Megavi - Outras Vidas escrita por Joana Guerra


Capítulo 3
1945 – No amor e na guerra


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez obrigada à Gilmara e à Daniela por terem favoritado. A música-tema para este capítulo é Photograph do Ed Sheeran. Se, durante a leitura, ficarem pensando que a minha inspiração foi comparar uma certa personagenzzzz com uma tragédia como a segunda guerra mundial, então estão certos.



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“Loving can heal

Loving can mend your soul

And it's the only thing that I know (know)

I swear it will get easier

Remember that with every piece of ya

And it's the only thing we take with us when we die

We keep this love in this photograph

We made these memories for ourselves

Where our eyes are never closing

Our hearts were never broken

Times forever frozen still

So you can keep me

Inside the pocket

Of your ripped jeans

Holdin' me closer

'Til our eyes meet

You won't ever be alone

And if you hurt me

That's OK, baby, only words bleed

Inside these pages you just hold me

And I won't ever let you go

Wait for me to come home”

(Ed Sheeran, Photograph)

Filadélfia, 1945

Faltavam poucos quilômetros para o trem chegar a Filadélfia e o ar já começava a cheirar a casa. Uma neblina ainda envolvia a cidade, tornando os seus contornos difusos a quem a observava de longe, mas à medida que o sol se erguia no horizonte, o véu de escuridão começava a desaparecer.

Sentado num compartimento de 3ª classe e apertando o uniforme para espantar o frio, Davi acabou soprando para as suas mãos enregeladas. Era a primeira vez que voltava a pisar solo americano, após uma ausência de três anos. Era uma incógnita a realidade que iria encontrar.

Podia ser considerada curiosa a forma como o tempo se comprimia ou dilatava nas memórias individuais. Para algumas pessoas três anos de uma vida podia não ser muito. Para Davi Reis os últimos três anos equivaliam a uma eternidade.

Davi tinha nascido e crescido bem no centro de uma comunidade de imigrantes na cidade de Filadélfia. Desde pequeno ele se tinha habituado àquela vida de um pequeno bairro, em que todos se conhecem e em que a comunidade se entreajuda. Mesmo em adulto, Davi mantinha o mesmo sorriso do moleque que corria aquelas ruas de bicicleta com o seu amigo Ernesto.

Se existia um protótipo de bom moço norte-americano, Davi cumpria todos os requisitos. A sua tia Rita o tinha criado bem após a morte dos seus pais. Honesto, um trabalhador empenhado e um empreendedor, ele acreditava piamente na Declaração da Independência dos Estados Unidos, quando esta proclamava que “todos os homens são criados iguais" com direito à "vida, liberdade e à busca pela felicidade".

Os anos 30 tinham sido uma época de grande provação por conta da repercussão da Grande Depressão, mas parecia que no virar da década tudo ia mudar.

Naqueles anos Davi tinha sido, por necessidade, um homem dos sete ofícios, ainda que agora se tivesse tornado mecânico. O jovem adorava desmontar e remontar desde o carro mais humilde até ao mais ostensivo carrão.

A vida dele podia ser simples, mas ele se achava feliz, vivendo um dia de cada vez. Os dias se sucediam numa paz confortável e parecia que a sua existência não iria mudar tão cedo.

O que Davi não sabia era que a sua vida iria virar do avesso quando, uma noite no início do ano de 1940, foi arrastado para um clube de jazz pelo seu amigo Ernesto.

Não era propriamente um ambiente ao qual Davi estivesse habituado. Ele preferia a pasmaceira da sua casa a um ambiente extravagante como aquele bar, com música tocando alto e um número indeterminado de indivíduos que dançavam como se o mundo fosse acabar.

Escolhendo a bebida mais barata de um menu de preços proibitivos, Davi se tentou esconder ficando encostado a um canto do balcão enquanto Ernesto partia para tentar a conquista da noite.

Perdido nos seus pensamentos, os olhos de Davi correram a multidão que se espremia a um ritmo alucinante. Os seus olhos castanhos se detiveram ao constatar que no meio da pista de dança rodava feito maluquinha uma loira que até chegava a ser engraçada.

Toda ela parecia emanar uma luz e em redor dela era como se tudo desaparecesse. Era como se o espetáculo fosse o dela e todos em redor, incluindo a banda, fossem meros figurantes em volta da atriz principal.

Ele não tinha sido o único a reparar nela. Um sujeito com maus modos já se tinha colado à loira e segurava insistentemente no braço dela. A garota bem o tentou sacudir, mas o indivíduo já só podia estar muito bêbado porque aparentava não perceber a indireta completamente direta.

Um bom moço não deixa uma dama em apuros. Foi o pensamento de Davi que, de um modo cavalheiro, puxou o moço sem noção de cima da garota, pegando nele pelos ombros.

Aquilo com que Davi não contava tinham sido com os reflexos exacerbados do indivíduo que rapidamente lhe acertou com um murro potente.

Davi acabou indo contra outro individuo, o que despoletou uma reação em cadeia e rapidamente parecia que em vez de um bar norte-americano se estava num bar irlandês porque todos se juntaram à briga.

No meio da confusão, ele acabou sentindo um braço que o puxava dali. Era a tal maluquinha loira que já devia conhecer bem os cantos à casa, porque sabia exatamente por onde sair.

– Espera, o meu amigo ainda está aqui dentro. - dizia ele, tentando localizar Ernesto enquanto ela o arrastava para a saída de emergência.

Oh, dear. Se ele for um silly boy como você, pobre dele. - comentava ela rindo.

O ar gelado da rua fazia um grande contraste com o ar sobreaquecido do clube o que para o casal foi quase um choque térmico. Agora eles estavam na ruela lateral ao edifício e, se assustando com um gato que saltou de um caixote do lixo, a loira acabou se desequilibrando dos saltos, sendo amparada pelos braços de Davi, que a segurou num abraço:

Oh my. Isso é like, um recorde até para mim. - comentava ela, recuperando a posição vertical - Acho que é melhor eu me apresentar antes que a coisa piore. Eu sou a Megan, Megan Marra. – disse ela, estendendo a mão que ele apertou.

Só mesmo um silly boy como Davi para não saber quem era Megan Marra. A loira era a filha do senador Jonas Marra e da sua esposa Pamela, o crème de la crème das socialites de Filadélfia.

Ainda que a família Marra fosse considerada como uma família de novos-ricos, eles se tinham conseguido inserir no topo da alta sociedade da cidade e Megan era talvez o melhor partido da redondeza.

Contudo, tendo a sorte de ter uma família unida e que sempre se preocupou com ela, nunca lhe tendo faltado amor, os pais tinham conseguido educar Megan para não se deslumbrar com o excesso de dinheiro.

Tendo subido a pulso, Jonas e Pamela valorizavam mais o bom carácter de alguém do que a sua conta bancária.

“É admirável como você nunca se aproveitou da Megan, mesmo sendo ela filha do Jonas.” – acabaria por confessar Pamela a Davi muitos meses depois, um pouco antes de uma ocasião feliz.

– Tá, Megan Marra. Eu sou o Davi Reis. - se apresentou ele naquela ruela suja.

O bom moço já devia ter o cérebro a congelar, porque se esqueceu das boas maneiras e continuava a apertar a mão da loira, mesmo já tendo sidas cumpridas todas as formalidades de apresentação.

Instalou-se um silêncio entre o casal que foi interrompido pelo referido gato que começou a miar como se fosse uma serenata.

– Ok, Davi Reis. Agora dá para devolver a minha mão? – pediu Megan rindo.

Sentindo vontade de bater com a mão na testa, Davi largou a mão dela e se dirigiram para a rua principal, acabando por tropeçar em Ernesto, que se entretinha a beijar uma morena vistosa, de uma forma pouco decorosa.

O bom moço pigarreou para chamar a atenção do amigo, sentindo vontade de se chicotear intimamente ao temer que a cena não causasse boa impressão em Megan. O que ele não sabia era que ela se estava divertindo muito com a aflição dele.

Apresentando Ernesto e a sua companhia, que pelos vistos se chamava Luene, o quarteto acabou a noite num pequeno café ali perto, que estava aberto 24 horas por dia.

Davi podia não ter conhecido muitas garotas, mas tinha a certeza que nunca conheceria alguém como Megan. Ela tinha um carisma, uma personalidade tão própria que em poucas horas era como se ele já a conhecesse há anos. E ele não tinha sido o único a cair sobre o feitiço da loira. Ernesto e Luene também já estavam com vontade de a colocar num bolso e levá-la para casa.

Tal como uma Cinderela do século XX, a loira acabou se levantando de um salto ao constatar que o dia já estava raiando:

Damn it! Eu já devia estar em casa! É o aniversário de casamento de dad e mom.

– Eu te acompanho. - se ofereceu Davi de imediato.

Thank you.- agradeceu ela sorrindo – Mas não é really necessário. Eu telefono para o meu motorista e ele me vem buscar.

Megan acabou se levantando para usar o telefone público e acabou pagando a conta dos quatro.

– Maior gente boa essa Megan.- comentou Luene – Nem parece uma patricinha rica.

– O quê?- perguntou Davi, desorientado.

– É, cara. A Megan é a filha do senador Marra. Sim, o Marra milionário.- completou Ernesto vendo a cara de surpresa do amigo.

Quando a loira regressou à mesa, Davi tinha caído num silêncio. Tendo vivido resguardado num determinado meio, ele se sentia desconfortável com tudo o que se afastava da sua normalidade.

Os quatro jovens saíram para a rua a tempo de ver chegar o potente carro da família Marra e Edmilson, o fiel motorista, veio abrir a porta para a patroa.

Depois de se despedir de Ernesto e Luene, Megan se colocou na frente de Davi sorrindo matreiramente:

So, você vai me convidar para sair ou vou ter que te vencer pelo cansaço?

A segunda hipótese acabaria por ser a mais verdadeira. Nos meses que se seguiram as saídas a quatro se tornaram cada vez mais frequentes e Davi acabou tendo que sair da sua zona de conforto a bem ou a mal.

Ele próprio se achava um doidinho quando os outros o convenciam a fazer um piquenique no parque da cidade à meia noite ou quando dava por si a dançar à chuva de madrugada, mas Davi depressa percebeu a lição que Megan lhe queria ensinar.

Para ela a vida era para ser vivida no imediato, aproveitando cada pequena oportunidade de ser feliz. Se apenas ele conseguisse soltar as amarras que o prendiam às suas ideias preconcebidas.

E se a loira não tinha problema em admitir que se estava apaixonando por aquele silly boy, já ele não conseguia aceitar o mesmo. Se sentindo inferior, Davi achava que não tinha o direito de ficar com alguém com uma vida tão diferente da dele. A ordem natural das coisas era ele se apaixonar por alguém igual a ele. O que se verificou foi que ele já não sabia viver sem Megan.

Um dia Megan acabou causando sensação quando o resolveu visitar na garagem onde ele trabalhava. Todas as cabeças masculinas e femininas da rua se voltaram para ver a figura com um fato saia-casaco de corte imaculado e um chapéu que devia ter custado uma pequena fortuna entrando no humilde local de trabalho do jovem Reis.

– So, é aqui que você se esconde. – comentou a loira entrando no edifício.

Se assustando com a surpresa, Davi acabou batendo com a cabeça no capô do carro em que trabalhava e Megan acabou rindo à gargalhada com a situação.

– Isso não tem piada nenhuma, sua bad girl. – comentou ele, massageando o que viria a ser uma nódoa negra, ainda que sorrisse também.

Oh, no, silly boy. Você é sempre muito engraçado. E, às vezes, você até é cute.- respondeu ela, correndo os dedos pelos objetos em exposição.

Se inclinando sobre uns projetos esquecidos sobre a mesa, ela acabou separando alguns que a entusiasmaram.

– Davi, esses desenhos são seus? God, they´re amazing!

Encabulado, ele acabou explicando o seu sonho. O bom moço tinha concebido um novo modelo de carro, que seria acessível a famílias de baixo rendimento e que acarretaria poucos custos de manutenção.

Silly boy, você tem que avançar com esse projeto!

– Não tenho como, Megan. – explicou ele de uma forma sumária.

– Claro que tem, silly. Eu te ajudo e tenho a certeza que o Ernesto também.

Tudo parecia tão mais fácil quando era proferido por aquela loira energética. Pela primeira vez, Davi acreditou que o seu sonho era realmente possível.

E foi. Era inacreditável como do lado dela tudo ficava fácil. A loira devia ter herdado o toque de Midas dos pais porque nenhum banco colocou entrave no empréstimo necessário para Davi, Ernesto e Megan abrirem a sua fábrica.

No dia da inauguração, no início de 1941, o trio festejou com champanhe a concretização de um desejo.

– Vem cá, você sempre foi tão eufórica assim?- perguntou Davi, quando ficou sozinho com a bad girl.

– No, é que hoje eu me estou sentindo muito feliz.- explicou ela se preparando para sair. - See you tomorrow, Davi.

– Até amanhã, Megan. – se despediu ele com um beijo na bochecha.

Davi acabava de desligar as luzes quando reparou que Megan tinha voltado para trás e marchava na direção dele. A loira acabou por agarrá-lo pelo colarinho e imprensou-o contra uma parede antes de tascar um beijo nele. O bom moço se deixou levar e a enlaçou os virando e a caça se virou contra o caçador quando a loira acabou sendo a imprensada.

Tinham sido demasiados meses de palavras não ditas e sentimentos reprimidos. Ela enlaçou com as pernas a cintura dele e os corpos deles estavam tão colados que já nem se sabia onde é que começava um e acabava o outro.

Respirando de uma forma superficial, eles continuavam se devorando com beijos e mãos irrequietas não paravam de dançar sobre os corpos quentes.

Davi acabou dando uns passos cambaleantes e depositou Megan no sofá do escritório, se deitando imediatamente em cima dela.

Como se quisesse decorar aquele momento, o silly boy se soergueu nas mãos com uma expressão hesitante e a loira segurou a face dele com as duas mãos, o que o deixou com uma estranha vontade de uivar para a lua.

– Porque é que você tem tanto medo de ser feliz, Davi? – perguntou a bad girl num fio de voz.

Existem momentos na vida em que devemos caminhar com a certeza de que colocamos um pé diante do outro. Existem outros momentos em que para atingir a felicidade é preciso arriscar saltar de um precipício sem pára-quedas e esperar que esteja alguém cá em baixo para nos apanhar.

Davi arriscou saltar. Megan não só já estava pronta para o apanhar, como estava desejosa para o fazer.

O bom moço até tinha estranhado como tudo tinha sido tão fácil. Mesmo os pais de Megan o tinham acolhido bem, depois de o conhecerem. A sua doidinha tinha conseguido com ainda maior facilidade integrar-se no meio em que ele tinha crescido e a tia Rita tinha até uma verdadeira adoração pela loira.

Foi uma evolução tão certa, começar aquele namoro que passou para um noivado e depois para um casamento, que Davi até estranhava como tudo tinha acontecido com tanta facilidade.

Talvez ele tivesse mesmo medo de ser feliz. Talvez o bom moço não conseguisse aceitar que um final feliz era não só possível como até lhe podia cair no colo numa ruela de um bar clandestino. Mas Davi não acreditava merecer ser feliz.

Megan e Davi tinham casado poucos meses antes quando, no dia 7 de Dezembro de 1941, os japoneses encetaram um ataque em solo americano, mais concretamente em Pearl Harbour.

Ouvindo as notícias pela rádio, o casal entrelaçou os dedos da mão sabendo que o seu mundo nunca mais seria o mesmo. Três mil americanos tinham perdido a vida em casa. Um sentimento de insegurança pairava pelo país.

O ataque forçou a entrada dos Estados Unidos da América na Segunda Guerra Mundial. Davi, como bom moço, ainda antes de ser recrutado, foi um dos primeiros a se alistar voluntariamente para combater pelos Estados Unidos.

Are you crazy? O que é que você foi fazer? - berrou a sua esposa ao saber da decisão que ele tomou sem a consultar.

– Era o meu dever. - tentou explicar ele. - Eu tenho que defender o nosso país e vingar quem morreu.

No, Davi. Você tem que ser sempre o superhero, right? Você por acaso pensou no que ia deixar ficar para trás?

Já não havia muito a fazer. Em menos de uma semana Davi ia partir para o campo de treinamento e pouco depois partir para o campo de guerra.

Naquela última noite antes do embarque nenhum dos dois conseguia pregar olho. A forte iluminação que provinha da rua lhes entrava no quarto sem pedir licença e enchia aquele quarto de um tom âmbar.

Deitados na cama, frente a frente, com as pernas entrelaçadas, eles decoravam as feições um do outro, quase conseguindo ouvir os seus corações.

Please don´t go. - pedia ela num fio de voz - Ontem eu tive um pesadelo. Você voava para bem longe de mim. Você soltava da minha mão e ia embora e eu não conseguia te segurar.

Davi tentou limpar as lágrimas da sua bad girl, mas eram demasiadas. Encostando as testas, eles respiravam o mesmo ar carregado, se abraçando para sentir o calor um do outro.

Cada decisão acarretava repercussões. Talvez nenhum homem conseguisse verdadeiramente tomar uma decisão certa, mas apenas decisões menos erradas.

– Eu preciso fazer isso.- tentava explicar Davi, correndo os dedos pelo cabelo da esposa - Depois eu volto para você por inteiro.

You better. – foi a única resposta dela.

No dia do embarque, a plataforma da estação de trem estava lotada com aqueles que se despediam dos futuros soldados. Ernesto, que tinha decidido também se alistar acabava de colocar as malas na prateleira e Davi pendurado da janela ainda abraçava a esposa.

– Eu juro que eu volto.- tentava consolá-la o bom moço.- Eu juro.

– Davi, eu tenho tanto medo…- dizia ela perto das lágrimas.

A campainha impiedosa deu sinal da partida do trem e Davi se viu na necessidade de soltar Megan. Quando as pontas dos dedos deles se deixaram de tocar, ambos sentiram os joelhos fraquejando e, à medida que a figura da loira se tornava num pequeno borrão com a distância, Davi tirou do bolso a fotografia dela, a beijando com devoção.

– Eu volto. Eu juro que eu volto. – repetia ele como uma oração.

Davi Reis acabou impressionando os seus oficiais durante o seu treinamento, se tornando num piloto de elite no topo da sua classe de bombardeiros. Ele e Ernesto acabaram sendo destacados para um esquadrão estacionado no sudoeste asiático onde se esperava que combatessem acerrimamente os japoneses.

Davi e o seu avião Golias se tornaram numa lenda entre os aviadores. Amado pelos esquadrões norte-americanos e temido pelos esquadrões asiáticos, ele tinha conseguido a proeza de ter eliminado um elevado número de aviões inimigos, o que lhe valeu uma promoção a tenente.

Nos controlos do avião ele fazia questão de levar sempre a fotografia de Megan, quase como um talismã a que ele atribuía a sua boa sorte. Estando as comunicações condicionadas era um pequeno milagre quando ele conseguia telefonar para a esposa ou receber uma carta.

Com Megan ele nunca falava dos perigos ou da morte que o rodeavam, mas sim dos sonhos que ele tinha para o futuro e ela lhe dava a força que ele precisava para continuar. Paradoxalmente, tinha sido o fato de estar tão longe dela, que o levava agora a dar valor para o que ele tinha tido como garantido e a perceber que tinha sido um otário por não ter aceitado de caras a sua boa sorte.

No final de 1943, as condições para o esquadrão norte-americano se deterioravam rapidamente. Lutando contra um número crescente de nipônicos, mesmo não recebendo munições em número suficiente, era uma questão de tempo até uma tragédia iminente.

Foi o que aconteceu numa batalha decisiva em que os norte-americanos se viram cercados inesperadamente.

Golias ainda conseguiu fazer cair um dos aviões, mas Davi entrou em choque quando o avião de Ernesto explodiu diante dele e uma rajada de metralhadora destruiu os motores do seu avião.

Enquanto o avião caia a pique sobre o oceano Pacífico, Davi mantinha os olhos fitos na fotografia de Megan, pedindo silenciosamente desculpa pela promessa não cumprida.

Não sabendo bem como, ele acabou se vendo flutuando naquele mar, com a fotografia de Megan na mão.

Davi acabou sendo recolhido por um navio japonês e foi conduzido para um campo de concentração. Sujeito a tortura durante dias, ele acabou por nada revelar sobre os segredos norte-americanos e o colocaram junto da população geral.

Foi em condições sub-humanas que o bom moço passou os dois anos seguintes. Fome, sede, tortura física e psicológica, gente em volta que não aguentava e se suicidava; esse se tornou no novo quotidiano de Davi.

E ele só tinha aquela fotografia. O sorriso perpétuo da sua doidinha foi o que o aguentou durante aqueles anos de provação. Durante o dia ele afagava aquela película que já estava ficando gasta de tanto toque e à noite a loira entrava nos seus sonhos, para o consolar.

E se os outros prisioneiros não tinham porque viver, ele tinha. Nem que fossem apenas por aquelas alucinações que ele tinha por estar num estado de fraqueza e que o faziam ver Megan bem do seu lado.

Mesmo que a dor não o abandonasse, a esperança também não. Todavia, foram lágrimas de fel as que ele chorou quando teve que trocar a aliança de casamento por medicamentos para tratar uma febre que parecia nunca o abandonar.

Quando, em 1945, o campo foi finalmente libertado, Davi era um fantasma de si mesmo. O bom moço não conseguiu evitar o medo que se apoderou dele durante a viagem de volta a casa.

Ele sabia que tinha sido dado como desaparecido em combate e presumivelmente morto. Megan não tinha a mínima obrigação de ter esperado por ele durante dois anos.

Quando o trem se apeou em Filadélfia, uma multidão engoliu o veículo. Era uma massa de pais e mães, esposas e filhos, todos ansiando voltar a ver os seus entes queridos.

Os soldados e os oficiais quase saltaram pelas janelas para chegarem mais depressa perto dos seus familiares, mas pela primeira vez em muito tempo o choro que se ouvia era um choro de alegria e alívio por terem conseguido sobreviver a uma provação como aquela guerra sem sentido.

Se trancando no banheiro do trem para poder chorar à vontade, Davi acabou sendo um dos últimos a desembarcar e plataforma já estava quase vazia quando as suas botas tocaram na sua cidade.

O trem apitou, dando sinal que se preparava para partir novamente e um fumo característico da locomotiva se impôs no ar, mascarando uma figura que avançava na plataforma com passos certeiros.

Quando o fumo se dissipou o tenente Reis viu a loira que, numa saia-casaco verde musgo e chapéu a condizer, correu na direção dele. Se é que era possível, Megan estava ainda mais bonita.

A Senhora Reis se lançou no pescoço do marido sem ter que dizer uma palavra, o apertando com força para aquele silly perceber que ela nunca mais o deixaria sair de perto dela.

Deixando correr as lágrimas que não a tinham abandonado ao longo daqueles anos ela deixou que o corpo falasse por ela e começou a beijar o marido por todo o lado, com medo que aquilo fosse mais um dos seus sonhos.

Nunca, ao longo daquele tempo, ela tinha aceitado a possibilidade de Davi não voltar. Nem quando o exército o quis dar como morto. Nem quando pais e amigos lhe pediam para tentar esquecer Davi e avançar com a sua vida.

O bom moço a engoliu com os seus braços e rodou com ela, mantendo um beijo interminável. Se fosse possível explodir de felicidade, ele seria uma granada humana.

Correndo as mãos pelo corpo um do outro, eles se permitiram a um sorriso sincero. A vida tinha dado uma segunda oportunidade a Davi e desta vez ele tinha a certeza que não ia perder tempo com os seus medos e os seus preconceitos.

Davi nunca ia amar tanto alguém quanto amava a sua Megan. Abraçando a sua bad girl, Davi entrou com ela num táxi rumo a casa, só que desta vez sem medo de ser feliz.


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Notas finais do capítulo

Pelos vistos, Megan e Davi foram em muitas encarnações norte-americanos. That´s life.



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