O Amigo Invisível escrita por Jena_Swan


Capítulo 2
Capítulo 2




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O relógio despertou as nove horas, eu o desliguei enquanto tentava proteger os olhos da claridade vinda pela janela que deixara aberta na noite anterior. Gosto de ouvir os sons da cidade e eles chegam melhor com o vidro aberto. Sons que apenas eu escuto.

Levantei procurando me enrolar no lençol porque recentemente descobri que minha visinha do apartamento ao lado gosta de me espiar andando nu pela sala e pelo quarto. Céus, eu nem sabia que ela conseguia enxergar dentro do meu apartamento! Agora me sentia como se estivesse sendo vigiado o tempo todo. O que não deixava de ser verdade.

Enrolado em meu lençol peguei uma xícara de café e contemplei a cidade já desperta. O céu azul, límpido, prometia um dia quente e ensolarado. Carros buzinavam, vozes se entrecortavam na correria cotidiana. Dois pombos conversavam sobre tampinhas de garrafa brilhantes em minha varanda. Sorri. Você deve estar se perguntando como (raios!) eu sei disso. Vou lhe contar. A resposta é que sei ler pensamentos.

Sim, exatamente como você leu: eu conheço todos os pensamentos de toda e qualquer pessoa, ou outro animal - e sou bem específico quanto a isto, nunca ouvi os pensamentos de uma planta... - queiram eles (e vocês) ou não. Mas os pensamentos não-humanos são bem mais simples e engraçados, geralmente formados apenas por imagens. Os dois pombos por exemplo ficavam mirando do alto as brilhantes tampinhas lá embaixo, na sarjeta. É preciso um pouco de pratica, mas com o tempo eu aprendi a decifrar os sinais - também ajudou o fato desses dois serem, de certa forma, cativos da minha varanda, toda manhã eles pousam ali e ficam. Creio que é o melhor "point" de observação de objetos brilhantes da região - eles mexem as pequenas cabeças emplumadas e as imagens vão mudando em suas pequenas cabecinhas; a tampinha pequena meio ofuscada, a maior perto da esquina, refletindo o sol... ah meu Deus o espelho de um carro! Esse pensamento até acelerou o coraçãozinho da Emplumada Graveto (sim, dou nome aos meus pombos semi-de-estimação: Emplumada Graveto; a mais rechonchuda que está sempre com gravetos nos bicos, o que me ajudou a descobrir que era uma fêmea, junto do fato da pequena cabeça dela ser povoada por imagens de ovos além das tampinhas, e o companheiro dela; Emplumado Bicudo. Mas chega de falar de pombos! Estou ficando obcecado!).

É difícil parar de ouvir pensamentos quando eles simplesmente invadem seu "campo auditivo mental", mas eu me controlo e estou ficando bem melhor. Quando comecei a ouvir pensamentos foi o caos, quase enlouqueci, afinal ninguém me avisou sobre o que estava acontecendo e eu tive que aprender tudo sozinho.

Aconteceu depois do acidente com Ian, acordei no hospital e de repente tudo ao meu redor era duas vezes mais barulhento e algumas pessoas começaram a falar sem aparentemente abrir a boca (oi?), a partir daí fui por dedução e tentei manter a calma.

Mentira, passei duas semanas trancado no meu quarto com fones de ouvido e as janelas lacradas porque tinha medo de absolutamente tudo desde que ouvi o pensamento do Rottweiler do meu primo, que me odiava. Acharam que era alguma espécie de estresse pós-traumático, me receitaram calmantes, terapia e "força que tudo passa".

Não passou.

Demorou para eu admitir que nunca mais voltaria ao normal e que, querendo ou não, agora sabia tudo.

Aposto que vocês vão achar incrível essa habilidade; saber todos os podres de todo mundo (he he he), mas não. É assustador no começo, terrível depois e só piora. As vezes você não quer saber o que sua namorada pensa; algumas pessoas gostam de ser enganadas e eu não tenho mais esse privilégio, não quero saber o que meu chefe e meus amigos pensam de mim, mas sei. Não gostaria de saber que minha visinha gosta de me ver pelado na minha privacidade. Poxa vida eu a tinha em tão alta conta... Agora sou obrigado a me ver pelos olhos dela e não gosto de experimentar pensamentos pervertidos comigo mesmo! Perdi a privacidade, por sinal. E todos ao meu redor.

Mas tudo bem. É um presente com o qual não posso contar com a devolução. Opção inexistente, se vire meu chapa.

Eu me pergunto se meu anjo da guarda estava muito bravo comigo no dia do acidente ou o que... Algo como: Vou te salvar, mas tem um preço. É bobagem eu sei.

Quero dizer... sei lá.

Liguei meu notebook para checar a matéria recém escrita (aquela pelo qual meu chefe pensa que sou um incompetente, já que meu notebook pegou vírus e eu perdi tudo semana passada e tive que refazer. Tudo!). Quando terminar este estágio, e a faculdade, juro que vou me mudar para um lugar onde eu não consiga entender a língua de ninguém!

Tipo o Japão ou a China. Grécia também seria uma boa.

Os vizinhos de cima começaram a brigar mentalmente e eu ouço seus sapatos batendo no piso e, bem baixinho, porém bastante audíveis, seus pensamentos. Ela o traiu e ele está quase descobrindo.

Confesso que tenho dó dele, por isso mandei uma carta anônima para seu trabalho informando-o de que talvez o adestrador do cachorro não seja tão boa pinta assim...

Só estou fazendo meu dever. Pra que ouvir pensamentos e não ajudar nem uma pobre alma?

Mas para manter a privacidade, ou fingir que mantenho, liguei a TV, pois o ruído dela encobre os demais sons. Mais ou menos, mas ajuda. É uma questão de concentração.

Meu telefone toca.

– Fale Nicole! - Não, eu não ouço pensamentos via telefone.

– O que você está fazendo, Lu querido? - Nicole é minha secretária, quer dizer, ela é a secretária da revista onde faço estágio de publicidade e pensa que sou gay. Não importa o que eu faça para tirar essa ideia da cabeça dela, ela distorce minhas ações e volta a achar que eu sou gay!

Inferno.

– Terminando aquela maldita matéria sobre maquiagem. Não sei se já te falei, mas não sou redator, não é minha função escrever matéria para cobrir atestado de jornalista...

– Queridinho, você é estagiário e isso é sinônimo de faz tudo. Agora pay attention honey - eu sei que a intenção dela, ao falar em inglês comigo, é ver se eu solto a franga e libero a deusa que habita em mim. Ou que ela pensa que habita.

– Fale, dear.

– O boss precisa que você termine uma matéria para o Caio, porque ele vai entrar em férias.

Não, o Caio não vai entrar em férias. Ele vai ser demitido. Mas ela não sabe disso.

Eu rolo os olhos.

– Qual é a matéria do Caio?

– O Peregrino.

– Quem?

– Você não assiste TV e não lê jornal?

– Estive pesquisando maquiagem... - e comprando ossos para o cachorro da minha irmã que tem pensamentos obsessivos com eles ("Ossos, ossos, ossos, ossos..."), formatando meu PC, escrevendo cartas anônimas para o vizinho de cima, tendo pensamentos maliciosos com a vizinha sobre minha "bela trilha da felicidade" (e procurando uma cortina grande o suficiente para esta tarada nunca mais me ver), refazendo TODA a minha matéria de estagiário (com meu papel de trouxa), entre outras coisas - esses últimos dias foram um pouco turbulentos.

– Bem, o Peregrino é o assunto dos últimos meses!

– Certo, certo Nicole, você vai me dizer quem é o Peregrino ou eu vou ter que ir aí e ler seu pensamento? - sorte que ela não entende meu senso de humor.

– Ai Lu, você é um fofo! Vou te mandar algumas notícias sobre ele e depois envio o que o Caio já coletou de informação sobre o caso - ela suspirou - o poderoso chefão chegou príncipe, preciso desligar. Beijo, beijo, bye,bye.

– Beijo, beijo.

Porque se eu não responder isso ela fica repetindo até que eu me irrite e ela possa culpar minha orientação sexual por isso (beijo,beijo, bye, bye, beijo, beijo, bye, bye, beijobeijobyebyebeijo...ad infinitum).

Pelo menos ela é competente. Cerca de cinco minutos depois os arquivos sobre o Peregrino estavam na minha caixa de entrada com as orientações de que eu deveria estudar o caso, completo, com direito a fazer entrevistas e tudo mais e terminar até o fim do mês uma matéria completa sobre o tema, que então seria assinado por um jornalista de verdade e publicado. Eu receberia pela matéria em off, afinal minha função ali não era escrever artigo nenhum no lugar de jornalista nenhum que estava prestes a ser demitido, mas quem é que iria fazer algo contra? Eu certamente que não. Apesar do desvio de função iriam me pagar bem o suficiente.

Sendo assim, mãos a obra.

Vamos conhecer o Peregrino.


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