Megavi - Outras Vidas escrita por Joana Guerra


Capítulo 4
1535 – O pecado mora aqui


Notas iniciais do capítulo

Aviso à navegação: esta one-shot é mais pesada, mas eu não tenho culpa se a novela me fez shippar incesto. Este é um Davi levado à loucura pela força das circunstâncias. A música-tema é “Take me to church”, do Hozier.



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“Take me to church

I'll worship like a dog at the shrine of your lies

I'll tell you my sins and you can sharpen your knife

Offer me that deathless death

Good God, let me give you my life

If I'm a pagan of the good times

My lover's the sunlight

To keep the Goddess on my side

She demands a sacrifice”

(Hozier, Take me to church)

1535, Gênova

Várias colunas de fumo cinza ascendiam ao céu italiano. As primeiras fogueiras tinham sido acesas logo pela manhã e no ar se impunha um cheiro nauseabundo.

Na praça da cidade se dispunham em círculo, assistindo ao espetáculo macabro, os representantes das principais famílias de Gênova.

Era já a segunda vez naquele ano que a Inquisição fazia aquela execução colectiva de judeus, mascarada de cerimônia de purificação.

A família Marra não teve como escapar a ter que comparecer. Escondendo o repúdio debaixo de uma máscara de impassibilidade aparente, o patriarca Jonas Marra era o primeiro de uma fila de comerciantes abastados que observavam aqueles corpos de humanos inocentes arderem pelo único crime de professarem um credo que era diferente do da maioria.

Do lado de Jonas, tentando reter a elegância numa situação impossível, a sua esposa Pamela levava ao nariz um lenço perfumado, tentando não colocar na sua memória olfactiva aquele cheiro a carne humana queimada.

Para todo o clã Marra era uma imagem too close for comfort todo aquele aparato surreal.

Sentindo que Megan estava próxima de um desmaio pela palidez que a sua face apresentava, Davi segurou na cintura dela quando sentiu que as pernas da loira já cediam perante aquela cena nojenta.

Pudesse ele fazê-lo, já o bom moço teria levado toda a família para casa e teria libertado os pobres infelizes que ardiam nas fogueiras, não sem antes ensinar uma lição para os seus cobardes carrascos.

Revoltado, apenas lhe restou tocar no ombro do pai para lhe chamar a atenção e Jonas volveu para ele os seus olhos cansados, constatando a aflição em que a filha se encontrava.

Suspirando e tendo consciência que ele não podia abandonar o local sem levantar suspeitas, o patriarca Marra deu indicação para tirar Megan daquele lugar abjecto:

– Filho, por favor leva a sua irmã para casa. – pediu ele a Davi.

Os Marra eram judeus marranos originários de Portugal, mas convertidos à força ao cristianismo, ainda que em segredo continuassem a praticar a fé dos seus antepassados.

Era o tempo das perseguições religiosas e já nenhum local na Europa era seguro para quem ostentava uma estrela de Davi.

Forçados a mudar constantemente de país sob pena de serem apanhados pela Inquisição, a maior parte dos Marra já tinha perecido quando Jonas chegou a Bristol, no sudoeste de Inglaterra.

Com ele levava apenas o filho bebê, Davi, fruto da relação com uma amante, Sandra, falecida no parto. Não sendo usual naquele tempo um homem ocupar-se daquela maneira da criação de um filho bastardo, Jonas fez questão de nunca se separar do menino.

Mesmo quando se acertou o seu casamento com Pamela, a filha do rabi daquela comunidade, Jonas fez questão que o filho bastardo crescesse com os mesmos privilégios que viessem a ser atribuídos aos seus filhos legítimos.

Contudo, do casamento com Pamela tinha resultado apenas uma filha, Megan Lily, a luz dos seus dias, nascida ainda durante o primeiro ano de casamento dos Marra.

Após alguns anos tranquilos na cidade inglesa, criando as crianças numa relativa tranquilidade, os Marra tiveram novamente que fugir quando regressaram as perseguições aos judeus.

Daquela vez o destino foi Gênova, onde se vieram a fixar como comerciantes e se fizeram passar por cristãos devotos. Mesmo assim, cada um deles olhava muitas vezes por cima do ombro, com medo que alguém os apontasse como praticantes da fé judaica.

Megan, agora uma adolescente que já fazia virar cabeças quando estava em público, continuava a mesma bad girl de sempre, continuamente pregando partidas a Davi, que continuava sendo a sombra benevolente da loira.

Mesmo bastardo, o bom moço tinha encontrado um lugar naquela família, auxiliando de coração o pai nos negócios da família que prosperavam a olhos vistos e voluntariamente ajudando a domar a natureza impetuosa da mais jovem dos Marra, que mesmo sem querer os podia colocar em maus lençóis.

Relax, Davi. - pedia a loira certa vez, quando tinham ido os dois visitar o mercado das especiarias chegadas do oriente. - Você está sempre fazendo contas daquilo que você e dad podem revender com lucro.

Recorrendo a cócegas, o bom moço fez Megan gargalhar enquanto lhe perguntava:

– Como é que você adivinha sempre o que se passa dentro da minha cabeça?

– É que eu e a minha mom descendemos de uma longa linhagem de feiticeiras, you know? – respondeu ela prontamente sorrindo, abrindo aqueles olhos inocentes, mas ignorando que estavam em público.

Arrastando-a dali até a um beco, Davi a segurou pelos dois braços, assumindo uma expressão séria para a fazer ver o perigo em que ela se tinha colocado.

Bad girl, por favor não brinca com uma coisa tão séria. Se alguém te ouve…

– …então você me protege, Davi. Você é like, o meu knight in shining armor, não é? – perguntou ela, correndo os dedos com carinho pelas maçãs do rosto do bom moço.

Davi fechou os olhos para aproveitar melhor aquele toque, ciente que o caminho que eles tomavam era não só errado, como não tinha volta possível.

Eles podiam ter sido criados como irmãos, mas era um desejo muito carnal, o que os vinha consumindo nos últimos tempos.

Entrando da idade adulta, já não era como uma criança que Davi via Megan quando ela trocava de roupa diante dele. E quando ele a via trincar aqueles morangos carnudos, a sua fruta predileta, chupando com vontade o suco que se escapava por entre os seus dedos, era uma reação muito primordial a que ele tinha.

Ela também já não olhava para ele com inocência quando o via nu no banho. E se, a coberto do parentesco, a loira procurava o carinho do abraço do irmão, não era em laços de sangue que ela pensava quando se aninhava nos braços dele quando Davi já estava deitado, insistindo que era só assim que ela conseguia dormir bem.

E se, a pedido de Megan, eles continuavam a brincar de esconde-esconde, também já não eram completamente puros os beijos que eles trocavam ao rolarem pelo gramado das traseiras da casa quando a bad girl o pegava e o atirava no chão.

Era num misto de vergonha, ansiedade e desejo pelo desconhecido que eles se acariciavam e mãos se perdiam dentro do gibão dele e debaixo do vestido dela.

Sabendo que o que faziam era errado, eles já não conseguiam parar, ainda que lhes fosse impossível discutir o assunto.

Da única vez que Pamela o questionou sobre a proximidade a Megan, Davi respondeu de uma forma incisiva e natural:

– A Megan é uma menina muito especial. Eu tenho carinho por ela.

Ele sabia que não era mentira, mas também não era toda a verdade. Era a única coisa que ele podia confessar.

A Senhora Marra não voltou a tocar no assunto, descansando Davi. Completamente fechada sobre si mesma, era impossível perceber o que Pamela realmente pensava porque ela mantinha uma calma impressionante.

O bom moço nunca tinha tido dela muito carinho, mas colocando-se na posição de Pamela, não podia deixar de lhe dar razão. Para uma mulher que tinha sido obrigada a criar o filho bastardo do marido, a Senhora Marra tinha feito o melhor com as circunstâncias.

Mesmo distante, Pamela tinha garantido uma educação para Davi e tinha aceitado aqueles arranjos domésticos com mais facilidade do que muitas mulheres da época. Ele lhe era grato pela sua benevolência.

Davi só havia visto Pamela perder o controlo numa determinada situação, quando um misterioso homem loiro com sotaque francês começou a rondar a casa deles em Bristol e, chorando de uma maneira desnorteada, a Senhora Marra trancou a filha no quarto, proibindo-a de sair à rua, sob que pretexto fosse.

Foi, por isso, um alívio para Pamela quando Jonas contou à família o plano para se mudarem para Gênova, para fugirem ao ataque aos Judeus.

Os Marra se tinham esquecido de uma lição muito simples: por muito que fugissem, não iam conseguir fugir para sempre.

Os últimos meses tinham trazido transformações dramáticas no seio da família. A principal afetada tinha sido Megan. Ainda meses atrás, ela era uma menina alegre, talvez um pouco maluquinha, que gostava de dançar pela casa e cantar, acompanhando o piar dos canários que guardava no quarto.

Agora, a pele antes viçosa e naturalmente corada estava baça e macilenta. Ela, que era a luz da vida de Jonas, estava se apagando lentamente.

Se era moléstia o que afetava a casa dos Marra, também Davi padecia da mesma doença, porque era impossível deixar de perceber os enormes círculos escuros que se haviam tornado nas olheiras perpétuas do bom moço.

Quando se apagavam todas as velas da casa, Davi aproveitava a cobertura da escuridão para se introduzir no quarto de Megan, tirando a roupa antes de se enfiar debaixo dos cobertores com ela.

Com poucos movimentos, Davi conseguia fazer despertar todos os sentidos de Megan. Eles se inebriavam com o toque um do outro, com os cheiros que se misturavam nos corpos que aqueciam, mãos que deslizavam até locais secretos a outros, eletricidade natural que os percorria e abria todos os seus poros para sensações de êxtase.

Apenas o barulho dos beijos que percorriam o corpo um do outro, bocas que se detinham em locais estratégicos para exercer maior pressão e partes do corpo que se friccionavam, cortavam o silêncio da noite avançada.

Sem dizer uma palavra, já Davi tinha retirado a camisa de noite da loira e, como um animal selvagem, ele a tomava de uma só vez. Depois disso eram poucas palavras murmuradas e muitos gemidos abafados enquanto a estrutura da cama vibrava com o ritmo crescente da cavalgada.

E quando eles se libertavam em uníssono num abraço apertado de membros era como se as portas do céu se abrissem para eles, seguidas por coros celestiais.

Contudo, quanto tudo acabava, os dois se sentiam merecedores do Inferno pelo que tinham acabado de fazer.

Davi ainda a abraçava, mas Megan sabia que iria acordar sozinha naquela cama, com o cheiro almiscarado do bom moço ainda impregnado em si mesma e nos lençóis transpirados, se sentindo a pior pessoa do mundo por fazer aquilo com o próprio irmão.

Como é que um ato tão hediondo podia parecer tão natural e prazeroso no momento? Seria possível que o Paraíso e o Inferno andassem de mãos dadas, como amantes amorosos?

E ela tinha sido a principal culpada. Meses antes, numa noite de um calor insuportável, não conseguindo dormir, mesmo com as janelas abertas, ela tinha ido pé ante pé até ao quarto de Davi.

Deitado de bruços, com a pele morena coberta parcialmente pelo lençol branco, o bom moço dormia o sono dos justos.

Com uma malícia muito adulta, a bad girl subiu na cama e constatando que nada separava Davi dos lençóis da cama, ela puxou o pedaço de tecido que impedia que o bom moço se apresentasse como veio ao mundo.

Confuso, Davi acordou sobressaltado, tentando imediatamente cobrir a nudez com a almofada.

What? Agora você dorme buck naked, Davi? – riu-se a loira, cobiçando gulosamente com os olhos aquilo que do bom moço estava a descoberto e o que estava parcialmente coberto também.

Subitamente com a boca seca, Davi passou a língua pelos lábios, tentando encontrar uma saída para aquela situação impossível.

Colando o seu corpo no dele, Megan não deve dúvida de que o bom moço a desejava tanto quanto ela sentia necessidade dele naquele momento.

O abraçando com braços e pernas, ela sussurrou com uma sensualidade inexperiente no ouvido do bom moço espantado:

– Eu te amo, Davi.

Todos os músculos dele se contraíram e ele acabou tendo de puxar o ar para responder inconscientemente, aspirando o perfume da loira que o inebriava e sem conseguir combater o desejo mal contido que tomava conta dele:

– Eu também te amo, Megan.

Arrastando a boca preguiçosamente desde o lóbulo da orelha de Davi, a loira a fez descer pelo pescoço do bom moço, deixando uma trilha de saliva quente e a fez subir novamente até traçar uma linha com o indicador pela base da mandíbula dele e se aproximar perigosamente da sua boca.

Confuso, o bom moço se tentou afastar, mas sucumbiu à explicação da loira que continuava grudada nele.

Not like that, my love. – disse ela, tirando lentamente a camisa de dormir - Eu te amo do jeito que uma mulher ama um homem.

– Megan…..

Completamente nua diante dele estava uma Afrodite de pele leitosa imaculada, com uma cascata de cabelos loiros caindo pelas suas costas despidas.

Prestes a cair no abismo, Davi a agarrou pela cintura, sabendo que o correto seria mandá-la embora, mas desejando secretamente ter pelo menos uma noite para apagar o fogo inclemente que ardia dentro de si.

Foi Megan a acender o rastilho quando, ao ver a hesitação dele, segurou na face dele com as duas mãos, mostrando a certeza da resolução que tinha no olhar:

– Eu quero ser a sua mulher, Davi.

Uma explosão não produziria um efeito maior de surpresa em Davi, mas ele tinha fantasiado tanto com aquele momento, que não conseguiu evitar tomar Megan nos braços e a beijar com impetuosidade, pensando que ela ia sair assustada fugindo dali.

Contudo, a loira correspondeu, ainda que um pouco desajeitada, provavelmente por ser aquele o seu primeiro beijo.

Também ele era pouco experiente, mas isso não impediu que eles encontrassem uma sincronia natural, disputando com as línguas o espaço dentro da boca um do outro, enquanto as mãos se perdiam pelos corpos em carícias delicadas de reconhecimento de território virgem.

Quando deram por ela, eles já estavam deitados um sobre o outro e Davi sugava com vontade os seios de Megan nunca antes tocados, como um animal cheio de fome. Sentindo-se arfar, ela arqueou as costas, enterrando as unhas nas costas do bom moço, o que só o fez gemer de prazer.

Com toda a sua pele exposta para deleite um do outro, eles exploravam o corpo um do outro, beijando cada centímetro de pele exposta, o que os deixava completamente eléctricos, fosse pela sensação de prazer que obtiam, fosse por sentirem a excitação que crescia um no outro.

Mesmo com dúvidas e receios , eles sabiam que já não iam conseguir parar.

Silenciosamente, Megan balançou a cabeça dando consentimento e, abrindo as pernas da loira constatando que ela estava pronta, Davi se posicionou sobre ela, prestes a se atirar no abismo com a loira.

Ela sentiu dor e desconforto a princípio, mas, encorajada por Davi, foi-se soltando, livre como um pássaro para se permitir sentir o prazer com que tinha sonhado.

Murmurando o nome um do outro como uma oração impronunciável eles se deixaram levar pelo deleite e, se sentindo próximos do pico, o bom moço reuniu capacidade mental para ainda verbalizar no ouvido da loira:

– Vem, meu amor. Onde você for, eu vou também.

E eles foram, abandonado definitivamente a aura de inocência que os tinha protegido até então. A partir daquele momento, tal como Adão e Eva tinham sido expulsos do Paraíso por terem comido a maçã, também eles seriam amaldiçoados pelo pecado do seu amor.

Perdidos por cem, perdidos por mil. Quem peca uma vez, peca muitas mais. Depois dessa noite eles continuaram pecando no quarto dela, no dele, em cima dos sacos de cereais do armazém, na mesa da sala de costura, na parede do fundo dos jardins, em qualquer armário onde se conseguissem esconder.

O que eles tinham descoberto era uma droga muito mais poderosa do que qualquer opiáceo. E nenhum deles podia negar estar cada vez mais viciado naquilo.

Foi uma sorte tremenda os pais não se terem apercebido. Que os criados, por terem demasiado respeito por Davi e muita afeição por Megan não dissessem nada era uma coisa.

Megan achava impossível Pamela não desconfiar do que ela fazia trancada com Davi no quarto. Como é que a sempre atenta Senhora Marra não percebia o que se passava debaixo do seu teto? Pior, se ela percebia, qual era o motivo para ela se manter tão calma com a situação? Porque é que ela não tinha dito nada?

Contrastando com a nuvem negra que pairava sobre os filhos, Jonas estava de particular bom humor naquela manhã. Ainda dias antes, eles tinham ficado assustados com o novo édito que tinha levado a uma denúncia sobre amigos judeus da família, mas o patriarca Marra mostrava-se agora mais descansado do que em muito tempo.

Wait, já sei! Recebeu uma boa proposta de negócio! – comentou a Senhora Marra à mesa do café da manhã, procurando descortinar aquele mistério.

– Pode ser que sim. – respondeu o Senhor Marra , olhando diretamente nos olhos da filha – O Arthur Nigri acabou de sair daqui. Ele veio pedir a mão da Megan em casamento, mas eu disse que tinha que falar primeiro com ela.

Os Nigri eram ricos, muito ricos. Mas mais do que isso, eram tremendamente respeitados e temidos e a sua palavra era lei. Se os Marra contassem com a sua proteção, nem o Papa poderia tocar neles, mesmo que eles começassem a recitar a Torá no meio da rua.

Esfarelando o pão em migalhas debaixo dos seus dedos, Davi mal conteve a raiva que foi canalizada para lhe contrair todos os músculos:

– Pensei que ele tinha dito que a Megan era uma pirralha. – disse ele, sem conseguir levantar os olhos da mesa.

– E para nossa sorte, ele mudou de ideia. O Arthur se diz apaixonado pela beleza da nossa Megan e quer casar com ela o quanto antes. – comentou Jonas sorrindo, ignorante da tensão que se instalava.

Abrindo um sorriso enorme, Pamela queria encorajar ao máximo aquela união, vendo ali uma luz ao fundo do túnel:

– Megan, isso é amazing ! A solução para todos os nossos problemas, my love.

A principal interessada naquele assunto parecia perdida nas suas ideias, alheada do resto.

– E o que é que você diz, Peanuts? – perguntou Jonas, querendo dar uma resposta pronta a Arthur.

Concentrada no prato diante dela, Megan o empurrou subtilmente para frente, tendo perdido toda a fome:

– Eu digo….sim. Yes, eu me caso com o Arthur.

Foi uma sorte não se ter partido ainda mais loiça, quando Davi saiu precipitadamente do cômodo, levando tudo à sua frente.

Os criados da casa ou fugiram da sua frente, ou foram derrubados quando o bom moço montou no seu cavalo e saiu a galope da propriedade.

O casamento foi agendado para menos de duas semanas depois. Rico como o noivo era, não existiam impossíveis para ele.

Ainda na véspera da cerimônia, Arthur se apresentou na casa dos Marra com uma enorme gargantilha de diamantes, presente antecipado para a sua já quase esposa.

Agradecendo sem graça o presente, Megan pediu para ir apanhar um pouco de ar, deixando os pais fazendo sala ao noivo.

Mal tinha entrado no cômodo ao lado, já Davi a tinha imprensado contra uma parede.

– Ainda dá tempo para acabar com essa loucura. Cancela esse casamento. – pedia ele, beijando com vontade o pescoço da loira.

Ela se assustou com o descontrolo do antes bom moço. Desde o anúncio do casamento, parecia que Davi caia voluntariamente numa espiral descendente.

Cada vez mais desgrenhado e desleixado, parecia que ele já não dormia há dias e não já via um prato de comida pelo mesmo período de tempo.

Com os olhos vermelhos injetados, ele começava a parecer um daqueles doidos que eles costumavam ver quando passavam na porta do asilo.

– Não posso, Davi. – acabou respondendo Megan, fechando os olhos para não ter que o encarar, sem conseguir quebrar as carícias dele.

A levantando e a colocando sobre um aparador, o bom moço a fez inclinar para trás enquanto colocava as pernas da loira em redor do seu corpo e a beijava com dedicação no colo do vestido.

– Megan, você não diz “não quero”. Você diz “não posso”. Fala comigo. Me diz o que realmente se está passando. – pedia ele ,entre beijos fervorosos.

Please stop, Davi. O meu noivo está na sala ao lado. Isso é errado.

Avançando sobre ela e friccionando o seu corpo contra o da bad girl, que não conseguiu evitar um gemido abafado, Davi era da opinião contrária.

– Não. Isto só pode ser certo.

Recuperando a sensatez, Megan o empurrou de cima dela e segurou na face dele com as duas mãos, tentando incutir-lhe algum juízo. Dentro daquele homem prestes a saltar no abismo da loucura, ainda estava o amor da sua vida.

– Davi, você é um bom moço.

Constatando a triste verdade, ele apenas conseguiu um sorriso dolorido:

– Não, Megan. Sem você, eu não sou nada.

A catedral de Gênova estava cheia para presenciar o casamento do ano. Muitos comentaram que a noiva parecia demasiado abatida para quem se ia casar com o melhor partido da cidade, mas a maior parte das atenções estava centrada no noivo, o que foi uma sorte porque ninguém percebeu o olhar assassino que o futuro cunhado de Arthur Nigri tinha estampado no rosto.

Focando no irmão durante a cerimônia, posicionado diretamente atrás do seu noivo, Megan sabia que aquela história tinha mais participantes errados do que certos.

Ela nunca poderia contar a verdade a Davi. Se ele soubesse que ela estava grávida de um filho dele, ninguém teria como prever a loucura que ele cometeria. Talvez tentar fugir com ela. Mas ir para onde?

Para além de não terem para onde fugir, ela sabia que se fossem descobertos, seriam eles a arder na fogueira no meio da praça principal da cidade e aquela criança nunca teria uma chance.

Agora, a criança teria um nome honrado e ela a oportunidade de criar um lar, não como uma ostracizada, mas como a respeitada Senhora Nigri. E Davi teria a oportunidade de começar de novo.

Tentando focar a sua atenção no jovem de cabelos escuros cacheados diante dela que sorria sinceramente, Megan fez uma promessa. Arthur era um bom homem que não tinha culpa das circunstâncias. Ela seria uma boa esposa esperando que ele viesse a ser um bom pai. Talvez, com a convivência, ela conseguisse mesmo encontrar uma forma de aprender a amar o marido.

Transplantada para outro meio depois do casamento, a nova Senhora Nigri não teve muitas oportunidades para ver a família durante as semanas que se seguiram.

E se ela conseguiu encontrar rapidamente o seu lugar nos grandes salões da alta sociedade, o mesmo não se podia dizer no seu reino doméstico.

Quando Arthur se colocava em cima dela, a loira fechava os olhos e rezava para aquilo acabar depressa, mas já não era em Davi que ela pensava. O seu pensamento estava com a criança que crescia dentro dela, o único inocente no meio daquela teia de mentiras.

Tudo teria corrido como planejado, não tivesse sido a péssima ideia do jovem Nigri de dar uma festa para anunciar a gravidez da esposa, dois meses depois.

Á maior parte dos convidados não escapou a transformação que se tinha operado no jovem Davi Marra, já alcoolizado antes sequer da festa começar e com uma expressão de pedra diante daquele espetáculo.

E, quando Arthur começou com o discurso da praxe, levantando mais uma vez a sua taça de vinho, mas teve que parar por uma súbita falta de ar, Davi foi o único na multidão a manter a impassibilidade na reação.

Mesmo à vista de um Arthur que cuspia golfadas de sangue, arfando pelo ar que não conseguia respirar, Davi continuou calmamente a bebericar a sua taça de vinho tinto.

Arthur Nigri acabou exalando o seu último suspiro nos braços da sua jovem esposa, sem nunca conseguir perceber o que se tinha realmente passado. Uma verdadeira tragédia, a sua vida encurtada tão precocemente.

Um mês depois do ocorrido, por imposição de Jonas, Megan se viu obrigada a voltar para a casa paterna, agora na condição de viúva. Felizmente, os amplos vestidos da moda escondiam uma barriga demasiado proeminente para um casamento de tão poucos meses.

Não conseguindo reconhecer as memórias do quarto que um dia tinha sido o seu, ela saiu para a varanda para apanhar um pouco de ar. Silenciosamente, Davi saiu também para a varanda e se posicionou a pouco menos de um metro de distância dela, apoiando as mãos no vão de proteção.

Agora eles eram como aquelas estátuas de mármore que Megan fazia questão de admirar nas oficinas de arte da cidade.

– O que é que você foi fazer? – perguntou ela num fio de voz, não querendo verbalizar aquela certeza que o seu coração lhe ditava.

Suspirando, e sem a conseguir encarar, ele acabou respondendo:

– Não tive como evitar. Ele não me podia tirar a minha mulher e o meu filho.

Ele sabia. Todos os esforços para lhe esconder o segredo tinham sido em vão. E aquela criança que Megan temia poder vir a nascer com problemas por ser filho de dois irmãos, carregaria também o fardo de ser o produto de dois assassinos: um por ação e a outra por omissão.

O único crime que todos os humanos estão preparados para cometer é o do homicídio. Nas circunstâncias certas, mesmo a mais santa das criaturas é capaz de assassinar o seu próximo.

Também Davi tinha sido corrompido, por um misto de amor e ciúmes e agora teriam os dois de viver com a punição pelo que tinham feito. Como os criminosos em que se tinham tornado.

Deixando cair uma lágrima solitária, Megan continuou a olhar para o céu imenso, com a certeza da pena perpétua que a aguardava.

– Agora vamos ser condenados pela eternidade pelos nossos crimes, Davi. Ainda não sei nem como nem quando, mas sei que vamos.

Juntos, mas definitivamente separados, eles permaneceram naquele limbo, imóveis, fitando o céu imenso, tendo como única testemunha daquela confissão horrenda a lua cheia que os iluminava.


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Notas finais do capítulo

Andei para a frente e para trás com o conceito deste capítulo. Davi podia ser meio otário, mas é na sua gênese uma boa pessoa. Teriam que ser circunstâncias impossíveis para justificar ele se tornar num monstro homicida. Por outro lado, algumas encarnações tinham mesmo que correr mal, para justificar o mau carma da encarnação que estava viva em 2014.
Numa nota mais leve: eu sei que seria muito irônico existir no séc. XVI um judeu chamado Davi Marra, querendo escapar da Inquisição, mantendo o nome.