Tiramos um dia qualquer para ir a campina com os garotos. Peeta tratou de cuidar da comida, como já era de costume.

Saímos ainda pela manhã e a cesta parece transbordar de comida.

Sentamos na grama e observamos o que a natureza nos reservou. Sinto-me aliviada por saber que esta paisagem tão linda não foi afetada pelas bombas que atingiram o 12. Teria sido um total desperdício.

Haymitch está sentado atrás de mim, suas pernas ao meu redor. Seus braços me envolvem e ele me deixa recostar em seu peito.

Estou olhando para frente, mas os meus pensamentos estão perdidos em um lugar muito longe daqui. Sou, então, invadida por lembranças nem um pouco agradáveis.

É quando me vejo de volta àquela sala. A sede me consome cada vez mais, porém o único sabor que sinto no momento é sangue. Meu próprio sangue. Assim como sei que boa parte do meu corpo está com alguns cortes pelo ardor que sinto agora. Quase não tenho roupas que me cubram. Não tenho mais forças para gritar. Meu corpo inteiro protesta em seu silêncio torturante e depois ouço apenas risadas de deboche.

– Effie? - ouço alguém me chamar de longe e reconheço a voz. É Haymitch. - Effie! - ele me chama novamente e acordo num sobressalto. Ofego, assustada, mas me alivio aos poucos quando ele me afaga, passando de leve as mãos nos meus braços. Dou de ombros e vejo Katniss e Peeta me fitando, parecendo preocupados.

– Calma, calma – Haymitch murmura em meu ouvido.

– Effie, ta tudo bem? - Peeta indaga. Ainda estou um pouco aérea, mas assinto com a cabeça mesmo assim.

– Ei, vem cá - diz Haymitch, puxando-me para mais perto. Ele me vira um pouco, fazendo-me ficar em seu colo. Até que eu encosto a cabeça no seu ombro. - Foi aquilo de novo?

Confirmo com a cabeça. Há alguns dias havia dito a ele tudo o que aconteceu quando eu estava presa. Deu para notar o quão culpado ele se sentiu quando contei. Ele passou um bom tempo para poder assimilar tudo e aceitar quando eu dizia que realmente estava tudo bem agora, mesmo que para mim mesma não estivesse.

Haymitch me envolve num abraço aconchegante e deposita um pequeno beijo na minha testa, até que desce um pouco até tocar os meus lábios. Ele me beija algumas vezes até que eu me encosto no seu peito, ainda de lado. É quando vejo Peeta tentando beijar Katniss, mas ela parece um pouco... receosa.

– Haymitch – digo, ainda olhando para o casal. - Se importa de andar um pouco com o Peeta? Quero falar com a Katniss.

Quando ele dá de ombros parece compreender o motivo do meu pedido. Ele chama Peeta e, sem pensar duas vezes, este se levanta. Haymitch me dá um beijo no rosto antes de ir.

Observo os dois caminhando e uma pequena risada me escapa.

– Haymitch definitivamente não sabe andar – comento e ouço Katniss rir. Ótimo, penso. Começamos bem.

– Acho que ele nunca aprendeu – ela diz. Quando olho para ela, noto que ela voltou a franzir o cenho. Ela não está mais olhando para Haymitch e sim para Peeta. Seu olhar baixa e ela suspira.

– Katniss – chamo e ela olha para mim. - Não é a sua vez de me contar alguma coisa?

Ela parece levar dois segundos para assimilar o que eu estou querendo dizer. Seu olhar recai em Peeta novamente.

– É complicado – ela diz após outro suspiro.

– Você tem medo de engravidar – afirmo e ela me fita em silêncio. Percebo-a engolir em seco.

Faço sinal para ela vir até mim e, sem relutar, ela o faz. Cruzo minhas pernas e induzo-a a deitar no meu colo. Seus cabelos caem em cascata sobre a minha perna e passo a mão lentamente neles.

– Por que você acha isso? - ela indaga, com o olhar distante.

– Eu sei, Katniss – digo simplesmente. - Está estampado no seu rosto.

Ela continua olhando para longe.

– Não é só isso – ela diz. - É tudo, sabe? Dizem que... dói.

– Ahh, isso – finalmente ela esclarece e tudo parece ficar mais fácil. - Katniss, você não precisa ter medo – digo enquanto passo os dedos entre suas madeixas escuras. Ela agora está olhando para mim. - Acredite: a dor que falam é quase imperceptível. Você vai ter outras coisas para se preocupar na hora que nem vai lembrar disso.

Acabo arrancando uma breve risada dela.

– Só você, Effie – ela comenta.

– Estou falando a verdade, queridinha.

Ela passa a língua nos lábios, parecendo pensativa.

– Effie – ela retoma e eu murmuro um "hm" para que ela continue. - Como é que você faz... você sabe... para não...?

– Por que você acha que eu não quero ter um filho? - pergunto com uma sobrancelha arqueada.

– Você não parece estar na expectativa de quem quer ter – Katniss rebate e isso acaba me fazendo rir.

– Katniss, Katniss... Você á percebeu que eu estou com o Haymitch há pouco mais de uma semana? As coisas não são tão rápidas assim!

Katniss abre a boca para retrucar, mas percebe que não havia pensado bem. Ela acaba rindo comigo.

– Eu esqueci – ela tenta se explicar e controla o riso. - É que às vezes parece que vocês estão juntos há anos. Não parece que faz tão pouco tempo assim.

– Você acha?

Katniss confirma com a cabeça. Olho para frente e vejo os dois voltando na nossa direção. Ainda um pouco longe, Haymitch encontra o meu olhar e sorri, o que acabo retribuindo. No meu colo, sinto o peso da cabeça de Katniss aumentar e percebo que ela está de olhos fechados. Quase dormindo.

– Assim vai acabar pegando no sono – comento com a voz baixa, tentando me certificar se ela está ou não fingindo. Mas ela sorri.

– É raro alguém fazer cafuné em mim – ela diz. - Nunca sou legal o suficiente para dar espaço para isso.

– Então eu fui a sortuda que teve esse espacinho hoje – concluo. Seus lábios se movem novamente num pequeno sorriso e me sinto uma recordista por ter feito essa garota sorrir tantas vezes num único dia.

– O que é isso que eu estou vendo aqui? - Haymitch se intromete e eu reviro os olhos. - Katniss sorrindo? Acho melhor voltarmos porque vai chover.

Seu comentário arranca o riso de todos, principalmente de Katniss. E quando Haymitch se senta próximo a mim novamente, ela se levanta após me agradecer pela conversa.

Finalmente paramos para comer e é quando percebo que estava com fome. Acabamos com quase tudo que Peeta havia levado. Pouco tempo depois de terminarmos, volto a me recostar em Haymitch e quando dou de ombros, vejo Katniss com a cabeça no ombro do padeiro, com suas mãos entrelaçadas e não posso deixar de sorrir ao vê-los assim.

Ainda está de tarde quando voltamos para a casa de Haymitch. Nos despedimos dos garotos e entramos. Passo direto pela porta, mas Haymitch permanece parado e quando me volto para ele, vejo que está com alguns envelopes nas mãos.

Está tudo bem até ele franzir o venho e separar um envelope dos outros.

– Effie – ele diz. - É para você.

Haymitch estica o braço e me adianto até ele para receber o envelope. No verso há o símbolo de Panem e algum outro que não me parece estranho, mas não consigo reconhecer de imediato.

Abro o envelope e retiro a carta que há dentro dele. E quando passo meus olhos por cada palavra contida nela, sinto meu sangue congelar. Leio-a até o final, tentando me certificar da real causa do seu envio até aqui, mas não consigo me tranquilizar.

Quando termino de ler, estou a uns quatro passos de distância de Haymitch, que me fita preocupado.

– É uma intimação - digo sentindo a minha voz trêmula. Haymitch dá dois passos hesitantes na minha direção, mas espera que eu termine. - É da polícia da Capital.