia em sua totalidade, padarias, mercados, lojas, casas, carros, pessoas…

A cidade inteira já havia acordado quando terminaram de atravessar o bairro e saíram em Maringá, bairro vizinho. Ainda precisavam atravessar esse todo até chegarem em Concordes aonde fica o internato Edoniquim aonde Kaio estudava.

São Olavo e Conceição é uma cidade razoavelmente grande com uma população razoavelmente pequena, o que facilita o trabalho do estado em administrar seu povo, garantindo que a pobreza não seja tão grande. São Olavo é uma das cidades com menores números de desempregados e mendigos em todo o estado de São Paulo e é composta por 16 bairros dos quais a maioria é de classe média ascendente.

Concordes mesmo é um dos mais nobres bairros da cidade e faz divisa com o centro da cidade, Jaraguaçú.

Quando seu pai o deixou na frente do Internato, Kaio foi recebido pelos olhares dos seguranças que não gostavam muito dele (devido um histórico de quebrar regras para seus próprios benefícios).

— Vai voltar para casa?

— Ainda to pensando nisso! — Respondeu ao pai, pela janela do carro.

— Qualquer coisa o Ricardo vem te buscar então. — Christopher disse, Ricardo era o motorista que Kaio desgostava sem motivo algum.

— Então eu fico por aqui mesmo. — Respondeu rindo. — Tchau, pai.

Christopher fez que sim com a cabeça, o vidro do carro subiu e este voltou a andar.

Kaio lançou um olhar ao horizonte, podia ver o topo dos prédios lá longe, no centro da cidade. Concordes era um dos bairros mais altos. Então olhou para a entrada de Edoniquim. Bem-vindo à prisão!

Pensou, rindo para os seguranças, e avançando.

A entrada tinha um grande arco de metal negro com “Edoniquim” escrito no metal torcido em um estilo terrível que lembrava um sanatório na Londres de 1800. O portão escancarado parecia com um cemitério velho na Paris de 1700. Lá no fundo os prédios principais aonde tinham aulas era de uma horrível arquitetura barroca reinventada. Kaio caminhou até lá dando oi para um ou outro aluno até encontrar com Matheus.

— Olha o defunto aí. — Seu amigo lhe cumprimentou, saindo do grupo de meninos e indo dar um abraço em Kaio. — Queria cancelar a festa, era só cancelar. Não precisava ficar doente não, viu!

Kaio riu, retribuindo o abraço em Matheus, sua mão nos cabelos dele, bagunçando o penteado. Matheus empurrou Kaio e deu-lhe um soco no ombro direito.

— Meu cabelo não, viado. — Disse, arrumando o cabelo enquanto riam. — O que cê tinha, afinal?

Kaio piscou, tudo voltou como um filme na sua cabeça.

— O médico disse que nada… umas feridas no estômago só.

— Menos tequila! — Alguém gritou do grupinho de meninos de onde Matheus tinha vindo.

— E mais vodca. — Outro retribuiu, Kaio ria olhando os amigos, a maior parte deles fazia parte do time.

— Para você, só refrigerante agora! — A voz delicada veio de trás dele.

Kaio girou nos calcanhares, Matheus dava um passo ao lado.

Era Inara, sua namorada. Os cabelos, agora lisos, vinham até a cintura, o rosto fino e delicado, maquiado, estava perfeito e os olhos eram tão fortes na pele negra que Kaio se perdia em tamanha beleza.

— Sim, refrigerante. — Repetiu meio abobado, esticando um braço e tomando Inara pela cintura, roubando um beijo que ela não tentou segurar. As mãos deslizaram da cintura para os quadris e Kaio a encarou após o beijo. — Lisos? — Kaio pegou os cabelos da namorada nos dedos, deixando-os cair fio por fio.

— Era para o Outback, mas alguém ficou dodói. — Inara respondeu, sorrindo e mordiscando o lábio. — A aula já vai começar, preciso ir. Te vejo logo?

Kaio fez que sim, ela esticou-se, na ponta dos pés, e os dois trocaram mais um selinho. Com isso Inara se virou, os cabelos leves balançaram como se fosse um comercial e Kaio apenas ficou a observar.

— Preferia os cachos? — Matheus perguntou enquanto olhava também.

— Prefiro como ela preferir. — Kaio respondeu, meio bobo, como se não tivesse palavras para expressar o que sentia por Irina.

 

Matheus e Kaio eram amigos há anos, mesmo com suas famílias não se dando bem em um contexto histórico e de interesses. Matheus era um Contezam, membro de uma das três grandes famílias (sendo estas os Ambrósio, Contezam e os Soverosa). As três grandes famílias eram creditadas não apenas pelo monopólio de produção da cidade, mas pelo surgimento da própria cidade, e as três viviam em constante guerra (que até 1700 era guerra real, com duelos entre os respectivos representantes, na frente das igrejas, prefeitura, em eventos, até mesmo com direito a invasões de uma casa à outra, com mobilização de tropa e milícias) para ver quem tinha mais poder.

Agora, com os tempos modernos, os duelos eram travados na presença de juízes, mas a picuinha por quem tinha mais poder continuava inalterada!

Outra forma de se conseguir poder e influência eram os eventos. Kaio e Matheus poderiam muito bem se odiar, mas ambos tinham algo em comum: mães que estavam dispostas a fazer da vida de seus filhos um inferno para manter as aparências.

Daí em todos os eventos Kaio e Matheus tinham que escapar dos olhos de suas mães e tentavam roubar doces e bagunçar as placas com os nomes dos convidados, só por diversão. Assim a amizade surgiu, não demorou para que crescesse junto deles, e dois jovens que teriam tudo para se odiarem se tornaram melhores amigos, com isso mais uma vantagem surgiu, a tensão entre Soverosa e Contezam diminuiu drasticamente, os dois praticamente forçaram suas famílias a se entenderem.

Ainda sobrava, porém, os Ambrósio. Felipe Ambrósio era o filho perfeito, jogador (atacante) da turma, criado como um verdadeiro guerreiro, era forte que dava medo de ver, educado que dava gosto, um cavalheiro sem igual com as damas e um brutamonte com os homens. Kaio se perguntava se Felipe podia ser sequer real, era impossível alguém agradar todo mundo, mas ele conseguia!

No Internato Edoniquim existia de tudo, era mais um ambiente preparatório que um internato (como já havia sido historicamente), hoje em dia a construção havia expandido e contava com quadras para esportes, laboratórios, piscinas, raias de remo, pistas de corrida, tudo de nível olímpico. Cada aluno tinha a matriz curricular padrão, mas completava está com outras quatro matérias opcionais, e sempre havia algo para fazer: estudar, estudar, estudar!

Kaio estava indo para a quadra de futebol junto de sua turma durante o penúltimo período, era uma de suas matérias complementares, daquelas que ele não precisa sequer fazer, mas uma das poucas que gosta de fazer.

A quadra era enorme e ficava atrás do dormitório masculino com outra quadra ao lado, está segunda de beisebol. E a arquibancada existente compreendia apenas um lado da quadra, indo da de beisebol até a de futebol.

Chegando no gramado o professor veio falar com Kaio, que era o volante do time.

Lá na frente, Felipe já se posicionava como o atacante enquanto os outros alunos tomavam suas devidas posições, o que incluía Matheus como goleiro.

— Hoje você fica no banco, Kaio. — O professor disse, sem nenhum sentimento.

— Como? — Kaio perguntou, pasmo.

— Ordens de cima. — O Professor de educação física e atividades extracurriculares disse apitando e então dando uma bronca em um dos meninos que jogava as bolas para a arquibancada. — Agora vai pegar. Não é o palhaço da turma?

— Mas por quê? — Kaio perguntou indo atrás do professor que já saia andando.

— Você estava doente, sua mãe ligou e mandou cancelarem suas atividades físicas. Quando melhorar você volta…

— O campeonato…

— Se precisar a gente coloca o Vinícius no seu lugar…

— Ultraje! — Kaio respondeu, nervoso. — Eu posso jogar.

— Pode, mas não vai. — O professor disse se virando e encarando Kaio. — Agora sai do campo, tá atrapalhando o time!

Tentou parecer educado, mas quis mandar o professor à merda. Se virou e bufando foi até o gramado em baixo de uma árvore, se sentou encostando no tronco, olhando o time.

Matheus olhou para ele algumas vezes antes do jogo começar, mas quando o apito soou todos começaram a prestar atenção apenas na bola, e Kaio a resmungar como um velho ranzinza.

Foi quando durante um dos ataques para retomar a bola que o pior jogador da turma, Carlos, pisou em cima da bola e caiu de costas, batendo os dois cotovelos no chão com um tranco e um gemido de dor.

Que cheiro…

Kaio se curvou para frente, encarando Carlos no chão lá no meio do campo enquanto todos paravam, uns para prestar auxílio, outros para mandar Carlos deixar de choro e o professor indo verificar qual a extensão dos danos no desajeitado Carlos. Kaio, porém, invisível a todos, tapou o nariz sentindo o cheiro de sangue. Que nojo. Pensou virando a cara, mas sentia a barriga embrulhar já.

Quando Carlos se levantou com a ajuda de Matheus, Kaio pode ver o sangue escorrendo pelo braço do menino e foi o suficiente.

Abriu a boca sentindo a ânsia e se virou de lado quase mandando as bolachas quase digeridas para fora. Merda… o que tá acontecendo, de novo?

Se levantou e saiu andando contornando a quadra, prendendo a respiração.

O cheiro do sangue parecia acompanhar ele, mas a cada passo que dava este enfraquecia. Se concentra, se concentra no que você quer ver, sentir, ouvir, cheirar.

Kaio continuou andando e tentando fazer o que havia feito com sua visão um tempo atrás.

Ao lado da arquibancada e da quadra o pequeno prédio do vestiário e banheiro estava vazio. Entrou, afobado, correu para a pia e jogou água no rosto deixando-se debruçar sobre a porcelana, arfando. Não vomita, não vomita! Repetia para si mesmo.

Após lavar o rosto foi se sentar de frente aos armários, o cheiro do vestiário era de homem, uma caatinga comum e natural em todo ambiente aonde dezenas de homens suados se trocavam e deixavam roupas sujas guardadas por semanas até se lembrarem que estas sequer existiam, mas hoje o cheiro estava fenomenalmente forte.

— Kaio.

Então ele virou a cabeça olhando para a porta, olhos arregalados.

— Você… o que…

— To todo sujo de sangue. — Matheus disse, mostrando as mãos. — O Carlos é um molenga, não devia nem jogar. Foi pra enfermaria.

— O primeiro tempo acabou, não?

— Vai acabar agora… uns cinco minutos. — Matheus lavava as mãos. Kaio felizmente não voltou a sentir o cheiro do sangue impregnando o ar. — Você tá pálido, tá bem?

— To tranquilo, só… nada.

— Vamos, você ainda pode assistir, né?

— É, que diversão. Me dê pompons também. — Kaio disse, sarcástico.

— E uma saia rodada. — Matheus disse dando um leve tapa nas costas de Kaio enquanto os dois iam saindo do vestiário, mas então Kaio parou, em sua mente mil coisas acontecendo.

É meu melhor amigo, posso confiar em você!

— Eu passei mal, Matheus. — Disse, subitamente.

Matheus olhou para trás, parado na porta.

— Tá, mas você tá melhor…

— Você já ouviu falar de alguma coisa sobre maldição? — Matheus desviou o olhar de Kaio, então limpando a garganta ia falar, mas Kaio interrompeu. — Eu… é, tipo assim… quando eu fiz dezoito eu vomitei uma cobra, cara.

— Que nojo. — Matheus disse, visivelmente desconfortável. — Como ela entrou? Andou dormindo pelado no jardim de novo?

— Foi só uma vez… — Risadas. Os dois riram lembrando daquele acampamento que deu muito errado um ano atrás. — E não, foi… não me chama de louco, mas eu ganhei essas… habilidades… de uma cobra.

— Carlos caiu, mas você quem bateu a cabeça, né? — Matheus disse tentando soar casual, mas era estranho. Kaio notou que algo nele havia se tornado… diferente. Do nada. Você tá suando. Notou as gotículas surgindo, subitamente, na testa de Matheus.

— Deixa para lá…

— Pode falar. — Matheus disse então, voltando para o interior do vestiário. — Só estava zoando porquê… qual é, você não acha meio viajado isso que tá falando?

— Eu achava, até ficar cego, até sentir o gosto do sangue do Carlos, até ouvir passos de formigas… eu queria que fosse só uma viagem, mas não me drogo nem com maconha faz um bom tempo e nem fico bêbado, então ou é de verdade ou eu to ficando louco, e eu não acho que esteja louco.

Nisso o time chegou.

— Relaxa, depois a gente conversa sobre isso, pode ser? — Kaio fez que sim para Matheus enquanto o time entrava, a maioria sujo e suado.

O professor falava de como o desempenho foi ruim, que eles pareciam frangos depenados.

— Da próxima me deixa jogar. — Kaio disse, passando do lado do professor, e conseguiu um olhar de reprovação deste e em resposta abriu seu sorriso de superioridade, mas não durou.

Quando chegou na porta do vestiário sentiu um calafrio invadindo seu corpo como se algo terrível estivesse atrás dele, algo perigoso e terrível.

Se virou assustado, punho fechado e sobrancelhas arqueadas, pronto para socar…

— Kaio? — Um dos meninos perguntou, ao lado de Kaio.

Matheus olhou para ele enquanto Kaio abria a mão, seus dedos tremiam. Ali, no primeiro armário, estava Felipe, sem camisa, todo suado com os músculos saltados e as veias pulsando. Kaio reconheceu no mesmo instante que era ele, Felipe estava lhe dando medo. Preciso sair daqui. Se virou e tentando apenas andar sem tropeçar, começou a se distanciar do vestiário sem entender.

*****

— Mas eu não sei o que aconteceu, vó. Eu estava com o Matheus e tudo estava tranquilo aí do nada o Felipe tirou a camisa e eu senti raiva, comecei a tremer… — Kaio falava com a avó no celular enquanto atravessar um dos campos rumo ao prédio principal do internato. — E o cheiro do sangue, me deu uma coisa… um nojo.

“Você só está experimentando as habilidades, elas vêm descontroladas, querido, mas com o tempo você entende melhor, alguém notou? ”. Teodora perguntou, sua voz vinha calma pela linha.

— Não sei… todo mundo me viu tremer e prestes a socar o Felipe…

— Por que você ia socar o Felipe? — Inara surgiu, como um fantasma, ao lado dele, mas Kaio estava tão distraído falando com a avó que não teria a visto nem se Inara viesse de frente a ele.

— Vó, eu te ligo depois, está bem?

“Kaio, se lembre que você tem as habilidades…” desligou antes que sua avó terminasse.

— Você sabe que eu sempre quis socar o Felipe. — Disse para Inara, rindo, enquanto pegava a mão dela na sua e começavam a andar. — Foi… coisa do jogo. Não me deixaram jogar por causa do hospital lá, acredita?

— Ainda bem, né, Kaio! Você precisa melhorar, não ficar se esforçando aí. — Ela o repreendeu, mas de forma quase meiga — Não é feito de ferro. — Irina disse, colocando a mão na barriga de Kaio e sorrindo, mordeu o lábio inferior. — Mas é tão duro quanto! — Sussurrou se aproximando dele.

— Besta. — Disse para ela, e os dois pararam no meio do gramado. Mais para frente tinha algumas alunas se dispersando para o dormitório feminino. A maioria entrava no prédio principal para o almoço, mas Kaio e Inara gostavam de almoçar na cantina por poderem escolher comidas melhores que as do internato. — O que vai fazer agora?

— Almoçar, né? Depois tenho química, mas primeiro preciso revisar um conteúdo do exame quinzenal com a Inma…

— Você passa mais tempo com ela que comigo. — Kaio disse com um tom de ciúmes bobo.

— E você mais tempo com o Mat que comigo. — Inara retrucou e Kaio deu de ombros. — Vamos na cantina?

— Eu… depois do sangue lá fiquei sem fome. — Kaio respondeu e percebeu o olhar atônito de Inara. — Carlos caiu e foi parar na enfermaria… longa história. Enfim, não vou ir não. Vai lá com a Inma.

Kaio disse rindo, fingindo ciúmes dissimulado e Inara deu de ombros, jogando os braços em cima de Kaio.

— Vou mesmo, e depois a gente vai fazer várias bruxarias!

— Ela é feia, mas não serve para bruxa. — Kaio respondeu, segurando Inara pela cintura, ela fez que não com a cabeça.

— Não fala assim dela…

— Que tal o seguinte; não vamos falar dela! — Kaio resumiu, avançando contra Inara, beijando-a.

Sua mão esquerda subiu da cintura às costelas, até os dedos encostarem na parte inferior do seio. Os lábios dos dois, juntos, viravam um só.

Kaio então desceu as duas mãos até as nádegas de Inara e apertou-as

— Tem gente ao redor…

— Eles que morram de inveja. — Kaio respondeu, mordiscando o lábio de Inara.

Nisso ela se separou e colocou a mão no lábio de cima, fez uma careta.

— Que gosto é esse?

— Que gosto?

— Sei lá, eu senti… ago… ra…

— Inara? — Kaio viu a namorada recuar um passo, bamboleando, levou a mão no pescoço e então caiu de joelhos.

Kaio se jogou ao chão mais rápido e a segurou vendo uma pequena mancha negra surgiu na boca dela. No exato local aonde Kaio havia mordiscado. De novo a voz de sua avó chegou na sua cabeça como uma lembrança macabra e ele sentiu um calafrio.

— Chama… a… Inma. — Kaio ouviu Inara engasgar entre as palavras.

Preciso ouvir, ouvir, é isso! Kaio colocou a mão sobre o peito da namorada, mas ao fazer isso notou que o coração diminuía de velocidade rapidamente assim como o pescoço inchava e a boca enegrecia. Ela vai morrer. Percebeu naquele instante.

Kaio pegou o celular e ligou para a avó depressa.

“Kaio, querido”

— Beijei a Inara, ela tá morrendo… vó… o coração dela… — Disse desesperado.

“Desliga, massageia o coração dela com força, o veneno não pode chegar até ele, eu estou indo, não pare de massagear”.

Kaio largou o celular no chão e começou a fazer a massagem cardíaca em Inara, que já deitada no chão arfava, puxando tão pouco ar que parecia estar com asma, coisa que Inara não tem. Kaio pressionava seu peito com força amassando visivelmente a caixa torácica a cada empurrão.

— Inma… Inma. — Kaio ouviu os cochichos, e foram os últimos.

Inara fechou os olhos.

Não, não, não. Continuou a massagem com apenas uma mão e pegou o celular, desesperado, ligou para Inma.

Chamou duas vezes até que ela atendesse.

“Kaio, é bom você devolver minha amiga”

— Ela está morrendo, Inma. Ela… eu… veneno…

“Aonde? ”

— No jardim na frente do prédio… eu preciso empurrar o coração, você… ela…

Inma desligou. Kaio olhou a tela do celular, então olhou para Inara, tentou perceber se havia pulso, mas o coração estava parando lentamente, podia ouvir seu coração parando.

Kaio continuou a massagem, mais forte, mais rápido, não havia ninguém por perto, ninguém olhando para ele.

Preciso de ajuda. E preciso rápido!

*****

Inma saiu de dentro do prédio principal e veio correndo, sua blusa aberta balançando, caída pelo ombro, a bolsa ela segurava com uma mão só, desesperada se jogou no chão na cabeça de Inara, segurou-a pelas têmporas. Kaio olhou a melhor amiga da namorada sem saber o que fazer.

Inma usava roupas largas, colares, brincos barulhentos. Era negra também, de cabelos crespos por vezes volumosos.

Ela olhou para Kaio e então para Irina.

— Sorvedor. — Disse, decepcionada com Kaio, então abaixou-se, ficando cara a cara com Inara, as mãos deslizaram pelo rosto, pescoço e peito de Inara enquanto os dedos de Inma mexiam-se de forma estranha dando pequenos trancos como se os ossos estivessem prendendo nas articulações.

Kaio percebeu que eram movimentos repetitivos, mas não entendia o que ela estava fazendo, porém estava funcionando, conseguia ouvir o coração de Inara batendo pouco mais forte que um momento atrás.

— O que você tá fazendo…

— Não é o único com poderes, idiota. Só que os meus não matam minhas amigas! — Inma disse, brava. — E é bom que você tenha um plano, porque isso daqui… não vai curar ela. — Inma disse continuando os movimentos com os dedos acima do peito de Inara enquanto olhava para a amiga com tristeza. — Eu não consigo segurar o veneno longe do coração por muito tempo, sorvedor. O que você vai fazer?

Kaio abaixou a cabeça assim como Inma, os dois em silêncio então.

Chegue logo, vó. Chegue logo.


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Notas finais do capítulo

E então? Gostaram???
O que acham de Matheus? E por que Felipe causou tal efeito em Kaio? E o que Inma é para ter poderes? Sorvedor? Que nome estranho para designar Kaio, não?
E a namorada de Kaio... ela sabia que Inma "tem poderes"?
Não perca tudo isso sexta, no globo repórter... :P
Brincadeira.
Não sei quando atualizo de novo, provavelmente ainda esse mês, preciso tratar de umas coisinhas primeiro. Mas espero que não me abandonem, pois eu to estudando maldição não é à toa! xD
Bj pra quem quiser. E se gostou, deixa um coment pequeninho mesmo, só um "gostei, continua" já me faz sorrir!
Até mais ver :3



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